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Quando não vale mais a pena viver

por Paulo Hebmüller

“Ninguém quer a morte, só saúde e sorte”, já cantava Gonzaguinha. Para além da poesia, o verso retrata uma realidade das sociedades ocidentais modernas: tanto não queremos a morte que a expulsamos de casa. Até as primeiras décadas do século passado, cerca de 80% das pessoas morriam em sua residência, cercadas por familiares e amigos. Hoje, quase todos aqueles que não perdem a vida em acidentes ou crimes, ou vitimados por um mal súbito, passam seus últimos dias num hospital. Não raro, cercados de máquinas, no lugar antes destinado aos entes queridos.

O século 20 criou a figura do paciente terminal, fruto dos avanços tecnológicos capazes de prolongar a vida e, para alguns autores, da excessiva mecanização da medicina. A revolução tecnológica trouxe à luz novas questões sobre os limites do uso dos recursos colocados à disposição do ser humano. Na década de 1970, esses debates consolidaram a bioética, definida pelo médico e professor William Saad Hossne, um dos maiores especialistas brasileiros na área, como a “reflexão ética sobre os fenômenos biológicos, sobretudo a saúde, levados à avaliação dos demais ramos da ciência, especialmente as ciências humanas”.

Algumas das perguntas bioéticas cruciais sobre a ponta final da existência humana têm a ver diretamente com a tecnologia: até onde se trata de prolongar a vida ou de adiar artificialmente a morte? É justificável adicionar dias de sobrevida que provavelmente irão trazer somente mais sofrimento ao paciente e a seus familiares?

Entre os princípios da bioética, ao lado da beneficência, da justiça e da não maleficência, está a autonomia. Dela se origina um outro “pacote” de perguntas relacionadas ao final da vida – por exemplo: quem decide sobre os passos na continuidade do tratamento se o paciente estiver inconsciente? A família ou os médicos? “O ideal é que o paciente seja abordado sobre essas decisões quando ainda tem autonomia e plena capacidade de decisão, ou seja, sem depressão e sem sintomas que causem sofrimento, como dor, falta de ar, náuseas etc.”, afirma o médico Cláudio Sakurada, do Hospital Universitário (HU) da Universidade de São Paulo (USP).

Como o ideal e o real dificilmente saem a passear de mãos dadas, o médico acaba se defrontando com cenários bastante complexos. “Infelizmente, nosso Grupo de Apoio ao Profissional e ao Paciente Crítico (Grappac) na maioria das vezes só é acionado para avaliação quando as pessoas já se encontram numa situação muito grave, em geral impossibilitadas de tomar decisões. Nesse caso o responsável familiar é consultado”, explica Sakurada.

Direito a recusar tratamento

Quando a análise dos prognósticos e da gravidade da doença demonstra que é hora de começar a pensar nessas escolhas, o Grappac submete ao paciente uma “lista de desejos”. A equipe, o doente e seus familiares discutem, da maneira mais compreensível e detalhada possível, os tipos de tratamento que podem ser adotados, com suas vantagens e desvantagens. Basicamente, são questões técnicas, como: você gostaria de ser reanimado numa situação de parada cardiorrespiratória? Gostaria de ir para a UTI? Gostaria de ser entubado? – e assim por diante.

“Muitas vezes essas reuniões são carregadas de emoção e adiadas para outro momento, com a participação de outros parentes e de pessoas respeitadas pela família, como um médico de confiança, o padre ou pastor da igreja etc.”, diz Sakurada. Se o paciente fez suas opções nas condições ideais, explica, a decisão é absoluta. Em algumas situações, o doente não elege alguém da família como seu “procurador”, mas prefere delegar o papel a um vizinho ou a outra pessoa com quem tenha mais afinidade.

Em vários países, a discussão sobre a autonomia dos pacientes quanto aos procedimentos médicos no final da vida vem dando origem a um instituto legal chamado testamento vital ou diretiva de vontade antecipada. É o caso da Espanha, da Holanda, dos Estados Unidos e, mais recentemente, do vizinho Uruguai, que aprovou lei a esse respeito em 2009. Em linhas gerais, trata-se de um documento em que o indivíduo, de forma voluntária, consciente e livre, declara que tipo de terapias recusa que lhe sejam aplicadas caso fique impossibilitado de manifestar sua vontade – em coma, por exemplo. Na maioria dos modelos, o documento deve trazer a assinatura de testemunhas, ter registro em cartório e determinar um procurador.

No Brasil, um dos defensores da criação de lei para o testamento vital é Adriano Marteleto Godinho, professor de direito civil na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Segundo ele, é direito do paciente “optar pela submissão ou não a qualquer tipo de intervenção médica”, mais ainda em caso de doença terminal, incurável e irreversível. “Se a vida, de um lado, não é um bem jurídico disponível, não cabe, de outro, impor às pessoas um ‘dever de viver’ a todo custo. Morrer dignamente nada mais é do que uma decorrência lógica do princípio da dignidade da pessoa humana”, diz.

A falta de regulamentação no país não impede que uma pessoa registre em cartório uma declaração desse tipo – mas, pela mesma razão, o Judiciário pode decidir pela sua ineficácia. Segundo os defensores da adoção do testamento vital, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa e da garantia de que ninguém será submetido “a tratamento desumano ou degradante” sustentam o direito do cidadão de escolher o que considera uma morte digna.

Na batida do coração

Para quem conhece bem dois dos lados envolvidos no debate – a legislação e a medicina –, a adoção do testamento vital no país enfrenta uma série de problemas práticos. “Ainda não há lei, e a resistência é muito grande. Se alguém chegar com um documento desses num pronto-socorro, vai haver muita dificuldade”, diz o médico e advogado Sergio Pittelli, de São Paulo. “O médico tem de reagir de moto próprio, de acordo com suas convicções, e geralmente adota uma opção defensiva, ou seja, trata o paciente com a perspectiva de quem não quer ser processado. Isso, na cabeça dele, é fazer tudo, ir até o fim, entubar, colocar na UTI etc.”

Segundo Pittelli, tanto as famílias quanto muitos profissionais de saúde estão imersos numa cultura em que a ideia de vida continua atrelada às batidas do coração – e não ao conceito de morte encefálica –, e é daí que se originam as resistências a uma eventual recusa de tratamento. “Dizer que o coração está batendo e que por isso é preciso manter a vida a qualquer custo é o contrário da dignidade da vida, que está em a pessoa morrer bem, sem sofrer, e que a família não fique sofrendo também”, argumenta.

Descer a detalhes na redação do testamento vital seria complicado porque nem tudo pode ser previsto ou descrito com exatidão no papel. “Entendo que a pessoa deve colocar as coisas de forma genérica e elas serão interpretadas no momento adequado pelo médico junto com o próprio paciente ou com a pessoa que ele indicou. Se o médico tiver bom senso, pode se entender perfeitamente com o paciente e a família”, afirma Pittelli.

No estado de São Paulo, a lei 10.241/99 estabelece que entre os direitos dos usuários dos serviços de saúde estão “recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida” e “optar pelo local de morte”. Porém, uma pessoa pode ser levada à UTI e entubada, mesmo que tenha se pronunciado anteriormente contra medidas desse tipo. Um médico de urgência pode adotá-las a pedido da família, desrespeitando a vontade do paciente, ou até para se precaver contra eventuais represálias, porque tem crescido o número de processos judiciais por negligência ou erro.

De um lado, falta clareza jurídica no Brasil sobre o papel do médico no prolongamento da vida; de outro, a formação voltada para salvar vidas costuma falar mais alto. “O próprio médico sente a morte de seu paciente como uma derrota profissional e tem suas defesas para não encará-la”, diz o doutor Sakurada, do HU/USP.

A hora de cruzar a barreira

O momento em que solta a vara e está como que flutuando sobre a barra: como dizer se Fabiana Murer, campeã mundial no salto com vara, parou de subir ou já começou a descer? A foto da atleta solta no ar é utilizada nas palestras e aulas de Reinaldo Ayer de Oliveira, professor da Faculdade de Medicina da USP e membro do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, como uma metáfora da terminalidade. “Para mim, essa é a imagem: conseguimos fazer o diagnóstico de que o indivíduo tem uma doença incurável e irreversível e vai ultrapassar um limite, uma barreira; vai entrar na terminalidade da vida. Se raciocino antes de ele entrar nessa fase, começo com os cuidados paliativos, ou seja, o alívio do sofrimento”, diz.

O melhor caminho para decidir os passos de um tratamento é sempre o diálogo com o paciente e seus familiares. “O médico tem de participar de um processo de convencimento de que o melhor para o paciente é aquilo que não sejam obstinações diagnósticas e terapêuticas, porque elas levam ao sofrimento”, afirma Ayer. De outro lado, se a opção pela obstinação partir do próprio médico, essa é uma postura “altamente criticável e antiética, contrária ao novo Código de Ética Médica”.

Na opinião de Ayer, é precoce a discussão sobre a adoção do testamento vital no Brasil, basicamente por duas razões. A primeira tem a ver com a resolução 1.805 do Conselho Federal de Medicina (CFM), publicada em 2006. Segundo o documento, é permitido ao médico “limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal”.

O artigo 2º estabelece que “o doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar”. Embora a norma não use as expressões, esse é o espírito dos cuidados paliativos e da ortotanásia (ver texto abaixo).

A resolução 1.805 foi questionada na Justiça pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2008, sob a argumentação de que afrontaria o direito à vida. O imbroglio foi resolvido apenas em dezembro de 2010, quando a 14ª Vara Federal do Distrito Federal julgou improcedente o pedido do MPF, e só a partir daí a norma do CFM passou a vigorar plenamente. De acordo com Ayer, é muito pouco tempo para que as noções de atendimento baseado em cuidados paliativos estejam amadurecidas entre os médicos e também na sociedade.

A segunda razão apontada por Ayer é que, para pacientes em fase terminal de doença grave e incurável, o novo Código de Ética Médica – que passou a vigorar em abril de 2010 – propõe uma teoria bem estruturada sobre terminalidade, cuidados paliativos e autonomia na relação médico-paciente. O grande ator que ainda falta participar do debate, diz o professor, é a sociedade. “No fundo estamos discutindo questões relacionadas a novos paradigmas de morte. Numa visão utópica, a sociedade se mobilizaria para dizer que não aceita mais o sofrimento de pessoas com doença grave e incurável e para romper com esse paradigma de vida sem qualidade”, afirma. “Que vida é essa em que se coloca a pessoa num aparelho para ela ficar sei lá quanto tempo e depois morrer?”

Pedir para morrer

No IX Congresso Brasileiro de Bioética, realizado em setembro em Brasília, uma das mesas que mais chamaram a atenção tinha a participação do geriatra Johannes van Delden, membro da comissão do governo da Holanda que avaliza os pedidos de morte assistida. A eutanásia continua proibida no país, mas uma lei de 2002 descriminalizou alguns casos.

Os pedidos só são encaminhados à comissão se o médico estiver convencido de que a solicitação foi voluntária e feita por um paciente bem-informado quanto a seu prognóstico, mediante sofrimento considerado insuportável e se médico e paciente concordarem que não existem alternativas razoáveis de tratamento. É preciso também obter o aval de um médico de outra instituição. Ainda assim, apenas um terço dos pedidos de eutanásia é aprovado.

O holandês também afirmou que os médicos não se atêm ao que os pacientes tenham determinado nas diretivas de vontade antecipadas, porque “as pessoas mudam de ideia na hora da morte”. Um estudo feito num hospital do país confirmou a tese: todo paciente que pedia o suicídio assistido recebia sedação profunda por 24 a 48 horas. Após a sedação, a pessoa acordava e os médicos perguntavam se ela realmente queria abreviar a vida. Mais de 90% dos pacientes disseram que não. “Nenhum ser humano quer morrer pelo prazer de morrer, mas porque está doente, cansado, com medo, com dor, porque não se sente ouvido, se sente abandonado. Você quer a morte porque aí termina todo esse sofrimento”, diz a geriatra Ana Claudia Arantes. “Quando a pessoa é ‘desligada da tomada’ e os sintomas são aliviados, ela acha que vale a pena ficar mais um pouquinho.”

Segundo a médica, está na hora de a sociedade brasileira começar a discutir as questões ligadas ao testamento vital. Médico e paciente devem dialogar sobre as opções de tratamento em caso de doença grave e irreversível – mas, é claro, há diferentes maneiras de ter essa conversa. “É preciso haver um preparo e explicar que você não está fazendo essas perguntas porque acha que a pessoa vai morrer na semana que vem”, enfatiza.

Nas conversas, também entra em pauta a escolha do familiar que será consultado para tomar decisões pelo paciente – e essa pessoa precisa ser claramente avisada. Muitas vezes, ela até se surpreende por ter sido a “eleita” e pede para passar o bastão por não se sentir em condições de assumir a responsabilidade. Ana Claudia também ressalta que as diretivas de vontade antecipadas precisam ser sempre revalidadas com o paciente, porque, como mostrou a pesquisa na Holanda, ele pode mudar de ideia.

É gostoso viver

Os quinze anos de experiência da médica com cuidados paliativos e pacientes terminais a fazem afirmar que “está cheio de gente morrendo mal por aí”. Ana Claudia trabalhou em grandes hospitais, mas reconhece que trazer a questão da terminalidade a uma instituição geral não é exatamente uma política bem-vista. “Um hospital não vai usar como cartão de visitas a frase: ‘Venha para cá porque aqui você morre bem’”, brinca. Por isso, criou em São Paulo a ONG Casa do Cuidar, que, embora também preste atendimento, tem na formação de profissionais que lidam com pacientes terminais seu foco principal. Romper as resistências contra a adoção de cuidados paliativos ainda é um alvo a buscar no horizonte. No Brasil, são cerca de 30 os programas do gênero existentes, enquanto nos Estados Unidos esse número passa de 2 mil.

Ana Claudia cita um artigo publicado em 2010 no respeitado New England Journal of Medicine sobre um grupo de pacientes americanos com câncer de pulmão em estado avançado, com metástase. Metade do grupo seguiu para o tratamento padrão, e a outra metade fez o convencional mais cuidados paliativos. “O grupo que recebeu paliativos teve menor incidência de depressão, melhores índices de qualidade de vida, menos procedimentos invasivos no fim da vida – e o que ‘chocou’ a comunidade: eles viveram três meses a mais”, relata a médica.

“Bom, agora está começando a ficar antiético não recomendar cuidados paliativos”, continua. “Se você vai prescrever uma droga que custa R$ 15 mil por aplicação para aumentar a sobrevida em uma semana, por que não instituir um programa de tratamento que não está relacionado a drogas novas e pode prolongar por três meses a vida? E de boa vida, com menos depressão, mais qualidade e chegando ao final sem ir para a UTI, sem ser entubado, sem ser submetido a procedimentos agressivos.”

A explicação da médica para esse resultado surpreende pela simplicidade que esconde grande profundidade – como a pureza da resposta das crianças na música de Gonzaguinha. “Se você está bem cuidado, é gostoso viver. Se não está bem cuidado, não vale a pena”, diz. “Cuidar bem é você estar com sua família tranquila, com seus sintomas adequadamente controlados – não controlados pela metade, com mais ou menos dor, mais ou menos fadiga, mais ou menos náusea. É dor bem controlada, fadiga bem controlada, náusea bem controlada... Essas coisas fazem com que as pessoas vivam mais.”


Definições

Cuidados paliativos: Segundo a Organização Mundial da Saúde, consistem na assistência integral oferecida a pacientes e familiares quando diante de uma doença grave que ameace a continuidade da vida. O objetivo é oferecer tratamento eficaz para os sintomas de desconforto, com foco não apenas na dor, mas em aspectos de natureza física, social, emocional e espiritual.

Ortotanásia: Significa “morte no tempo certo”, ou seja, aquela que ocorre sem prolongamento artificial da vida ou sua abreviação. Uma imagem associada ao conceito é a da chama da vela, que se extingue naturalmente. Seu contrário é a distanásia, caracterizada pela obstinação terapêutica e pelos chamados tratamentos fúteis. Já na eutanásia, uma pessoa causa deliberadamente a morte de outra que está enfraquecida ou debilitada.