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REVISTA E - PORTAL SESCSP

 

CONDIÇÃO ESTRANGEIRA

 

O escritor de origem marroquina Tahar Ben Jelloun, em visita ao Brasil, fala de literatura e de sua relação com a língua francesa


Natural de Fez, no Marrocos, o escritor Tahar Ben Jelloun freqüentou uma escola primária franco-marroquina em seu país. Vem daí o fato de ser bilíngüe (árabe e francês) - "um privilégio para todos que têm essa característica", segundo afirmou durante o encontro As Palavras Viajam, os Homens Emigram, realizado no Sesc Vila Mariana em março. Em 1971 chegou a Paris e publicou, um ano depois, seu primeiro texto em francês - no jornal Le Monde. Iniciava-se então sua profunda e constante reflexão sobre os dois idiomas que habitam o "porão de sua memória", como diz. A partir de 1973, migrou para a literatura e desde então já publicou 33 livros, todos em francês, tornando-se um dos nomes mais consagrados da literatura contemporânea mundial. O leitor brasileiro pode comprovar a menção com os títulos traduzidos para o português Os Frutos da Dor (Record, 2000), O Racismo Explicado a Minha Filha (Via Lettera, 2000), O Último Amigo (Bertrand Brasil, 2006) e o livro de poesias Cicatrizes do Atlas (UnB, 2003). Na palestra realizada no Sesc, Ben Jelloun falou de sua relação com a língua francesa, de como o bilingüismo interfere - positivamente, garante - em seu trabalho e expressou sua revolta contra a chamada francofonia, termo que designa o conjunto de países e pessoas que falam francês e que têm, segundo aponta, relegado escritores de ascendência não francesa a uma "segunda categoria". A seguir, trechos.

 

 

Interferência de dois mundos
Desde cedo, quando estudava em uma escola bilíngüe, decidi escrever em francês. Porque eu pensava, talvez com um pouco de pretensão, que a língua árabe eu já conhecia, e que a língua francesa eu iria conhecer. Como me ensinaram a ser educado, gentil e hospitaleiro com os estrangeiros, considerei que era preciso dar à língua francesa o melhor lugar em meu coração e em minha vida. E foi o que aconteceu. Foi com felicidade e prazer que comecei a utilizar a língua francesa, e isso nunca me causou nenhum problema pessoal, político ou cultural. Ao contrário, foi um enriquecimento e uma forma maravilhosa de escrever. Porque o bilingüismo não é unicamente a coexistência de duas línguas, ele vai além da interferência de dois universos que, às vezes, são muito diferentes. O universo de minha infância era expresso por palavras de uma língua que era fatalmente estrangeira. O que me faz pertencer a dois universos, duas culturas, e isso é um privilégio para todos que têm essa característica. Por causa de situações efetivamente históricas, nenhum árabe se torna escritor em língua francesa por acaso. Longe disso, estivemos em contato com essa língua desde a infância, porque o Marrocos era um protetorado francês. Em conseqüência disso, fomos iniciados nessa língua desde a escola primária. Quando me perguntam por que não escrevo em árabe, digo que é porque não domino a língua árabe a ponto de ser um criador nessa língua.

 

Relação com a língua francesa
Eu pergunto: por que o porão da minha memória, onde moram duas línguas, nunca se queixa? As palavras circulam nesse porão com toda liberdade. Às vezes, acontece de elas serem substituídas ou suplantadas por uma outra palavra, sem que isso faça mal algum. E acontece também que minha língua materna, a língua árabe, cultiva a hospitalidade e mantém a coexistência com humor, inteligência e generosidade. Muitas vezes me perguntam se penso em árabe ou em francês. Eu não sou capaz de responder de maneira precisa e definitiva a essa pergunta. Mas sei de uma coisa: quando escrevo, acontece-me de procurar uma palavra, mas ela não chega, não a encontro no francês. O que chega em seu lugar é uma palavra árabe. Quando vou traduzir essa palavra, percebo que é preciso uma frase inteira para dizer alguma coisa similar em francês.

 

O dia em que a França parou
Damasco, álcool, café, zênite, loja, sofá, álgebra, zero, logaritmo, açúcar, azul, gengibre, divã, química, cúpula, cheque. Todas essas palavras têm uma característica: entraram para a língua francesa sem passaporte nem visto. A língua francesa, e as línguas latinas em geral, utilizam cotidianamente essas palavras que citei e ninguém cobra uma taxa para que elas "habitem" essas línguas. São palavras árabes que circulam por todas as línguas latinas e que poderiam, se um dia viessem a desaparecer, colocar esses idiomas em dificuldade. Eu escrevi e publiquei uma novela que se chama O Último Emigrante. Imaginei nessa história - e a literatura também serve para isso - que, através de um tipo de varinha mágica, os sonhos mais raros de um homem de origem francesa fossem atendidos. Ou seja, que todos os emigrantes árabes deixassem a França. E o último emigrante é saudado pelo primeiro-ministro antes de entrar no navio. A França então se livra de todos os emigrantes árabes e depois, pouco a pouco, começam a acontecer coisas estranhas. Por exemplo: espaços em branco nos artigos dos jornais e momentos no telejornal noturno em que o apresentador pula algumas palavras. Isso causa perturbações em todo o país, e ninguém entende o que está acontecendo. Evidentemente, reúnem-se vários ministros, especialistas e lingüistas para saber por que a língua francesa está mancando. Até que alguém diz: "Bom, acho que aconteceu um fenômeno muito simples. Os emigrantes que vocês mandaram embora levaram consigo a única coisa que tinham, aquelas palavras árabes que estavam em nossa língua. Então, não podemos continuar a falar francês na medida em que o francês, como outras línguas, funciona com palavras de origem árabe". Aí pedem a um grande dicionarista uma solução. E ele diz: "Não sei, talvez a solução fosse fazê-los voltar". A economia do país também passa por muitas catástrofes etc. até que no fim dessa história imaginei que o presidente da República vai à televisão fazer um discurso em árabe e, ao final, grita: "Viva a França, viva o mundo árabe!". Imaginem também como foi a reação de todos. Essa metáfora é apenas para fazer a ligação entre as palavras, que estão no dicionário, e os homens, que estão no território. Eles [os árabes] foram levados para lá quando o país [a França] estava precisando de mão-de-obra. Às vezes, foram um pouco marginalizados e maltratados. Tudo isso para dizer simplesmente que a língua e a cultura são dependentes também da economia. E os homens deram seu tempo e sua vida à França, para que esse país se construísse, desde o dia seguinte ao do fim da Primeira Guerra Mundial. Mas ainda estão em uma situação de não-reconhecimento. Chegará um momento em que a França deverá resolver essa questão. Como quando ocorreu um pequeno incidente que perturbou um pouco os meios culturais e políticos da França. Alguns escritores, entre os quais estava eu, publicaram no jornal Le Monde um manifesto para dizer que já estamos fartos da francofonia. Esse manifesto se endereçou ao presidente da organização da francofonia, Abdou Diouf - ou seja, existe um alto posto para administrar a francofonia no mundo - e foi assinado por escritores de diversas nacionalidades, apenas para dizer que a literatura francesa é francesa e ponto. Então, já estamos [os escritores de ascendência árabe] fartos de ser considerados escritores de segunda categoria.

 

"Como me ensinaram a ser educado, gentil e hospitaleiro com os estrangeiros, considerei que era preciso dar à língua francesa o melhor lugar em meu coração e em minha vida"

 

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