Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Cultura

REVISTA E - PORTAL SESCSP

 

 

Gênero considerado brasileiro sob vários aspectos, a crônica transita entre o jornalismo e a literatura, e aposta na subjetividade para contar os fatos do dia-a-dia

 

Uma história bem escrita cativa o leitor mesmo quando trata de temas efêmeros ou até banais. Um bom exemplo de que o cotidiano pode ser o foco de narrativas de qualidade é a crônica - surgida a partir dos folhetins franceses de meados do século 19. Parente do texto jornalístico, o gênero é intimamente ligado à atualidade, a fatos ou, em alguns casos, até mesmo a uma notícia. No entanto, seu tom mais livre e "digestivo" dispensa a objetividade das reportagens ou a sisudez dos editoriais de jornais. "É a possibilidade de conquistar o leitor de uma outra maneira", afirma o jornalista e cronista Humberto Werneck, responsável pela organização do livro Boa Companhia: Crônica (Companhia das Letras, 2005), convidado do encontro Crônica: um Gênero Brasileiro, realizado pelo Sesc São José dos Campos (veja boxe Sobre um gênero breve). "Vejo a crônica como uma janela aberta, uma coisa arejada, que pega o leitor pela subjetividade e concisão da escrita."
Ao preferir trabalhar mais com as impressões do que com a realidade dos fatos, o cronista busca o excedente do noticiário, ou seja, aquele detalhe que parece irrelevante ao jornalista, mas que se torna o filé-mignon de uma boa crônica. Para isso, geralmente utiliza linguagem coloquial e bem-humorada, valendo-se, muitas vezes, até de elementos ficcionais, como a criação de personagens. "É um 'vale-tudo' que se situa entre o jornalismo e a literatura", explica a professora de língua portuguesa do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero Thais Montenegro, autora da dissertação de mestrado "Crônica e Ideologia", defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Ainda segundo a professora, a crônica abarca diferentes subestilos. "A crônica narrativa é uma pequena história", exemplifica. "Tem também a reflexiva, baseada em questionamentos e divagações a respeito da realidade. A híbrida combina narração com descrição - e pode ter algumas passagens reflexivas. E há ainda a lírica, quando o cronista exacerba sua sensibilidade e subjetividade, e a metalingüística, na qual o autor questiona a falta de assunto, como fazia Rubem Braga, por exemplo."
Embora, de acordo com Thais Montenegro, a crônica seja efêmera e tenha um status menor na literatura, por vezes esse gênero transcende as páginas dos jornais e ganha a perenidade do livro. "Há crônicas que, mesmo não tendo a envergadura de um romance e o glamour de uma poesia, comovem como o primeiro e mostram a sensibilidade da segunda. Portanto, ela pode superar esse trânsito do jornal, que vai forrar a gaiola do passarinho no dia seguinte, para se tornar um gênero literário em uma antologia." Além disso, é usada como material didático. "Ela permite que os professores trabalhem o diálogo, a descrição, a linguagem coloquial, e as noções de tempo e espaço com os alunos", explica. Por ser de leitura rápida, também serve como uma porta de entrada para a literatura de mais fôlego. "É enorme a quantidade de pessoas que um dia venham a ler um romance porque se deixaram seduzir pela gostosura e pelo olhar diferente que podem existir em uma crônica", ressalta Humberto Werneck.

 

Época de ouro
Em meados do século 19, época de Machado de Assis e José de Alencar - nomes de primeira grandeza da literatura brasileira e também cronistas reverenciados -, a crônica era uma espécie de artigo de rodapé do jornal e discutia assuntos relacionados a questões políticas e sociais, e ao universo das artes. Aos poucos, o folhetim de então foi deixando de lado o caráter informativo e, mais conciso, adquiriu um tom que visava mais ao divertimento - assemelhando-se ao que é feito atualmente por Luis Fernando Verissimo. No início do século 20, os modernistas Mário de Andrade e Manuel Bandeira destacaram-se no gênero, publicando seus relatos em vários periódicos nacionais a partir da década de 20.
O escritor e jornalista Rubem Braga também é célebre na história brasileira da crônica. A maestria e fidelidade fizeram dele modelo para outros nomes do gênero, como Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. "Rubem Braga é o grande reformulador da crônica", afirma Humberto Werneck. "Ele conferiu muito mais subjetividade ao gênero, que ganhou uma cara brasileira." Werneck conta que durante as décadas de 50 e 60, a revista Manchete trazia toda semana quatro cronistas: Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Henrique Pongetti. "Foi a época de ouro da crônica", explica o jornalista. "Hoje não dá nem para imaginar um negócio desses." O crítico literário Antonio Candido observa, em seu ensaio intitulado A Vida ao Rés-do-chão - publicado originalmente em Para Gostar de Ler: Crônicas, vol. 5 (Ática, 1981-4) -, que "até se poderia dizer que sob vários aspectos [a crônica] é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se desenvolveu". Daria até para fazer uma analogia com outro produto tipicamente brasileiro: o futebol. Mesmo de origem inglesa, nunca conferiu aos britânicos um jogador como Pelé.

 

 

 


Ver boxes:

Velho Braga
Sobre um gênero breve
Obra perene

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velho Braga
Duas ou três histórias sobre o cronista "do útil e do fútil"

 

A estréia de Rubem Braga como jornalista foi aos 15 anos no diário Correio do Sul, de sua terra natal, Cachoeiro de Itapemirim, no estado do Espírito Santo, em 1928. Em 1932, cobriu a Revolução Constitucionalista para os Diários Associados. Publicou o primeiro livro de crônicas, O Conde e o Passarinho, em 1936. Trabalhou como repórter e cronista, entre as décadas de 30 e 40, para diversos veículos, entre eles: Diário de São Paulo, Folha da Tarde, Diário Carioca - do qual foi correspondente na Segunda Guerra Mundial, entre os anos de 1944 e 1945 -, Correio da Manhã, O Estado de S.Paulo e revista Manchete. Juntamente com o amigo e também cronista Fernando Sabino, criou a Editora do Autor, em 1960. "Essa editora popularizou muito a crônica, publicando o trabalho de vários cronistas", afirma o jornalista e cronista Humberto Werneck. "Com isso, vários jovens escritores e jornalistas se formaram por meio da leitura desse gênero." Entre 1960 e 1963, quando foi embaixador do Brasil no Marrocos, Braga lançou mão de sua experiência com tantas viagens e relatou o cotidiano do mundo. "Ele misturava o útil e o fútil", comenta o crítico literário e professor de literatura da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) Davi Arrigucci Jr. - responsável pela seleção de crônicas do livro Os Melhores Contos de Rubem Braga (Editora Global, 1985), do qual também é prefaciador. "Retratava tanto o interior quanto as grandes cidades do mundo." Para Arrigucci, o cronista tinha a capacidade de escrever coisas complexas por meio de palavras simples. "Fundia o traço poético com sua habilidade narrativa, dando uma dimensão forte à lírica em prosa." Segundo o crítico, ao criar o alter-ego de Velho Braga - isso quando ainda era jovem -, o cronista adquiriu certo "distanciamento épico" importante para o lado narrador. Rubem Braga morreu no dia 19 de dezembro de 1990.

 

 

Voltar

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sobre um gênero breve
Sesc São José dos Campos apresenta exposição sobre a crônica

Com o intuito de jogar luz sobre o gênero da crônica, a unidade São José dos Campos apresentou, de 15 a 28 de abril, a exposição O Tempo Presente - Permanência da Crônica Literária no Brasil. Em parceria com o jornal Valeparaibano, a mostra expôs textos de cronistas que escreveram para esse diário, como Sílvio Ferreira Leite, que lançou o livro Revolução Silenciosa (Quality, 2007) na abertura do evento. "Para o livro, selecionei 60 crônicas reflexivas, as quais tendem a ser mais perenes", explica Leite. Também compôs a exposição uma instalação sonora, na qual os visitantes puderam ouvir crônicas de escritores como Rubem Braga, Stanislaw Ponte Preta e Otto Lara Resende. Além disso, duas outras atividades integraram o evento: Encontro de Cronistas do Vale, que visava a discutir o estilo da crônica feita na região; e Crônica: Um Gênero Brasileiro, um encontro com o jornalista Humberto Werneck, que traçou um panorama do gênero no país.

Voltar

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Obra perene

A vocação primeira da crônica é ser companheira da efemeridade dos jornais. No entanto, grandes autores tornaram-na duradoura, fazendo-a parar nos livros. Conheça outros bons exemplos:

 

 

João do Rio (1881-1921): pseudônimo usado pelo escritor e jornalista carioca João Paulo Alberto Coelho (1881-1921) ao escrever suas crônicas para, entre outros, o jornal Gazeta de Notícias. Parte de sua obra foi reunida no clássico A Alma Encantadora das Ruas (Companhia das Letras, 1997).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987): considerado um dos maiores poetas brasileiros, o escritor mineiro começou a publicar suas crônicas no Correio da Manhã em 1954, e mais tarde no Jornal do Brasil, de 1969 a 1984. Entre seus livros de crônicas está Fala, Amendoeira, (Record, 2004).

 

 

 

 

 

 

 

 

Nelson Rodrigues (1912-1980): autor de clássicos como Vestido de Noiva, estreou como cronista no jornal Última Hora, em 1950, com a coluna A Vida Como Ela É... O escritor é considerado um dos grandes mestres da crônica esportiva e comportamental. A obra O Óbvio Ululante: Primeiras Confissões (Companhia das Letras, 1993) reúne relatos sobre o conturbado Rio de Janeiro de 1968.

 

 

 

 

 

 

 

 

Carlos Heitor Cony (1926): jornalista e romancista carioca, Cony entrou para a Academia Brasileira de Letras (ABL) em 2000. Publica seus textos diariamente no jornal Folha de S.Paulo, além de ser o autor do livro de crônicas O Tudo e o Nada (Publifolha, 2004).

 

 

 

 

 

 

 

 

Luis Fernando Verissimo (1936): o cronista criou personagens anedóticos célebres, como a Velhinha de Taubaté e o Analista de Bagé. Escreve semanalmente suas crônicas para o jornal O Estado de S.Paulo. Entre os livros publicados está O Melhor das Comédias da Vida Privada (Objetiva, 2004).

 

 

 

 

Voltar