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Entrevista com Luiz Alberto Mendes
Comecei a envelhecer na cadeia (...) Fui percebendo cair dente, cair cabelo (...) Aguentei 31 anos e dez meses, mas estava no limite.
Luiz Alberto Mendes nasceu em 1952, no bairro de Vila Maria, zona norte de São Paulo. Autodidata, passou boa parte da vida em reformatórios e penitenciárias do estado de São Paulo. Por mais de 20 anos foi professor na prisão e deu aula para 900 presos. Tomou gosto pela leitura e também começou a escrever. O primeiro livro Memórias de um Sobrevivente foi escrito ainda no presídio. Atualmente promove oficinas de leitura e escrita em penitenciárias e para egressos na periferia de São Paulo.
Mais 60: Para começar, conte um pouco da sua história.
Luiz Alberto: Acontece o seguinte, completei 31 anos e dez meses de prisão. Venho desde moleque na delinquência. Fugi de casa com 11 anos, meu pai era forte, gostava de bater, e as luzes da cidade me fascinavam e eu, moleque, não era igual às crianças da mesma idade. Eu seria taxado de hiperativo naquele tempo, vivia aprontando. Sempre fui muito ousado.
Quando você estava com 11 anos e foi morar na rua, por quanto tempo ficou? O que aprendeu neste período?
Ah, eu não sabia fazer nada, eram outros tempos e São Paulo era outra cidade. O centro era como um shopping de hoje, as pessoas dos bairros vinham no fim de semana. Tinha os magazines, o Mappin, bastante lojas, a “cidade” ficava cheia de gente no fim de semana, principalmente à noite. As pessoas jantavam em enormes mesas na frente dos restaurantes, a molecada ia no meio dessas mesas, pedia comida e eles davam. Era desse jeito que a gente se alimentava. Eles acreditavam nas instituições do governo, e aí, diziam: “Rapaz, o que você está fazendo aqui a essa hora, cadê sua mãe, cadê seu pai? Vou chamar a polícia e você vai para um lugar em que vai aprender a se educar”. O pessoal acreditava mesmo e chamava a polícia. Daí eles chegavam e levavam a gente para um local, que era chamado de paço, e jogavam a gente nas mãos de moleques mais velhos. Os moleques queriam tomar nossas coisas e a gente tinha que fugir. Para pular o muro e fugir, um tinha que subir nas costas do outro, só o terceiro alcançava, daí dava a mão para o segundo e o primeiro...
E você ficou quanto tempo nessa vida até ir para o presídio?
De vez em quando eu era preso. Aí ficava uns tempos no juizado e me levavam para casa. Minha mãe fazia meu pai assinar minha liberdade, porque tinha que ter essa autorização, e meu pai falava: ou trabalha ou estuda. Eu achava que ele estava certo em algumas coisas, mas era um cara violento, alcóolatra e batia em mim quando estava bêbado. Era uma coisa...
Você é filho único?
Sou. E ainda sobre o meu pai, havia um certo prazer dele em me bater, eu sentia isso quando apanhava, não era para educar. Ele acreditava que a educação entrava pela pele ferida, porque a mãe dele era uma portuguesa que enfiava o tamanco nele. Contava a história de uma vez que fugiu da mãe e ela tacou o tamanco nele, veio voando. Fiz até um texto chamado Tamanco Voador. Meu pai falava: “Olha, vamos na casa da minha mãe, mas se comporte porque tem um tamanco voador”. (risos)
Ele está vivo?
Não, morreu.
Como você foi preso?
Foi num tiroteio muito besta, em que fui baleado e dois policiais foram baleados também. Aí fiquei três meses e meio nas mãos dos caras e eles me torturando. Era o tempo da ditadura ainda. O dr. Fleury era diretor do Deic, me lembro, estive na mão dele, ele me pendurando no pau-de-arara, dando paulada nas unhas do meu pé. Eu pendurado no pau-de-arara e ele: pein! pein! Aquilo doía, pelo amor de Deus e eu não podia gritar, porque eles tinham enfiado um chumaço de pano sujo de chão na minha boca e davam choques e tal. Eles arrancaram minhas unhas do pé, fizeram de tudo. Até hoje tenho sequelas importantes, as duas unhas do dedão crescem encravadas.
A sua aproximação com a leitura começou no presídio?
Começou na privada. Era uma galeria larga, como essa aqui, cela pra lá e cela pra cá. No meio passava o encanamento, o esgoto, coberto só com caixas, e o esgoto que vinha de lá não era o mesmo que vinha de cá, (risos) juntavam na mesma caixa de contenção. Então a gente tirava a água da privada e dava para trocar ideia, conversar altamente. De noite, no silêncio, dava para trocar ideia, mas se a polícia pegasse dava mais um mês de castigo. Eu fui para tirar seis meses, acabei tirando dez meses por causa disso.
Você estava sozinho na cela?
Só eu. Morei em cela individual por 21 anos. Na cela forte, eu tinha acabado de chegar na penitenciária, com uns 20 anos, e tinha matado um cara na casa de detenção. Eles me mandaram de castigo para a penitenciária. Minha primeira condenação foi de 30 anos, latrocínio. E daí tinha um monte de assalto também. Cheguei a ser condenado a 133 anos. Eu não sairia mais e era um moleque, tinha 19 anos quando fui preso. E meu pensamento era não saio mais, esquece, vamos em frente. E me adaptei a viver na cadeia, o que tinha de melhor na cadeia eu usufruía, se chegava um grupo ou qualquer curso diferente eu estava no meio. Eu era escriturário da reforma, então andava na cadeia toda. Eu tinha acesso à educação, aos advogados, ao diretor. É a questão de “fazer espaço”. Eu não sabia fazer isso, mas aprendi na cadeia a montar espaços. Na verdade, assimilei para poder conviver com os guardas, com o diretor, com os advogados, com outras pessoas, porque eu via que meus companheiros não tinham essa capacidade, essa estrutura.
Eu sei que, conversando pela privada, encontrei um cara chamado Henrique Moreno. Você vê como são as coisas, hoje tenho relação com os netos dele. A polícia o matou. Ele persistiu, né? E tenho uma amizade muito grande com a mulher e as filhas dele, conheço desde pequenininhas.
Então o Henrique estava na outra cela?
Ele estava na outra cela e começou a contar a história do livro para mim. Foi assim que me fascinei pelos livros. O primeiro livro que ele me contou... isso foi há 45, 46 anos, cerca de 1973. A primeira história que ele me contou... porque era assim, de dia, a gente não podia ligar no “telefone”, o guarda ficava rondando. Ele passava por ora, escutava o que a gente estava falando. Aí, o primeiro livro que ele me contou a história, chama-se Les Misérables. Os Miseráveis, do escritor Victor Hugo. Primeiro ele contava em um intervalo, daí a pouco acendiam a luz, o guarda passava, a gente escondia e depois continuava e tal. Era por capítulos, demorou meses para ele me contar a história. São dois livros dessa grossura!
Você coordenou uma escola dentro do presídio?
É. Quando estive na casa de detenção, eu era um cara que não dava problema. Nós viemos em três pessoas, os mais bonzinhos da cadeia. Aí, chegamos lá e era uma cidade né? Sete mil e quinhentos homens, tudo aberto, abria de manhã e só fechava de noite. Um momento especial foi quando apareceu um pessoal da cultura hip-hop, aí conseguimos a cozinha com o diretor. Ela estava abandonada, lavamos com cloro puro, deixamos um brinco a cozinha, e ali fizemos um movimento. Trouxemos os Racionais MCs e um monte de grupos. Todos no meio da rapaziada, os grupos se misturavam com os caras.
Nesse momento você começou a fazer essa organização?
Primeiramente, me aconteceu uma coisa fan-tástica. Minha mãe me sustentava, eu me casei na cadeia. Minha mãe teve um derrame e eu só tinha minha mãe nessa época, ela ficou doente, com o lado direito paralisado. Ela não vinha mais me visitar e eu não tinha mais ninguém, estava praticamente abandonado. Daí eu falei, preciso arrumar uma mina, né? Arrumar um lugar, fazer um filho, uma família, senão eu vou ficar sozinho no mundo, e não deu outra. Uma prima de um amigo foi fazer visita e se engraçou comigo, tal, começamos a namorar e acabou que a gente se casou dentro da cadeia. (risos). Ela ficou grávida, mas foi por descuido.
Você tem quantos filhos?
Dois. Daí nasceu o Renato, ela me deu o pacote com 40 dias, pacotinho azul, deu na minha mão, assim, eu estava entre o pavilhão oito e nove, encostado no muro. Eu nunca tinha segurado um bebê, fiquei olhando, meu filho! Levei aquele choque, né? Daquele dia em diante minha vida mudou. Eu tinha um motivo para viver, cara. Um motivo muito forte, aquele nenê era meu, estava registrado no meu nome, porque eu casei só para poder registrar. A gente nem se amava, mas se não casasse ele teria pai ignorado no registro. Hoje está com 23 anos, terminou no ano passado o curso de informática, hoje é programador. O meu outro filho, de 18 anos, abandonou a escola e não quer saber de nada.
E voltando a história da escola, você dava aulas?
Eu cheguei em 1995 nessa penitenciária, daí minha mãe morreu. E quem sustentava o nenê? O Renato tinha dez meses, e quem sustentava a mulher e o Renato era minha mãe, porque minha mulher cuidava da minha mãe que tinha tido derrame. A aposentadoria da minha mãe era de um salário, viviam modestamente, mas dava para a gente viver. E lá na cadeia eu me virava, arrumava uma grana legal. Fazia bichinho de pelúcia, fiz para uma fábrica, muito louco. Eu fazia, vendia na cadeia, as pessoas da rua
mandavam vir comprar. E quando saí da cadeia, o moleque tinha nove anos e eu tinha sustentado ele por esses nove anos. Ele, a mãe e o irmão dele. Mas voltando ao início da história. Quando minha mãe morreu, falei com um diretor, comecei a chorar, né, estava desesperado. Eu me sentia responsável por aquela criança e minha alma não me permitiria que deixasse a coisa rolar. Estava pronto para colocar uma touca na cabeça e ir assaltar os gringos, lá no pavilhão seis. O diretor falou assim: “Eu vou te mandar para um lugar. Você vai lá e faz um teste, se der certo...” Ele me mandou para a escola. A escola estava precisando de um professor. Eu estava lendo esse tempo todo, fiz o teste e fui muito bem. E na conversa com o Cido, psicólogo que fez o exame, a gente começou a falar de livro, eu lia dez, doze horas por dia loucamente. Então foi aquele papo de três, quatro horas, eu ia lá todo dia falar com o Cido. Ele ainda trabalha na Funap com presos.
Você tinha mais atividades no presídio, além das aulas?
O Cido me ensinou a montar aula, tinha uma biblioteca e uma hemeroteca dentro do setor de educação e ele foi me ensinando tudo durante sete anos. Daí a Funap foi para outro lugar e não pôs ninguém porque a Detenção ia acabar. A pessoa que era a encarregada geral de dez penitenciárias confiou em mim. Ela falou que eu ia ser o chefe e que tinha de coordenar a escola. Então eu aprendi, montei a escola em dois anos e fiz a grade [de aulas] sozinho, nesse tempo. Eu só tinha um amigo, que no segundo ano arrumou um computador, e aí começamos a trabalhar para registrar tudo. Nós pegamos a escola com 600 alunos e quando saí de lá estava com 900. De 35 alunos, nós pusemos mais 30, à noite. Eles não deixavam ter aula no pavilhão nove, não deixavam ter aula à noite porque diziam que era perigoso, não sei o quê. Nós fomos em cima dos diretores e conseguimos duas salas durante a noite. Conseguimos dar aula para todo mundo.
Você reflete mais agora?
Sim. Por exemplo, na prisão a situação é mais ou menos assim: eles pegam um cara que roubou um shampoo no supermercado e botam na cadeia. Pegam um cara que assaltou um banco e botam do lado do moleque, um cara que sequestrou e põem também na cadeia. Pegam o cara que traficou e põe tudo junto, enterram em pé e abandonam na mão do diretor e dos carcerceiros. Já era. Quer dizer, a sociedade não vai lá dentro para oferecer nada diferente, os caras ficam submetidos à chamada cultura do crime, porque cada um tem o seu modus operandi, o seu local de ação criminal e cada um tem uma informação a dar.
São coisas que começam a doer na consciência, começa a pesar, você começa a refletir. Por isso que quando o cara envelhece pensando, ele envelhece no amor, vira um velhinho bom, por causa disso. Ele começa a pensar “nossa, quanto tempo perdido, quanta besteira”, porque tempo é vida. Por exemplo, o tempo que você gasta no trabalho é o tempo da sua vida que você vende, então você está vendendo sua vida por... nem é dinheiro, por coisas. Porque o dinheiro é para comprar coisas, não é para acumular.
Como é envelhecer na cadeia?
Comecei a envelhecer na cadeia. Saí da cadeia com 51 anos de idade. Fui percebendo cair dente, cair cabelo, dentro da cadeia. Aguentei 31 anos e dez meses, mas estava no limite. Minha mente já não estava coordenando direito as coisas, eu estava começando a chapar, e foi aí que comecei a escrever. Comecei a escrever para entender eu mesmo. Tive uma noiva na cadeia por dois anos, que era psicóloga, tinha formação, inclusive na Fundação Jung, na Suíça. A menina falava quatro, cinco idiomas, linda, dei a maior sorte. Eu tive oito mulheres enquanto preso, cheguei a casar dentro da cadeia, fazer filho dentro da cadeia, vivi dentro da cadeia. E você perguntou como é envelhecer, é difícil, cara, você começa a ficar doente, começa a necessitar de suporte para sua saúde, e a situação da saúde nas cadeias é precária, entendeu? Para você ser atendido no hospital é difícil, pois precisa arrumar escolta, é uma situação muito complicada. O cara doente na cadeia, morre, geralmente morre.
Você via muitos velhos quando estava na cadeia?
Muitos. Teve uma época, depois que completei 49 anos, ia para 50, que eu estava na penitenciária do estado e a secretaria decidiu que precisava fazer uma penitenciária de velhos. Aí pegaram os velhos de todas as penitenciárias e me pegaram também, todo mundo de 1952 para cá ia para esse lugar. Pegaram eu e todos remanescentes da minha época e levaram para lá.
Mas qual era a diferença?
A gente pensou nisso, prisão para velho, deve ter algumas facilitações, pelo menos. Chegando lá, era a penitenciária compacta de Serro Azul 2. Compacta, dois caras em uma cela, beliche com três. Os velhos começaram a cair dos beliches. Daí todo mundo começou a fazer petição para sair e começaram a tirar os velhos...
Luiz, como foi o momento em que falaram que você estava livre e podia ir embora?
Estava digitando, eu tinha um [computador] 486 que o Fernando Bonassi me deu, eu ficava na sala da educação com o pessoal e podia escrever em um computadorzinho lá, estava escrevendo Memórias II, aí, de repente, o guarda chegou em mim: “Qual é seu nome?”. “Luiz Alberto Mendes. ” E ele, “então, cara, vai arrumar suas coisas lá, que você está livre”. Eu olhei para o guarda e disse: “Você está brincando? Não brinca assim comigo, não gosto dessas brincadeiras não, vai me aborrecer de bobeira. Para que isso, irmão, isso é sacanagem”. Comecei a levantar a voz para o guarda, e ele, “não, meu, é verdade, vai embora mesmo”. Daí eu fechei o Windows, fechei a máquina, fui para o pavilhão, entrei na cela e liguei para os caras do “xadrez”. Mandei eles virem e falei: “Olha, estão falando que eu vou embora, mas eu não acredito não. Esse negócio aí é mentira, porque estou mais de 30 anos nessa porcaria e não me soltam, eu não pedi nada. A minha pena era de 84 anos e eu não pedi nada”. Saí pela lei dos 30, cumpri mais de 30 anos, todas as minhas penas foram extintas e eu estava livre.
Como foi a sensação de liberdade?
Entrei no ônibus e só me senti livre quando senti o cheiro de São Paulo. Aquele cheiro de gasolina queimada, adorável, maravilhoso. Paulista não sabe a delícia que é aquela multidão de gente, aquele formigueiro, aquela gente colorida, todas aquelas mulheres lindas (risos). Eu sentia, “oba, que bom estar aqui...”. Aí o pessoal da revista Trip foi me buscar. Eu já escrevia para a Trip, já tinha feito o primeiro livro, Memórias de um Sobrevivente. Comecei a escrever na cadeia, dois anos antes de sair, o Memórias que foi editado e o Paulo Lima, da Trip, me procurou e contratou como colunista. Já faz 17 anos que sou colunista da revista, toda edição tem um texto meu. Daí o pessoal da Trip me pegou no Terminal Rodoviário do Tietê e fui para a casa de uma mulher com quem eu ficava, no Rio de Janeiro.
E você começou a escrever livros fora também?
Fora também. Daí já tinha internet e comecei a escrever. Escrever até que... Todo mês eu vinha para São Paulo ver meus filhos, lógico, depois voltava para o Rio, mas ficava agoniado para voltar para São Paulo de novo. Minha mulher era madura, séria, uma pessoa muito legal, mas teve um momento em que discutimos e fui embora. Vim para São Paulo e fui morar na casa que minha mãe deixou para mim. As crianças e a mãe morando embaixo, a casa da frente alugada e a minha nos fundos. Aí arrumei a casa, estava ganhando uma grana pesada, porque o meu primeiro livro, Memórias de um Sobrevivente, vendeu que nem água. Eu fiquei mais ou menos dois anos ganhando uma grana legal e gastando legal também! Só coisa boa que eu não conhecia, por exemplo, anel no dedo todo bacanão, e hoje não tenho mais condição. É o que estou falando, quando cheguei aos 50 achei que eu era o melhor agora, aos 60, estou achando uma porcaria.
Luís, sabemos que a pirâmide etária está invertendo, daqui há alguns anos teremos muito mais velhos do que pessoas de outras faixas etárias no Brasil. Você acha que o sistema penitenciário está se adequando? O que precisa ser feito?
Por enquanto a maior população da cadeia é de jovens. O que a gente vê é a molecada fascinada pelo crime. Faço muita oficina de Leitura e Escrita em penitenciária. E o que vejo são moleques loucos por completar 18 anos para entrar no partido, para ser irmão, entendeu? A conversa é de crime mesmo, a cultura criminal lá é disseminada, mas você vê que são moleques ainda, que aceitam uma ideia legal, que choram quando falam da mãe e quando pensam na vida lá fora. Ainda pensam, sentem, trazem muita coisa de jovem, de adolescente e eu acho que o Estado tem que agir massivamente em cima deles. Massivamente! Hoje nós estamos com cerca de 500, 600 mil presos no Brasil. Só no estado de São Paulo são 230, 240 mil.
Dentro da cadeia tem esse respeito entre os mais velhos e os mais jovens?
Eu vou dizer, há, sim. Tem um certo respeito pelos mais velhos, mas não é como em uma sociedade, não há uma regra nesse sentido. Então o mais velho que deu mancada vai “entrar na madeira” que nem o mais novo, não tem uma preferência. Você quer ir ao banheiro vai depois de mim, não tem esse negócio de facilitar. O preso não facilita para o mais velho só que o cara, quando é mais velho, tem vivência, tem coletividade, tem ambiente, sabe se virar, geralmente, comandando. Esse é o problema, ele que passa a lição. Então, a situação do mais velho na cadeia não é uma situação segura, ele não é bem-tratado, não é bem-cuidado, as autoridades nem ligam, é só um preso. E os cuidados com saúde não existem, a questão da saúde para o velho na cadeia é um perigo.
Luiz, em uma das suas entrevistas, você disse que: “Cultura, é uma coisa que não morre. As pessoas não estão nem aí com a cultura do preso. A sociedade precisa entrar nas prisões para oferecer cultura aos presos, pois eles são vítimas de uma cultura criminal”. Fale mais sobre isso.
É exatamente o que nós estávamos conversando. A única chance que o preso tem é de a sociedade entrar na prisão, porque existe uma verba para recuperar o homem aprisionado. Quando o homem aprisionado sai, acontecem mais de 75% de reincidências. De cada quatro, um fica [solto], e conhecendo a letalidade da polícia brasileira, você sabe que esse único pode morrer. Quer dizer, o sistema está em crise, o cara sai sabendo que vai voltar [para a cadeia], é uma situação que não está resolvida, um problema seríssimo. Ainda bem que as leis são brandas. Imagine você, onde existem 600 mil homens, quantos gênios não tem? Se tiver um só, mas existem milhares, centenas, conheci centenas.
Nós só lidamos com a ideia do agora. Ainda não se entendeu, por exemplo, a mensagem do desapego, que é fundamental. É tudo muito confuso aqui fora. Uma pessoa de idade aqui fora fica no nicho dela, vive aquele espaçozinho, não se desenvolve. Como ela é velha, acha que acabou a vida. Meu, estou com 66 anos, sou transplantado, estou com possibilidade de ter outro câncer, se não tiver vou estar bom e é o seguinte, estou fazendo filme, escrevendo livro, com mil ideias, estou trabalhando num negócio que se chama Estamparia Social, que olha, vou te dizer, é qualquer coisa de fantástico. Uma ideia de dar emprego para os caras, para serem autônomos. Na sua casa mesmo dá para filmar, estampar e sair de manhã cedo vendendo no farol. E a gente está trabalhando com isso daí. Esse povo, uma parte muito grande, é de ex-presidiário, de egressos. E nossa batalha é a dos egressos, porque é como se o egresso não existisse, a situação não se resolve, tem preconceito social, não há emprego e o único local onde não tem solução é a situação da prisão.
Então você continua com projetos de vida?
Sim, vou começar em janeiro uma oficina de Leitura e Escrita na penitenciária feminina. Já está tudo combinado com a Funap e não é só isso, tem um monte de coisas, vou entrar em tudo quanto é negócio. Aproveitar minha vida, o que resta dela. A verdade é que vou deixar um legado, já tenho seis livros editados, quatro livros em editora, tem filme, a gente vai fazer essas coisas e deixar meu nome na história. Isso até que não é muito importante, o importante é deixar alguma coisa aí no mundo que valha a pena. Que alguém leia e diga “pô, foi ele quem fez”.
O importante é que tomei consciência, não roubo uma palha do mercado. Não me envolvo em nada. Não estou interessado em negócio de crime, quase não tenho relação com criminoso. Ou melhor, tenho, porque estou trabalhando com essas coisas e tal, vou entrar nas cadeias, então vou ter uma relação, saber quem é e só.
Muito obrigada, Luiz, por compartilhar sua história com os leitores da mais60.
Foi bom? Legal...