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Márcia Denser

Paulo Sayeg
Paulo Sayeg

Bom, começou com o colégio Santa Teresinha do Menino Jesus (ou Santa Teresinha de Lisieux, meu amigo Pedro Paulo Senna Madureira é devoto – quando você vai parar de ensebar e entrar logo no maldito assunto do colégio?).

Estou hesitando porque foi lá que conheci o sofrimento, a primeira dor que doeria a vida inteira e que dói até hoje de forma inexprimível. Não. Nada é inexprimível para mim, escritora, ou não merece ser dito.

Não foi só a questão de ter uma cicatriz no meio da cara que me tornou tão miserável. Entre sete e dez anos – porque este foi o período calamitoso –, ocorreram meus primeiros confrontos com o mundo exterior com resultados dos quais não me orgulho. Mas, se não me orgulho (precisei muito de ajuda, pisei muito na bola), também não me envergonho (tem uns pontos um bocado positivos, umas vitórias importantes), já me perdoei, a mim e aos outros.

Não era só a cicatriz, eu também era gorducha e horrivelmente tímida e quando entrei na escola tardiamente, aos seis anos e meio, minhas colegas já eram al-fa-be-ti-za-das, que merda.

Irmã Maurília – minha primeira professora, jovem lindíssima e totalmente indiferente àquele bando mimado de meninas burguesas – me botou na fila C. Explico. A classe era dividida em fila A, das adiantadas, estudiosas e nerds; fila B, das medianas, esforçadas e espertinhas diversas; e C, das aberrações em geral, demasiado estúpidas ou preguiçosas ou problemáticas ou os três. Eu me sentei aí, me botaram aí: irmã Maurília, ao testar a classe, mandou ler um trecho da cartilha, como eu boiei, ela apenas apontou: fila C!

Consternadas, mamãe e eu decidimos, quer dizer, ela decidiu que eu seria A Primeira da Classe Absoluta e Indiscutível e eu – mimada e orgulhosa demais para mofar humilhada na fila C, mas demasiado preguiçosa para abraçar um programa de estudos não-fosse-Dona-Isaura-ter-sido-ferida-nos-brios – não tive escolha senão aceitar a porra do programa espartano que Isaura nos impôs (sim, porque ela amargou junto).

Levantar às 6 da manhã, café, trajeto até a escola, aulas, retorno, almoço do meio-dia às 13h; das 13h30 em diante, lições e estudo até 17 horas (quando ela ia preparar o jantar, única hora em que eu tinha chance de brincar); 19h30, jantar, televisão – ainda nos primórdios (1957), uns programas infantis terrivelmente constrangedores, tipo Cirquinho do Arrelia, no canal 7; já os adultos assistiam às peças do teledrama Três Leões, no canal 5 das Organizações Victor Costa (não era a Globo ainda), os shows musicais com Lana Bittencourt e Leni Eversong no canal 4, TV Tupi, e tudo ao vivo: vivamente capenga, ruim, bagaceira, preto e branco; 21h, cama, dormir e o ciclo se repetia.

Hesíodo deve ter se inspirado em alguém como minha mãe para escrever Os Trabalhos e Os Dias: ela era a encarnação viva da ordem e do progresso ao abrir as cortinas de seda estampada implacavelmente às 6 da manhã, chovesse, nevasse ou fizesse sol, pois quem não tem ordem não tem progresso, menina, dizia, repetia milhões de vezes: cruzes!

Outras mães voltam à escola, aprendem novamente com os filhos, curtem essa fase, mas Isaura era demasiado maluca e autoritária, demasiado mandona e histérica e ressentida para dar o braço a torcer – para ela estudar junto significava rebaixar-se! – e me vigiava igualzinho à Hidra de Lerna vigiando seu tesouro decoreba. Sempre tomava os pontos com os resultados em punho (lembrando que mamãe nem sequer concluíra o ginásio): outra vez, você pulou este, vamos repassar os afluentes do Amazonas!

Me fazia DECORAR tudo, história, geografia, catecismo, ciências, saber tudo de cor e salteado, uma vez que só mediante a recitação das lições ela teria meios de CONFERIR no livro o resultado dos seus esforços. Para mim aquilo era o exercício da mais abjeta tirania, mas como rebelar-se? Ela era a MÃE, autoridade suprema de todas as garotinhas entre sete e dez anos!

Os resultados? Em dois meses eu passava para a fila B, em três estava na A, identificada como a mais nerd entre as nerds! Passei do primeiro para o segundo ano primário com uma honrosa medalha de prata.

Nos anos subsequentes as medalhas de ouro se multiplicariam, sem contar o orgulho de meus pais, mas não me tornei uma nerd genuína e por uma razão aparentemente paradoxal: me apaixonei pelos livros aos nove anos, me tornei uma leitora compulsiva de ficção, como já contei no capítulo 1, escritora de novelas policiais aos 11 anos, e mandei as garotas, as matérias do currículo, o colégio e todas as medalhas de ouro do mundo para o diabo! – finalmente abrira a minha janela de esplendor, descobrira o único lugar no mundo em que podia ser eu mesma e viver em liberdade: entre as capas de um livro! Mas estou me adiantando.

Entrementes, na escola, as garotas continuavam tornando minha vida miserável: me botavam a língua, davam as costas, ninguém queria ser minha amiga ou brincar comigo no recreio, nem me incluir nos jogos de pegador, queimada, pular corda; os recreios e a maldita paineira florida eram meu calvário, minha via crucis: eu de castigo do mundo.

Lembro que enganchava sempre em alguma mais boazinha e compassiva (compassiva e boazinha com todo mundo, o que não valia muito) gorducha de óculos – eu também passara a usar óculos a partir dos oito anos, 2 graus de miopia detectados por irmã Eugênia, a baixinha dentuça e enrugada como um gato bravo, professora do segundo ano. Mas essas não contavam, até porque eram muito chatas, feiosas, puritanas, chamavam-se Maurícia ou Maurília: a companhia delas não despertava o menor entusiasmo.

Salvo quando era aniversário de alguém: aí todas te rodeavam, cantavam parabéns, você distribuía o bolo que sua mãe fizera especialmente, exibia os presentes: interesseiras!  Salvo dia de prova, quando aí, sim, sentavam-se, aliás, brigavam por um cantinho ao meu lado para que lhes passasse cola (canalhinhas interesseiras!). E eu cedia, feliz. Porque minha fome de amor era tanta que aceitava qualquer esmola, qualquer demonstração de afeto ou reconhecimento, aliás ansiava por eles.

Mas hoje percebo por que essa fase foi tão sofrida: era oprimida na escola pelas colegas e em casa por minha mãe – antes que eu descobrisse os livros, não havia nenhum momento de felicidade e liberdade! Uma contabilidade negativa terrível para uma criança. Um sofrimento que, em parte, poderia ter sido poupado, caso eu tivesse feito a escola preparatória, mas – quem sabe?

Meus pais quiseram me poupar – e se poupar – do crivo escolar e julgamento mundano ao matricular tardiamente sua filhinha com cicatriz no rosto, retardando, adiando a questão. Se eu estava sofrendo era também o sofrimento deles, a dor deles, a dor e o julgamento de todos nós, do nosso pequeno núcleo familiar solidário e unido nas tristezas e alegrias.

Tê-los perdido pelo caminho – meu pai em 1997, minha mãe em 2011 e Teréca, minha única irmã, em 2013 – eis a dor.

Márcia Denser é escritora e jornalista, autora de Tango Fantasma (Ateliê, 1977),

Muito Prazer (Record, 1982), A Ponte das Estrelas

(Best Seller, 1994), Toda Prosa II: Obra Escolhida (Record, 2008),

DesEstórias – Artigos e Crônicas (Kotter Editorial, 2016), entre outros.

O texto publicado nestas páginas faz parte de In DesMemórias,

obra que reúne memórias da autora e deve ser publicada em 2022.

 

 

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