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São poucos os profissionais que acompanharam o desenvolvimento da internet de tão perto como Luli Radfahrer. Doutor em Comunicação Digital pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), onde também é professor há 18 anos, Luli, que afirma ser “uma das tias velhas da internet”, começou a trabalhar com a rede em 1994, quando fundou a Hipermídia, uma das primeiras agências de comunicação digital do país, hoje parte do Grupo Ogilvy.

É autor, entre outros, dos livros Design/web/design 2 (2000, Market Press) e A Arte da Guerra para quem mexeu no Queijo do Pai Rico (2004, Planeta do Brasil). Durante encontro realizado pelo Conselho Editorial da Revista E, Luli apresentou o seu trabalho e abordou algumas das possibilidades que se apresentam com a globalização digital. Abaixo, alguns trechos da conversa.


internet

Fui parar nesse mundo digital há muito tempo. Estamos na quarta internet e todas foram muito interessantes, mas uma não teve nada a ver com as outras. A primeira internet surgiu no começo dos anos de 1990 como uma derivação da arpanet [primeira rede operacional de computadores à base de comutação de pacotes] e da bitnet [rede remota fundada em 1981].

Essa primeira rede era um grande catálogo, que ninguém entendia direito para onde ia. Era quase um lugar obscuro, que tinha salas de chat, você ligava o computador em um telefone e ficava alegre quando recebia um e-mail. Por sorte, no Brasil, algumas pessoas de visão montaram o comitê gestor da internet, naquela época, e fizeram que a gente tivesse uma das melhores internets do mundo.

Muita gente pergunta de onde veio o dinheiro para montar essa rede. Veio de tudo que era gasto para colocar astronauta na Lua. Essa primeira internet morreu em dezembro de 1999, junto com o famoso bug do milênio.
Então, gastou-se uma fortuna em defesa, sistema de segurança e veio a segunda rede, que foi aquela que chegou depois do modem.

Foi no momento em que todo mundo começou a perceber que a internet era um pouco mais que uma brincadeira de nerds e que dava para colocar muito dinheiro nela. Essa segunda internet foi a que chamamos de bolha, durante um período em que se investiu furiosamente. Pessoas absolutamente sem nenhum critério acharam que cabeando o mundo inteiro iam ganhar dinheiro.

Esses caras quebraram, só que deixaram uma grande infraestrutura. E, de repente, os equipamentos ficaram muito baratos. Serviços como o youtube, por exemplo, seriam absolutamente inviáveis em 1999, porque o custo do armazenamento do gigabyte era altíssimo.

A internet que a gente usa é mais restrita do que a TV. Os 12 principais sites ocupam 93% do tempo de navegação. Então, se você acredita que usa uma internet livre, aberta, isso é uma grande bobagem. Se tirar o google, wikipedia, twitter e facebook, você não sabe nem direito o que fazer ou por onde começar. A banda larga permitiu que o computador ficasse ligado na internet o dia inteiro, sem pagar taxímetro. Se ainda tivesse que pagar o tempo do telefone ligado, ninguém twittava, blogava, orkutava, facebookava, youtubava, myspaçava e todos esses outros verbos.


novas tecnologias

Hoje, se você é um pai querendo ser amigável e abre a porta do quarto do seu filho de 14 anos, vê uma cena típica: ele está vendo televisão, computador ligado, no MSN, mandando um SMS, falando no celular, vendo alguma coisa no youtube, ouvindo música, lendo. Você pergunta: “O que você está fazendo?”. E ele responde: “Nada”. Como nada? Isso é uma verdadeira bang bang sensorial e ele não está fazendo nada? Na cabeça dele, a fragmentação de lugares é muito evidente.

Com relação ao trabalho, acho que nunca se trabalhou tão mal, de uma forma tão desfocada, lotada de reuniões, tão desprovida de conteúdo. O cara está trabalhando, mas precisa checar o e-mail para ver se chegou alguma coisa, aí ele vai ver um link interessante ou adiciona um aos favoritos, que nunca mais vai ler. Nota-se o seguinte: você chegou de manhã ao trabalho, foi embora à noite e, se perguntarem o que fez, você vai dizer que não fez nada.

É exatamente igual àquele adolescente que não faz nada, fazendo um monte de coisas. Marshall McLuhan [filósofo e educador canadense, introdutor do conceito de aldeia global] já falava isso há muito tempo, que a gente devia se perguntar o que está acontecendo, antes de avaliar se é bom ou ruim. Nesse enorme ciclone de novidades, o indivíduo precisa entender onde está, porque assim consegue perceber para onde pode ir ou se deve deixar de ir.

Boa parte desse movimento tecnológico é um efeito sistêmico, consequência da quantidade enorme de processos e decisões, desde o século 18. Então, considerando que ele é inevitável, como posso fazer para compreendê-?-lo e para não ser atropelado por ele? Acho que em breve a gente vai se chocar com alguém falando assim: “Olha, com licença que eu vou a uma festa”.

E aí você percebe que a pessoa colocou um capacete e pronto. Ela está numa festa, com música, dançando, mas simplesmente não saiu de casa. Isso já está acontecendo. Na verdade, é aquilo que dizemos: o futuro já chegou, só que ele é extremamente mal distribuído.


relações pessoais

Na época da sua avó, se você dispensasse o namorado pelo telefone, ela iria considerar isso de extremo mau gosto, pois se você vai dar o fora no rapaz faça pelo menos ao vivo. Na época da sua mãe, se você fizesse isso por SMS, ela ia achar horrível. Fico pensando o que essas duas mulheres diriam se você, hoje, dispensar o seu namorado simplesmente entrando no facebook e trocando o seu status.

Então, você vai lá e coloca “fulano está solteiro”. Porém, há exemplos fantásticos de amizade no mundo digital, como o de pessoas que se apaixonam jogando warcraft [game online de ação e aventura]. Parece patético, mas patético mesmo é se apaixonar por alguém que você viu durante cinco segundos em uma festa, achou bonito e os seus hormônios entraram em ação.

Quando você se apaixona por alguém com quem você joga o mesmo game, você conheceu a pessoa, conviveu com ela por horas, dividindo tarefas, matando dragões. Essa pessoa é muito companheira, não tem nada de virtual, pois você sabe exatamente como ela se comporta, e o fato de ela ser gorda ou careca não interessa.

Não existem mais cortinas nas casas ou portas fechadas. Qualquer idiotice que alguém falar pode se tornar pública. Uma ideia que tive há uns cinco anos – e que vou adorar quando for viabilizada – é o equivalente a um facebook para a Câmara dos Deputados, para o Senado.

Você quer saber quem é aquele cara de que você ouviu falar, você procura e as pessoas curtem ou não o perfil dele. Aparecem todas as denúncias que existem contra ele. Devemos refletir sobre quais os objetivos de quem defende tanto a privacidade.

É aquela velha história: quem não deve não teme. A ideia de sigilo bancário, por exemplo. Se o indivíduo foi eleito, é preciso, sim, quebrar o sigilo bancário dele. Deveria ser condição natural, pois ele se tornou uma figura pública. Por que o voto secreto no Congresso? Se esses caras são os nossos representantes, quero saber no que eles votam “sim”. ::


“Na verdade, é aquilo que dizemos: o futuro já chegou, só que ele é extremamente mal distribuído”