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Entrevista
Wilson Martins
A frase "não li e não gostei" não serve de adágio para Wilson Martins. O crítico literário, nascido em São Paulo e radicado em Curitiba, tem na leitura um vício: enfrenta dos clássicos à bula de remédio. Se essa característica conferiu-lhe o status de paradigma na crítica literária atual, também é causa de mal-estar e rancor em alguns círculos intelectuais e universitários, dos quais foi sumariamente banido.
Com sólida formação intelectual (é Doutor em Língua e Literatura Francesa pela Universidade Federal do Estado do Paraná) e com a comenda de ter vivido e lecionado por 30 anos nos Estados Unidos, sua faina não visa analisar o autor da obra. É o produto do trabalho que o interessa. Portanto, é comum vê-lo elogiando um livro de determinado escritor para, no lançamento seguinte, desferir-lhe severas ressalvas.
Ademais, Wilson Martins é defensor de idéias ortodoxas a respeito do ofício literário e mantém-se alheio a grupelhos e modismos. Consegue empreender imparcialidade notável na sua leitura cultural brasileira. É dos raros que dissociam o exercício crítico de pressupostos literários e/ou ideológicos.
Nesta entrevista exclusiva à Revista E, o autor da magnífica História da Inteligência Brasileira traça um panorama exemplar da produção cultural brasileira.
Qual é o código de ética de um crítico literário?
Os elementos fundamentais são a honestidade, a imparcialidade e o desejo de fazer justiça. Há também a liberdade com relação aos grupos de opinião. Eu, pessoalmente, na tarefa crítica, trato de me esforçar no sentido da independência, da objetividade e também do desejo de justiça, na minha opinião, o fundamento da ética.
Quais são seus critérios para julgar?
Eles variam de acordo com o livro. Antes de mais nada, quero esclarecer que eu não faço julgamento de autores, faço julgamento de livros. Já no que toca o gênero literário, digamos a poesia, por exemplo, o critério será observar se essa poesia obedece aos ditames técnicos daquele gênero literário. Há um certo nível que determina a linguagem literária. É um erro imaginar que um livro de literatura possa ser escrito de maneira coloquial. Como, aliás, se faz muito, eu acho isso um erro de composição.
O senhor acha que um crítico literário também pode ser autor de ficção?
Pode. Aliás, isso tem acontecido com numerosos críticos de todos os países. Porém, é uma questão delicada porque, em geral, eu acredito que quem tem um determinado talento literário só é bom naquele talento. As exceções são muito raras. Em geral, a tentação por parte dos críticos de escrever ficção e poesia é muito grande. Percebe-se que muitos deles gostariam de ser criadores, entre outros motivos para responder àquela crítica muito comum que se faz de que eles só são críticos porque são incapazes de escrever a literatura no sentido comum da palavra. O crítico não é um romancista ou um poeta frustrado: ele é um crítico porque essa é a tendência natural do seu espírito.
Existe uma escola de formação de crítica literária?
Eu não acredito em escolas de literatura nem para a crítica, nem para os chamados cursos de criação literária. A formação do crítico depende de um volume absolutamente fantástico de leituras. O crítico está na dependência de uma cultura geral muito grande. Para escrever sobre um romance brasileiro de 1999, por exemplo, o crítico precisa conhecer razoavelmente bem o que já se fez como romance em outros países. Balzac criou o modelo moderno de romance. Se nós aceitarmos essa idéia, o romance de Balzac é uma espécie de metro pelo qual todos os romancistas do futuro se mediriam consciente ou inconscientemente. Eu, pessoalmente, leio tudo, desde bulas de remédio até etiquetas de garrafas. Também leio obras que não são necessariamente consagradas como altamente literárias. Tudo isso forma dentro do espírito do crítico um certo estalão de julgamento que ele vai usar.
Pode-se falar numa cultura literária genuinamente brasileira?
Nem genuinamente brasileira, nem de qualquer outra nacionalidade. A cultura literária, por sua própria natureza desde a mais alta antigüidade, foi sempre uma coisa universal, cosmopolita. Os próprios escritores franceses da Renascença, por exemplo, liam muitos antigos escritores latinos e gregos. Ou seja, já havia essa universalidade. A tendência da atividade literária desde o princípio sempre foi universal.
Como o senhor analisa o momento da produção cultural brasileira?
Esse é um problema que a cada momento tem respostas diferentes porque depende de ciclos. Se essa pergunta fosse feita nos anos de 1930, eu diria que o romance brasileiro estava muito bem, que a poesia nem tanto e que os estudos críticos também não eram lá essas coisas. Mas em 1999, eu diria que o romance está num segundo plano e que o que realmente predomina são os estudos históricos, biografias, histórias do Brasil. Em 1900, produziu-se uma imensa biblioteca de estudos brasileiros com alguns livros muito valiosos até hoje e agora, no quinto centenário, acontece a mesma coisa.
Essa revisitação histórica está sendo bem escrita ou está sendo guiada pela euforia que rodeia essa efeméride?
As duas coisas. Também há um sentimento curiosamente pessimista. Muitos desses autores fazem aquele comentário: "Não há nada para comemorar". O que também é uma tolice, porque não se trata de comemorar ou deixar de comemorar, mas sim de compreender o passado e o Brasil tal como se constituiu. Pode parecer uma tautologia mas, dependendo da qualidade do autor, esses livros podem ser muito bons ou desprezíveis.
Quem tem o poder de moldar o caráter cultural brasileiro?
É o "senhor todo mundo". Uma espécie de consciência coletiva, de estado de espírito, que vai determinando a predominância de tal ou tal tipo de estudo ou livro. Há uma espécie de sentimento coletivo que conduz para uma direção ou para outra. São ciclos passageiros. Mas na vida editorial, entre as casas editoriais, é curioso que sempre há uma espécie de consenso acerca de que tipo de livro deve-se editar. E o mesmo tipo de livro é editado no Rio de Janeiro, em São Paulo ou no Rio Grande do Sul e ninguém sabe porquê. É apenas esse estado de espírito vago.
Como o senhor enxerga o mercado editorial brasileiro?
Do ponto de vista estritamente literário, é um mercado ainda pequeno, reduzido em relação à população do Brasil. Mas há uma outra vertente que é muito numerosa e que de fato vende milhões e isso em geral a gente ignora porque são públicos mais ou menos específicos. Por exemplo, a edição de livros didáticos. Parece que estão sendo publicados 600 milhões de exemplares por ano no Brasil. De uma forma geral, segundo me parece, não há nenhum editor falido. Todos eles estão muito bem editorial e financeiramente.
As predileções de um crítico são pautadas em critérios meramente objetivos ou também subjetivos?
Também subjetivos. Eu creio que ninguém pode escapar de si mesmo. O crítico julga de acordo com a sua educação, com seus princípios morais, com as idéias que recebeu desde criança a respeito do que é bom ou mau, justo ou injusto. De forma que há esse elemento subjetivo que é inevitável. Não só é inevitável, como é até salutar, porque propõe diversas idéias no diálogo. Para conhecer o valor de uma crítica, devemos conhecer primeiro a natureza do próprio crítico. Como eu sou, ou pelo menos penso que sou, inteiramente indiferente às ideologias, religiões e partidos políticos, creio que posso me conservar numa atitude de neutralidade mais ou menos simpática com todas as tendências e julgar aquilo que acredito ser o valor próprio do livro.
O senhor disse que nosso ciclo de criação, hoje, prefere a produção histórica e analítica à produção ficcional. Se o senhor tivesse de listar os romancistas que estão produzindo hoje, quem o senhor salientaria?
Há uma escritora de Pernambuco chamada Cavalcanti de Albuquerque que ainda não foi reconhecida mas é uma boa romancista. Entre os mestres mais antigos estão, naturalmente, Josué Montello e Carlos Heitor Cony, que está reaparecendo com a reedição dos seus livros mais conhecidos. Outro escritor romancista que também ainda não está reconhecido pelos bons livros que escreveu é Antônio Olinto. No Rio Grande do Sul, há o romancista Assis Brasil, e também, em matéria de ficção, há o Sérgio Faraco.
E qual é a tendência para a poesia?
Até agora a poesia não mostrou nenhuma tendência global. Os poetas estão cada um por si e Deus contra todos. Depois do concretismo não apareceu mais nenhuma escola de nenhum grupo mais ou menos organizado com idéias comuns.
É possível dizer que existe ou existiu o maior escritor de todos os tempos?
Não. Nem o maior escritor e nem o maior poeta, porque esses julgamentos variam não só de época para época, mas também de pessoa para pessoa. Para tomar um exemplo: há muita gente que diz que Drummond foi o maior poeta brasileiro de todos os tempos. Acho que Drummond foi um grande poeta, mas não de todos os tempos. Ele não é maior que Gonçalves Dias, Castro Alves ou Olavo Bilac. Ou mesmo um contemporâneo dele, João Cabral de Melo Neto, que muitos dizem também ser o maior poeta brasileiro de todos os tempos. Não é verdade. O próprio João Cabral nem achava que era um poeta brasileiro típico.
Em toda leitura há prazer no trabalho de um crítico?
Pode haver. Na leitura de um crítico há uma diferença fundamental com relação ao leitor comum. Este lê aquilo que gosta. Ao passo que um crítico, por dever profissional, tem de ler tudo. Em teoria, ele deve ler tudo o que se publica ou a maior parte do que se publica. É claro que nesse volume de leitura há coisas que desagradam, que não correspondem ao seu gosto. Ao contrário, há outras que ele pensa serem uma grande obra de literatura. Essa é a parte do prazer que, infelizmente, é diminuta. A maior parte da leitura dos críticos é feita por dever e não por prazer.
Hoje, nós vivemos a repercussão da produção histórica, sociológica e até antropológica sobre o Brasil e o brasileiro calcada em autores como Gilberto Freire e Sérgio Buarque de Hollanda. Ela realmente espelha o fato real ou há muita mistificação sobre esses autores?
Em relação aos autores sérios não há mistificação, há uma influência muito poderosa. No meu julgamento pessoal, o único livro original desse grupo todo foi o do Gilberto Freire. Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Hollanda e Celso Furtado são epígonos em relação ao Gilberto Freire, pois continuaram na sua linha de pesquisa e de pontos de vista. Eles nem reavaliaram, nem alteraram o que Gilberto Freire havia proposto. O erro que aconteceu depois é que muita gente discutiu Gilberto Freire do ponto de vista político e ideológico, que não tem nada a ver com a História. Gilberto Freire instituiu uma nova visão sobre a contribuição do negro e do índio na civilização branca. Ele pessoalmente era um pouco tendencioso em favor do português, mas teve a grande originalidade de mostrar que o negro teve uma contribuição importante não só pela economia para a civilização brasileira.
Foi criado um estereótipo sobre a literatura brasileira no exterior?
Sim. Aliás, criado por nós mesmos. Os brasileiros gostam de se encarar como exóticos, tropicais, rebeldes da civilização ocidental. Criando essa imagem, eles não podem se surpreender com o fato de os países estrangeiros aceitarem isso. Fora do Brasil, o escritor típico será mais Jorge Amado que Machado de Assis. Machado parecerá aos franceses um autor secundário em relação a Flaubert. Jorge Amado compõe aquela idéia exótica do Brasil com negros, acarajés, danças e religiões africanas. Fora do Brasil, a nossa literatura é secundária. Qualquer homem culto da França, da Inglaterra ou dos Estados Unidos pode ignorar nossa literatura.
Isso é devido ao axioma de que o português é uma língua secundária e que se determinados autores tivessem escrito em outro idioma seriam melhor reconhecidos?
Isso não é verdade. A literatura é importante não por ela mesma mas pelo país. Quando um país é importante, o resto do mundo procura conhecer a sua literatura e a sua língua. A França, por exemplo, quando era uma das primeiras potências mundiais, teve uma literatura e uma língua também universais. Eu parto do seguinte princípio: o que atrapalha a penetração universal da literatura brasileira não é a literatura, mas o próprio país. O problema da língua também não é significativo. Quando a China se tornou um país importante, houve um grande interesse pela língua chinesa.
Isso tem alguma implicação nos Prêmios Nobel?
Muita. A academia sueca, como qualquer outra, é política. Eles negaram sistematicamente o Prêmio Nobel a Jorge Luis Borges, por exemplo. Negaram a Andre Mauraux, na França. Há sempre um critério político. Ignoraram os escritores portugueses e brasileiros até pouco tempo.
Para quem o crítico trabalha e quem é o seu público?
O público é o culto. Pessoas que têm interesses literários e intelectuais. Enfim, o público educado, que no Brasil é realmente diminuto em relação à população. Os meios de comunicação modernos desviaram muito a atenção e o tempo disponível para a leitura. Eu não diria que o crítico escreve só para os outros críticos, mas escreve, em geral, para os outros escritores e para um público reduzido.
Haveria nesse trabalho espaço para uma expansão do público leitor?
Isso é mais ou menos implícito, meio automático, mas muito lento. Digamos que um crítico conhecido tenha cem ou duzentos leitores habituais por semana, demora muito para penetrar no grande público. Pela lentidão, é quase um problema desesperador.
Qual é o relacionamento do senhor com os autores?
Sempre morei fora dos grandes centros literários. Fora de São Paulo e do Rio. Ou seja, sempre vivi livre das panelinhas e dos grupos literários, que sempre acabam conformando a opinião do crítico. Os artistas têm uma opinião comum a respeito de livros ou obras de arte que predominam naquele momento. Ao passo que o sujeito que está fora não sofre essa influência e, em certo sentido, lê a obra objetivamente. Há o elemento sentimental, que facilita que o crítico seja mais emoliente com a obra de um determinado autor que faça parte do seu círculo íntimo de amizades.
O senhor já teve de rever alguma opinião?
Já me fizeram essa pergunta e a resposta sempre me faz parecer um pouco arrogante, mas a verdade é que não. Como eu escrevo com uma certa coerência adquirida ao longo do tempo, até agora não encontrei nada que pudesse reformar de cabo a rabo.
O senhor tem vontade de escrever ficção ou poesia?
Nunca. Sempre fui de uma absoluta incompetência para isso.
É possível determinar ou apontar uma obra capital da literatura brasileira?
Em cada gênero e em cada momento haverá obras capitais. O conjunto dessas obras forma uma biblioteca brasileira importante, em que todos os livros são indispensáveis. Numa biblioteca dessas, você põe Os Sertões, de Euclides da Cunha e Dom Casmurro, de Machado de Assis ou Estadista do Império, de Joaquim Nabuco. São obras de significado e importância diferentes. É como comparar laranjas com cebolas.