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Primeira vez
Era quinta-feira quando recebemos a notícia: os teatros do Sesc reabririam em breve. E com eles, aos poucos, outros espaços voltariam a oferecer atividades artísticas a um público presencial. Um certo misto de objetividade e subjetividade me invadiu. Objetividade: pensar em protocolos de reabertura, pesquisar medidas sanitárias, verificar a operação de outras casas voltadas a essa atividade, considerar que tipo de programação seria mais seguro, como comunicar ao público tudo isso, agendar reuniões com todos os setores envolvidos na retomada. Subjetividade: euforia, espanto, saudade, algum receio, algumas dúvidas, muitos desejos.
A sequência que se deu a partir disso foi uma série de Primeiras Vezes. O primeiro projeto presencial, o primeiro show, a primeira plateia, a primeira fruição coletiva, o primeiro aplauso, as primeiras interações.
A sensação de programar o primeiro projeto com público presencial, depois da pandemia, era de sonho: parecia um exercício imaginário, como se estivéssemos planejando algo impossível. Por mais que discutíssemos questões operacionais concretas, pensando na idade dos artistas, na quantidade de doses de vacina que teriam tomado, nas estratégias específicas para cada tipo de show, de acordo com seus instrumentos (distanciamento entre os músicos, teatro com maior distância entre palco e plateia, necessidade ou não de protetores de acrílico, dentre outras medidas), ainda assim, eu não conseguia formar mentalmente uma imagem daquele acontecimento.
E eis que aconteceu. O sonho, finalmente cristalizado no mundo tridimensional. No dia 15 de outubro de 2021, lá estava eu, no Sesc Pompeia, na abertura do Sesc Jazz, de cuja curadoria participara junto a um grupo seleto de colegas, para o show do Amaro Freitas.
Experimentei com prazer a sensação de estar pela primeira vez em meses diante de um palco formado não por câmeras, mas por globos oculares. Essas estruturas complexas que, assim como uma câmera, captam luz e convertem em sinal elétrico; mas este, por sua vez, é processado não por placas tecnológicas, mas por circuitos neurais. Circuitos neurais repletos de subjetividades. A escritora francesa Anaïs Nin nos disse que “não vemos as coisas como são: vemos as coisas como somos”. O simples ato de ver já é repleto de subjetividades.
E começou o primeiro show. O quão simbólico foi termos feito a abertura das ações presenciais com uma apresentação musical essencialmente afro, de um pianista negro que teve uma postura tão generosa nos arranjos, dando protagonismo aos músicos com quem dividiu o palco. Como foi bonito reabrirmos com um show que não se colocou acima da música, e sim a serviço dela.
Minha concentração, assumo, não era total. Fui distraída pela noção de que o mesmo acontecia, naquele momento, em diversos outros teatros da rede Sesc. Todos com suas primeiras vezes. O sentimento era de conexão: com a plateia que estava comigo, e com todas as outras, nas outras unidades, naquele momento. Foi impactante sentir de novo, pela primeira vez em tanto tempo, a experiência da fruição coletiva, como se fôssemos instrumentos ressoando harmônicos juntos, e não um empilhamento digital de samplers gravados, para fazer uma analogia com a relação entre show e live.
Terminada a apresentação, algo que me pareceu realmente inédito após meses de shows em telas: aplausos! Senti as mãos queimarem, batendo palmas pela primeira vez em mais de um ano. Aquela massa sonora percussiva, que aos poucos foi entrando em sincronia ritmada, me fez lembrar que, como diria Nietzsche, temos a arte para que a verdade não nos mate.
PRISCILA RAHAL GUTIERREZ é instrumentista, bacharel em Música com habilitação em piano pela ECA-USP. Atualmente integra a equipe de assistentes técnicos da área de Música da Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo.