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Farofada boa

texto: Gabriel Vituri
fotos: João Castellano

 

Quando é verão no Brasil, sobretudo no fim de ano, quando as famílias se reúnem para curtir a folga e as festas, surgem estampadas em jornais, revistas e reportagens televisivas imagens que por um momento chegam a espantar: milhares de guarda-sóis, isopores, cadeiras de plástico, boias infláveis e, claro, gente, muita gente, se aglomeram e disputam um espaço nas praias mais movimentadas do país.

Aos olhos de uma grande parcela da população, isso tem um nome, ou variações sobre um mesmo tom. Farofa, farofada, farofeiros. Feita a partir da mistura da farinha da mandioca (ou do milho) com ingredientes que variam conforme a região, a farofa é um prato brasileiro típico que, segundo estudos, acompanha nossos hábitos culinários desde a época colonial. Por ter um ingrediente de baixo custo, a farinha, como sua matéria-prima principal, a iguaria é comumente associada a refeições mais simples e humildes, predominantemente entre as populações mais pobres do país, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste.

Ainda que gastronomicamente uma boa farofa seja saborosa e versátil, a mesma palavra, em outro contexto, reforça preconceitos que também nos acompanham desde os tempos coloniais. “Farofada” ou “farofeiros” são termos que servem para definir famílias inteiras – em geral, mais pobres – que se reúnem em espaços públicos para desfrutar de momentos de lazer. À beira-mar, em lagos ou represas, essa parcela da população é muitas vezes alvo de chacota e discriminação, permanecendo distante de praias com melhor infraestrutura e de outros destinos onde o movimento turístico é mais elitizado.

 

A revelação

Talvez por isso não se veja em cartões postais a realidade que João Castellano, 30 anos, decidiu retratar. Pelo contrário: são justamente os momentos de lazer dos “farofeiros”, com todas as suas cores, isopores e boias, os grandes protagonistas do ensaio Sou Farofa, que começou a ser feito em 2012 e de tempos em tempos é retomado por ele para novas incursões. A estreia do projeto aconteceu meio ao acaso: convidado por uma publicação a fotografar a Represa de Guarapiranga, localizada no extremo sul da cidade de São Paulo, João acabou saindo do roteiro inicial do trabalho e saiu registrando, “do meu jeito”, como ele reforça, famílias que ocupavam aquele espaço em busca de lazer. O resultado foi uma excelente surpresa, e as imagens acabaram roubando o destaque da pauta inicial e se transformaram em um ensaio de várias páginas.

Pouco a pouco, as incursões de João Castellano por ambientes repletos de “farofeiros” se tornaram mais frequentes. Mas essa é só uma parte da história. Muito antes de aportar na Guarapiranga com seu equipamento, quando já ocupava um cargo estável na redação de uma revista de grande circulação, o fotógrafo transitou por espaços diversos e viveu uma série de reviravoltas. 

“Meu sonho era ser jogador de futebol, sempre. Eu ia pra escola pra jogar bola”, recorda. Como ficava no gol, uma posição muitas vezes indesejada no futebol de rua, João tinha espaço em qualquer pelada, e a sua obsessão pelo esporte predominava sobre todas as coisas. Então, quando seu pai não permitiu que ele aceitasse um convite para fazer testes de goleiro em um time do interior, não chega a ser surpreendente o fato de isso ter transtornado sua cabeça. “Eu fiquei bem perdido, não tinha ideia do que fazer”, lembra o fotógrafo, que a essa altura já havia abandonado os estudos.

Sem rumo, João começou a fazer alguns trabalhos como office boy, mas continuava frustrado pelo sonho futebolístico interrompido. Percebendo o estado de espírito em que ele parecia estar afundado, sua irmã o convidou para ir até a Califórnia, nos Estados Unidos, onde ela morava, para fazer uma viagem de meses junto dela e do namorado. O plano: descer da América do Norte até São Paulo de carro, passando por diferentes países latinos até chegar ao destino final. Além de ver o mundo com outros olhos, “comecei a perceber que as pessoas são parecidas, a diferença é como elas foram educadas nas suas regiões”.

João, por influência do cunhado, entrou em contato com o que viria a ser sua profissão muitos anos depois, a fotografia. A princípio, a ideia de “vou ser fotógrafo” tinha algo de “não preciso estudar pra isso”, um pensamento que se dissipou logo que ele chegou ao Brasil, cerca de seis meses depois. “Quando fui revelar meu primeiro filme, coloquei o papel na bandeja, chacoalhei e a imagem surgiu. Nem sei te explicar o que foi aquilo. Foi a coisa mais incrível que eu já vi na minha vida”, lembra João, que tinha recém-começado um curso de fotografia no SENAC. No segundo módulo do programa, ele conta, seu pai foi à falência, e com a saúde financeira da família abalada, o estudante saiu atrás de trabalho. Paralelamente a um estágio não remunerado que fazia com um fotógrafo profissional, que ele logo abandonou, passou a fazer de tudo: se apresentava como malabarista em semáforo, cuspia fogo em festas, entregava pizza, pegava bicos de garçom e trabalhava em lojas diversas.

Por mais que àquela altura já soubesse para onde seu desejo apontava, a questão que o rondava era: “Mas fotógrafo de quê?”. De qualquer coisa, pensava. Depois de retomar o curso do SENAC, que ficara paralisado durante um período, continuou a fazer bicos, terminou o segundo grau no sistema de ensino supletivo e se inscreveu em um curso de graduação em Publicidade e Propaganda. No meio dessa tormenta, eis que surgiu uma luz. Convidado por um amigo a assistir a um jogo decisivo, direto do gramado, presenciou o corintiano Dida defender dois pênaltis de Raí, ídolo são-paulino na época, e decidiu que seria fotógrafo de futebol. Em 2004, enfim, João ingressou em uma agência de fotografia e dali em diante a profissão foi se transformando em uma atividade consistente em sua vida. João Paulo De Araújo Pinto, então, passava ali a adotar o nome que carrega até hoje, João Castellano, em uma homenagem à origem italiana da mãe.

“Ela sempre dizia que pra ser bom em alguma coisa é preciso estudar. Decidi ir pra Nova York atrás disso”, lembra. Se conseguisse ser um bom fotógrafo por lá, ele imaginava, não haveria lugar onde não o pudesse ser. E João foi, “sem falar inglês e sem conhecer ninguém”, aprender fotografia e trabalhar aqui e ali para sustentar sua estadia na metrópole norte-americana. Aos poucos, aproximou-se de profissionais que lhe deram abertura e o incluíram em jobs pela cidade – de casamentos a festas de estilistas renomados. Chamado mais de uma vez pela revista IstoÉ para ocupar uma vaga na redação, acabou voltando ao Brasil anos depois, em 2010 – mais experiente, com emprego fixo assegurado na mala, porém persistentemente irrequieto.

 

 

Nas farofadas de norte a sul, só muda o sotaque

Em 2012, convidado por uma publicação a fotografar a Represa de Guarapiranga, na zona sul de São Paulo, João aproveitou o momento para também fazer imagens das famílias que ocupavam o local em busca de lazer. O projeto ganhou corpo e se transformou no “Sou Farofa”. Além da Guarapiranga, há registros em praias do Nordeste, piscinões e beiras de rio em várias cidades do país. A expectativa é que parte dessas milhares de fotos sejam publicadas em um livro, que ainda aguarda financiamento.

 

 

Farofada

Quando as incursões de João Castellano por ambientes inundados de farofa começaram a se tornar uma realidade, ele ainda não sabia bem onde queria chegar com aquilo. Em 2014, então, por conta de um festival internacional de fotografia em Paraty, no litoral do Rio de Janeiro, ele apresentou seu trabalho a David Alan Harvey, um renomado fotógrafo californiano da agência Magnum. “O único ensaio de verdade que eu tinha era o da Guarapiranga, e o cara pirou. Me pediu pra fazer mais dezenas de fotos como aquelas. Saí de lá e comecei a produzir que nem um maluco”, ele recorda. David, explica João, dizia que imprimir as imagens e pendurá-las é a melhor forma de enxergar um trabalho de fotografia e assim melhorá-lo, se for preciso. Quando seguiu o conselho, percebeu um traço seu estampado na parede: “Só tinha foto de pessoas negras, gordas, e eu percebi que era muito preconceituoso”.

Aos poucos, e ao mesmo tempo em que se afeiçoava àqueles ambientes, ele notou a relação estreita entre a palavra “farofa” e o preconceito. t, reflete o fotógrafo, ele mesmo um farofeiro, segundo conta. “Meu pai é pescador e baloeiro. Em bancada de balão e em beira de rio o que mais tem é farofa.”

Entre praias do Nordeste, piscinões e beiras de rio, João Castellano registrou milhares de momentos, literalmente. A diferença entre um lugar e outro, contudo, é coisa que não se vê nessas fotos todas: “Só o sotaque [é diferente]. Pobre é pobre em qualquer lugar. É o povo brasileiro. Onde é isso aqui? Não interessa o lugar, o que interessa é o povo. Você tem uma água e uma população pobre, vai ter diversão, vai ter reunião familiar”. O ensaio, ele reforça, “é sobre o farofeiro, o brasileiro”. Com equipamento em punho, muitas vezes usando flash na hora de clicar, era impossível que o fotógrafo passasse despercebido. Após se apresentar e explicar a proposta do trabalho, não era incomum que seus interlocutores se adiantassem, “mas eu não sou farofeiro”, diziam, uma reação que era logo transformada em hospitalidade após mais explicações de João. “Eu mostrava que era justamente isso o que eu propunha, mostrar que a farofa não precisa ter conotação pejorativa”, conta, destacando a grande hospitalidade da maioria dos fotografados, farofeiros autodeclarados ou não.

 

 

Fora das redações desde meados de 2016, João Castellano segue buscando experiências que o transformem. A última, ainda em andamento quando ele conversou com os Cadernos de Cidadania, era conhecer a guerra de perto. Depois de sair do emprego que o trouxe de volta ao Brasil, arrumou suas coisas e, junto com outro repórter, um amigo próximo, foi passar uma temporada no Iraque em busca de materiais jornalísticos.

Em paralelo, o objetivo do fotógrafo é transformar “a farofa”, como ele chama o ensaio, em um livro com 60 fotografias, projeto que ainda não saiu do papel por falta de apoio financeiro. Publicado em diversas revistas internacionais, na França, China, Alemanha e Estados Unidos, por exemplo, o trabalho é indissociável do seu grande tema: a exclusão. “Ele não é artístico, é documental e autoral. Eu documentei a realidade do povo brasileiro”, diz ele. Sou Farofa, como o próprio João sintetiza, tem um propósito claro: “Nos levar a lugares onde não queremos ir, nos mostrar uma realidade que não queremos enxergar, e assim nos fazer questionar nosso próprio preconceito”.