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Destino Ética
*Por Renata Valdejão
Na contramão das crises econômicas que têm assolado diversos países ao redor do mundo, o turismo avança. Segundo a OMT (Organização Mundial do Turismo, órgão especializado da ONU), o número de chegadas internacionais cresceu 46 milhões em 2016 em relação a 2015, alcançando a marca de 1,2 bilhão. Foi o sétimo ano seguido de crescimento do setor – sequência que a OMT não registrava desde a década de 1960. Direta e indiretamente, a indústria do turismo responde já por quase 10% do PIB (Produto Interno Bruto) global.
Mas o que isso significa?
A cobertura da grande mídia sobre o tema em geral se concentra justamente no aspecto econômico – dólares movimentados, empregos gerados, resultados das empresas do setor – ou então se reduz a dicas de viagem, perfis em geral superficiais de destinos badalados, avisos de promoções de passagens aéreas ou de diárias de hotéis etc. A indústria do turismo, por sua vez, reforça esse discurso, enfatizando aspectos comerciais.
Pouco se fala, contudo, da qualidade desses empregos, do impacto social desses deslocamentos, do que acontece nas comunidades invadidas por turistas depois que as luzes se apagam e eles vão embora. Em uma só palavra, pouco se fala dos aspectos éticos da atividade.
Nos últimos anos, pois, não foram só os dados de faturamento do setor que cresceram. Cresceram também os protestos contra atividades turísticas predatórias e seu impacto tanto social como ambiental. Movimentos nesse sentido já foram registrados em Veneza (Itália), Barcelona (Espanha) e Lisboa (Portugal). “[Os protestos] Expressam um cansaço e uma sensação crescente de estranhamento das comunidades locais diante da avalanche turística em algumas grandes cidades”, analisa o escritor espanhol Joan Buades, que estuda turismo e economia e é autor do livro “Exportando Paraísos - A colonização turística do planeta” (Alba Sud Editorial).
No caso de Veneza, Barcelona e Berlim, entre outras cidades com intenso afluxo de turistas, por exemplo, as reclamações atingiram aplicativos de aluguel de imóveis para turistas, como o Airbnb, através do qual as pessoas anunciam, descobrem e reservam acomodações ao redor do mundo. No Airbnb, qualquer proprietário de imóvel pode se cadastrar para disponibilizar a viajantes do mundo todo um quarto ou imóvel inteiro para locação.
"Veneza Morre de turismo” - Mulher participa de protesto em Veneza, Itália, que criticou o atracamento de grandes embacações na cidade, com expressivo impacto social e ambiental | Foto: Annette Dubois
O que parece apenas uma boa ideia, ligada à prática da chamada economia colaborativa (que tem como base a tecnologia conectando usuários por meio de aplicativos e plataformas online e que se encaixou como uma luva no setor turístico), contudo, em muitos casos se revelou um mecanismo nocivo de especulação imobiliária e gentrificação. Isso porque a popularização desse tipo de ferramenta tem levado moradores a abandonar prédios ou bairros inteiros em que habitavam há décadas, expulsos pelo encarecimento de aluguéis e pela escassez de imóveis disponíveis para contratos de longo prazo (afinal, locar para turistas por um dia ou uma semana é muito mais rentável, apesar dos riscos embutidos no negócio).
Como tudo o que diz respeito a esses novos aplicativos – não só os de locação, mas também os de transporte, como o Uber, e os de operações financeiras, entre muitos outros –, a regulação dos serviços prestados nem sempre existe ou nem sempre é satisfatória. A tecnologia caminha muito mais rápido do que as discussões jurídicas e éticas necessárias a essas questões.
Mas o Brasil, ao menos no caso do Aibnb, parece estar numa posição mais confortável do que países da Europa, segundo conta o advogado Rui Badaró, coordenador da Escola de Direito Internacional da ABDI (Academia Brasileira de Direito Internacional). De acordo com ele, no que tange à legislação brasileira, o Airbnb segue as regras do Código Civil e demais legislações aplicáveis à locação por tempo determinado de um imóvel ou parte dele. “Já no mundo, temos notícia de que vários países, dentre eles, França, Espanha e Portugal, estudam o impacto desses aplicativos no setor de turismo para estruturar possíveis regulamentações específicas”, conta.
O AirBnb é um exemplo dos problemas gerados pela nova “economia colaborativa”, afirma a professora Ana Paula Garcia Spolon, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) para as áreas de hospitalidade e estudos urbanos. “Não existem cidades sem pessoas. A cidade não é um território vazio, é um espaço social, de interações, de vivências. E essas vivências hão de ser harmoniosas”, diz. “Lidar com isso é buscar o equilíbrio e a conjunção de interesses, o que deve implicar perdas e ganhos para ambos os lados. A boa negociação não é a que privilegia um dos lados, é a que garante ganhos a ambos, mediante concessões das duas partes”, afirma.
De acordo com ela, o uso da tecnologia e, portanto, das plataformas e negócios colaborativos e criativos, é irreversível. “E isso é bom”, classifica, se feito de maneira responsável. “A vida segue, e os negócios, pessoas, sociedades e cidades precisam se reinventar continuamente.”
Cartazes e pichações em Barcelona, Espanha, protestam contra o turismo predatório
Consequências
Para complicar ainda mais a discussão, há que se considerar que os locais mais visitados por turistas em geral correspondem a uma pequena porção do território mundial. No Brasil, por exemplo, os destinos turísticos, juntos, englobam só de 2% a 3% de todos os municípios do país, segundo estudo da professora Rita da Cruz, especialista em geografia do turismo pela USP (Universidade de São Paulo). Esse grande afluxo de turistas a um espaço físico muito limitado só faz agravar ainda mais o impacto das atividades do setor.
Segundo o professor João Paulo Faria de Tasso, não é possível dizer que o Brasil não faça nada no sentido de promover um turismo mais ético, mas, por outro lado, isso está longe de ser uma prioridade. Tasso é professor adjunto no Centro de Excelência em Turismo da Universidade de Brasília (CET/UnB), membro do Núcleo de Políticas Públicas em Turismo (NPPTUR/UnB) e também atua como coordenador de projetos técnicos do Ministério do Turismo (MTur).
“Se analisarmos as ações de âmbito nacional voltadas, por exemplo, à educação e formação profissional em turismo, perceberemos que um volume substancial de recursos foi investido pelo Ministério do Turismo, principalmente com o advento de grandes eventos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas”, afirma.
“Contudo, mesmo se tratando de ações essenciais para a melhoria dos serviços turísticos, foram fundamentadas, em muitos casos, no pragmatismo de atender às exigências de postos de trabalho, e não em um processo de construção social e de desenvolvimento humano”, completa. Ou seja, a lógica dessas ações é comercial: o treinamento qualifica a mão de obra, mas pouco se preocupa com a dimensão social disso.
De acordo com Tasso, a busca por um processo participativo e colaborativo na elaboração e nas discussões de políticas públicas de turismo deve envolver atores de diferentes setores da economia nos processos decisórios. “Na prática, porém, essa abertura de espaços de diálogo entre o poder público e a sociedade civil é prejudicada por falta de representatividade, heterogeneidade na linguagem, disputas e jogos de interesse, entre outras coisas.”
Tasso lista uma série de consequências nocivas do crescimento descontrolado do fluxo de visitantes de um destino, como a “apropriação de áreas comuns por investidores externos” e a “falta de planejamento participativo pelo poder público”. Com isso, diz, “pescadores artesanais e agricultores familiares podem ter acesso prejudicado às áreas produtivas, pela instalação de grandes conglomerados de redes hoteleiras”, e mesmo “moradores locais podem ser preteridos das oportunidades de pleno emprego na cadeia turística, restringidos a trabalhos precários, sob regime de subordinação e não tendo seus direitos trabalhistas assegurados”.
Ainda em relação aos prejuízos diretos e indiretos do turismo descontrolado, Tasso cita “processos de desenraizamento cultural e falta de valorização das manifestações de identidade local, em função da crescente padronização dos atrativos”, “a ampliação expressiva nos custos econômicos decorrentes da especulação imobiliária, forçando residentes a buscar espaços de sobrevivência em regiões rurais marginalizadas e sem acesso à infraestrutura básica e aos serviços públicos” e ainda “problemas e falta de incentivos efetivos para inclusão socioeconômica das comunidades locais, seja por meio da educação e da formação profissional, seja pelo apoio ao empreendedorismo individual e coletivo”.
Mais do que criar leis de incentivo ou instrumentos de controle, o professor da UnB defende que é preciso que o desenvolvimento do destino seja pensado de forma integrada, com o envolvimento dos diversos setores produtivos e de todos os atores sociais que serão impactados, desde o planejamento, passando pela execução e pelo monitoramento, até a avaliação final. “Só assim, a partir desse modelo integrado de desenvolvimento, será possível conquistar justiça social, primando pela equidade, pela eficiência econômica, pela valorização da identidade cultural e pela prudência ambiental”, pondera.
Turismo ético
A discussão sobre a ética no turismo – ou a ausência dela – não se restringe ao âmbito nacional nem é novidade para profissionais e comunidades ligados à atividade. Em 1999, para refletir sobre essas questões e propor caminhos mais éticos ao setor, a OMT promulgou o Código Mundial de Ética para o Turismo, chancelado pela própria OMT e por representantes do setor turístico mundial, incluindo delegados de Estados, territórios, empresas, instituições e organismos setoriais.
O texto do Código já em seu início reafirma o direito ao turismo e à liberdade de deslocamento turístico, enfatizando, entre outros, “os princípios orientados a conciliar de forma sustentável a proteção ao meio ambiente, o desenvolvimento econômico e a luta contra a pobreza” e a constatação de que o turismo, seja ele por motivo de “lazer, negócios, cultura, religião ou saúde”, possui “poderosos efeitos positivos e negativos no meio ambiente, na economia e na sociedade dos países emissores e receptores, nas comunidades locais e nas populações autóctones”.
O Código é composto por dez artigos, que abordam os componentes econômicos, sociais, culturais e ambientais do setor. Os princípios apresentados destacam a responsabilidade de turistas, empresários, profissionais e demais agentes do desenvolvimento turístico na construção de uma nova ordem turística mundial, que promova a redução das desigualdades econômicas e a justiça social, conciliando os resultados econômicos com a preservação da diversidade ambiental e sociocultural dos povos. O Sesc em São Paulo foi a primeira instituição privada a aderir ao Código no Brasil.
Apesar de fomentar um debate importante e necessário, especialistas no assunto fazem algumas ressalvas ao documento, principalmente por sua disposição em “conciliar os resultados econômicos” com um ideal ético. “É um código ocidental, capitalista e patriarcal, que coloca na escuridão outros tipos de cultura que não a ocidental e capitalista”, critica o professor Helio Hintze, doutor em Ciências (Ecologia Aplicada) pela USP e especialista em Ecoturismo pelo Senac. “Ele [o Código] dá o start nessa discussão, mas sua miopia etnocêntrica tem de ser explorada”, afirma, reconhecendo, porém, que o texto aborda questões importantes quando fala em turismo como possibilidade de interconexão cultural e pessoal.
O secretário-geral da OMT (de 2010 a 2018), Taleb Rifai, defende o valor do texto: “É o único Código existente em nível mundial, dirigido a todos os atores do setor do turismo”. Para Rifai, a limitação principal do Código é o fato de sua aplicação ser totalmente voluntária. “É por isso que a OMT está trabalhando atualmente na transformação do Código numa Convenção Internacional”, afirma ele, lembrando que, desse modo, será possível prever sanções a quem desrespeitar os princípios do documento (leia a entrevista completa com Taleb Rifai na pág. 32).
O papel do turista
De acordo com Helena Costa, professora do curso de turismo da Universidade de Brasília, doutora em Desenvolvimento Sustentável e uma das coordenadoras do Laboratório de Estudos de Turismo e Sustentabilidade (LETS) do Centro de Desenvolvimento Sustentável da UnB, o papel do turista é fundamental para impulsionar o comportamento do setor privado no sentido de zelar por questões socioambientais e éticas no destino. “Se o turista não se sente comprometido com a qualidade ambiental e de vida naquele lugar que visita, não irá respeitar as regras para conservação e nem será sensível ou respeitador da cultura daquelas pessoas.”
Algumas condutas práticas para o turista se comprometer com uma atividade turística mais responsável, segundo a professora, são: levar em consideração como o prestador de serviço de turismo se comporta em relação ao meio ambiente, à cultura e à comunidade do destino; estar consciente dos seus impactos naquele destino, buscando minimizá-los; valorizar empreendimentos que passaram por certificações e premiações, deixando claro um compromisso com o destino turístico; realizar atividades alternativas no destino ou visitar outros destinos, indo além do grandes fluxos massivos de turismo; valorizar a cultura, a gastronomia e o artesanato locais, pagando o preço justo por eles; e frequentar lugares junto aos moradores do local, respeitando seus hábitos e culturas, proporcionando a troca de experiência.
As dicas têm muito em comum com as características do turismo comunitário, um nicho crescente no setor. Mas, para Joan Buades, pesquisador catalão que se dedica aos estudos sobre as relações entre turismo, globalização e mudanças climáticas, é preciso ir além da conscientização do turista. “O caminho deveria ser dar transparência ao setor, principalmente quanto aos benefícios produzidos em cada local e ao que é repassado efetivamente às comunidades, além dos custos sociais, ambientais e democráticos. Qualquer iniciativa de recuperação ou no sentido de garantir o controle democrático do turismo deve ser bem recebida.”
O aumento da transparência na atividade é fundamental porque Buades considera impossível substituir completamente o turismo de massa por um modelo mais alternativo, por mais que este último esteja crescendo. “Ainda assim, não devemos perder de vista que nosso objetivo básico deve ser reduzir o volume global do turismo para diminuir o impacto climático e ambiental da atividade. O modelo atual, alimentado pelo crescimento exponencial de viagens aéreas e em carros particulares, não tem futuro se consideramos seu impacto climático.”
Segundo o chefe interino da Assessoria Especial de Relações Internacionais do Ministério do Turismo do Brasil, Rafael Luisi, para quem o próximo desafio da pasta é “consolidar o Brasil como destino referência no turismo e ultrapassar a marca dos 6 milhões de estrangeiros ao ano”, garantir a sustentabilidade no turismo é um dos objetivos estratégicos do ministério. “Desde sua criação, em 2003, a pasta investe em um conjunto de ações voltadas ao tema. As medidas têm como objetivo sensibilizar turistas e prestadores de serviço sobre a importância da prática do turismo responsável”, diz.
Experiências nacionais
O turismo que não se preocupa com questões éticas muitas vezes resulta em graves conflitos, e exemplos de práticas predatórias são numerosos no Brasil e no mundo. Uma das principais causadoras de desavenças é a invasão desregrada de comunidades tradicionais por grupos massivos de turistas. Isso quase aconteceu no Ceará, quando, em 1976, um grileiro se apropriou de um trecho da Prainha do Canto Verde, no município de Beberibe, a 110 km de Fortaleza. A atuação do grileiro levou à usucapião (direito de posse adquirido sobre a terra após ocupá-la por certo tempo) e, por fim, à venda das terras para uma imobiliária – que, por sua vez, alimentou o fantasma da especulação e da gentrificação naquela comunidade.
Os moradores locais, cerca de 800 pescadores e seus familiares na época, resistiram, segundo conta René Schärer, fundador da ONG socioambientalista Instituto Terramar e morador da comunidade desde 1992. “Isso, para a surpresa da imobiliária, provocou uma ação rescisória dos moradores”, diz. Após vitória em todas as instâncias, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) julgou a ação em favor da comunidade em 2006. “A resistência da população contra a violência dos capangas armados, o apoio jurídico do CDPDH (Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos, fundado pelo Cardeal Dom Aloísio Lorscheider) e a solidariedade de muitas comunidades amigas foram fundamentais para que os direitos dos pescadores fossem respeitados”, afirma. Assim, os moradores não só evitaram o pior como começaram a se conscientizar para a importância de desenvolver um plano de turismo sustentável (não só ambientalmente, mas economicamente e socialmente também) para a região.
Segundo ele, quando o CDPDH assumiu o apoio à comunidade na luta contra a especulação e a grilagem, em 1984, foi criado um núcleo de trabalho comunitário para pensar o desenvolvimento da região. “Assim surgiu a Associação dos Moradores da Prainha do Canto Verde, fundada em 1989 e que existe até hoje.”
Schärer conta que, por meio da associação, a comunidade desenvolveu os primeiros projetos para apoiar a pesca. Um deles organizou a compra dos peixes e lagostas pela associação, para limitar os excessos dos atravessadores e melhorar o preço para os pescadores. Outro ajudou na abertura de linhas de crédito para os pescadores comprarem embarcações e material de pesca. “Vários outros projetos foram implantados em diversas frentes. Também foram muito importantes os programas sociais, a começar pelo de aleitamento materno e o de prevenção da gravidez de risco, que em dois anos acabou com a mortalidade infantil.”
Hoje a Associação dos Moradores continua defendendo os interesses da comunidade e funciona com vários conselhos comunitários – de pesca, jovens, mulheres, artesanato e turismo comunitário – que participam do conselho deliberativo da RESEX (Reserva Extrativista, área protegida utilizada por populações tradicionais cuja sobrevivência baseia-se no extrativismo, com o objetivo de proteger os meios da vida e a cultura dessas populações).
Mesmo assim, ainda existem problemas e desafios: “As exigências burocráticas da Receita Federal são uma grande barreira para o desenvolvimento do turismo comunitário e da economia solidária. Há risco de multas pesadas, e a administração exige gastos excessivos para pagamento de contadores”, explica Schärer.
Trindade
Em Trindade (RJ), região de praias cercadas pela Mata Atlântica, na divisa entre Rio e São Paulo, a disputa de terras também vem causando problemas desde a década de 1960. A diferença é que, neste caso, o conflito ainda está vivo e causou a morte de um jovem de 23 anos em 2016.
Subdistrito de Paraty, a 24 km do centro, a Vila de Trindade já foi habitada por índios, piratas e portugueses. Abrigava cerca de 120 famílias de pescadores quando um grupo multinacional declarou posse das terras, na década de 70, para a construção de um condomínio. “Com a pressão, muita gente vendeu suas áreas e foi embora”, conta Fausto Rosa de Campos, morador de Trindade desde o nascimento e presidente da AMOT (Associação dos Moradores de Trindade).
Com a abertura da rodovia Rio-Santos (BR 101), e o início das atividades de turismo, em 1971, a região começou a receber muitos visitantes, que ficaram sabendo da situação a que os moradores vinham sendo submetidos. Foram esses turistas que se juntaram à comunidade para fundar a Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro. Esse movimento acabou dando visibilidade nacional para a história de Trindade e ajudando a comunidade a se mobilizar contra a especulação imobiliária e ganhar apoio jurídico.
“Foi uma luta muito feia”, afirma Campos. “Os jagunços chegaram a estuprar duas professoras da comunidade”, lembra ele. A multinacional tentou ocupar a área de forma violenta por nove anos. Com a fundação da AMOT, em 1989, a comunidade de Trindade conseguiu que políticos e juristas se interessassem pela causa e ganhou na Justiça o direito a parte das terras. “A holding ficou com grandes parcelas de terra, mas não conseguiu mais lotear tudo”, conta Campos.
Hoje Trindade vive do turismo. Está caminhando para o modelo de base comunitária (protagonizado pela comunidade local, gerando emprego e renda para a região), depois de ter passado pelas fases do ecoturismo (fomentando a educação ambiental), e do turismo de massa (modelo passivo e sazonal, voltado para a classe média e em geral de custo mais acessível). “Estamos num momento de transição”, explica ele. “Algumas associações estão se capacitando e, com o surgimento das unidades de conservação, começamos a ter outro tipo de discussão”, completa. Parte do território de Trindade fica dentro de duas unidades de conservação, o Parque Nacional da Serra da Bocaina e a Área de Proteção Ambiental do Cairuçu.
Para o presidente da AMOT, a região está vivendo um crescimento desenfreado. Com cerca de 1.200 moradores, recebe atualmente, nos meses da alta temporada, 200 mil turistas. Quase todos os habitantes têm uma pousada ou um restaurante, e os pescadores também se envolvem com o turismo.
“Mas a atividade não chega a ser sustentável economicamente, e temos muitos problemas de infraestrutura”, diz. Segundo Campos, os próprios moradores cuidam da manutenção de estradas e da rede de água, em mutirão. “Estamos abandonados à própria sorte.”
Outros casos demonstram como o turismo, apesar de sempre provocar impactos, é mais benéfico quando exercido com responsabilidade. O Complexo Turístico Itaipu (CTI), no Paraná, ganhou um prêmio da OMT em 2015 na categoria Pesquisa, Tecnologia e Inovação por sua atuação como promotor do desenvolvimento territorial sustentável.
A inovação introduzida foi a gestão de um atrativo turístico por uma fundação sem fins lucrativos (Fundação Parque Tecnológico Itaipu Brasil), em uma área industrial em funcionamento, tendo toda a sua receita investida em pesquisa e no desenvolvimento da região.
“A cobrança dos ingressos é revertida em geração de emprego e renda e na aplicação em um fundo tecnológico, gerido pela própria Fundação, que financia projetos e programas de desenvolvimento social, econômico, científico e tecnológico promovidos na região”, explica Jurema Fernandes, gerente do CTI.
Segundo ela, a decisão por esse modelo e pelo investimento em turismo sustentável está alinhada com a missão do Parque Tecnológico Itaipu Brasil de promover o desenvolvimento territorial sustentável, neste caso, do território de Foz do Iguaçu, a 643 km de
Curitiba – cidade paranaense com 260 mil habitantes que é hoje o terceiro destino de turistas estrangeiros no país e primeiro da região Sul.
De acordo com Fernandes, a Fundação assumiu a administração do turismo em Itaipu em 2007 visando promover o desenvolvimento territorial sustentável, mas havia também uma grande demanda por parte do setor turístico de Foz do Iguaçu para que Itaipu tivesse um atendimento turístico mais profissionalizado. “Hoje, todos os colaboradores do Complexo Turístico Itaipu são moradores da região”, conta ela, e o turismo representa 15% do PIB da cidade, calculado em R$ 8 bilhões. “A renda do CTI representa dois pontos percentuais desses 15%.”
Reconstrução. Cenas de Timor Leste, no sudeste asiático, onde a relação dos moradores com o turismo é delicada em razão do conturbado cenário político e econômico do país. | Fotos: Thiago Allis
Em áreas que viveram conflitos, turismo massivo pode aprofundar trauma e sequelas
“A discussão ética da interface entre os visitantes e os visitados é urgente, sob o risco de passarmos a visitar os lugares quase como se fossem zoológicos humanos.” A frase é do professor do curso de Lazer e Turismo da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) Thiago Allis, para quem não é possível falar em turismo sem abordar questões éticas, especialmente em se tratando do turismo praticado em regiões conflagradas.
Especialista em Integração da América Latina, Allis foi professor visitante na Universidade Nacional Timor Lorosae, no Timor Leste, e aponta que “apesar de o Código de Ética da OMT existir há quase 20 anos, ainda há muito discurso e poucas ações práticas”.
No caso das regiões em momento “pós-conflito” e que começam a apostar no turismo como uma forma de reconstrução econômica e social, Allis afirma que esse é um “contexto de muita sensibilidade, em que comunidades ou países inteiros foram destruídos”. Nessas regiões, diz, “em um curto espaço de tempo as pessoas têm que ‘trocar a chavinha’. É como se dissessem: esqueça da hostilidade que imperou aqui por anos e vamos começar a trabalhar com hospitalidade”. Segundo ele, impor esse tipo de situação seria equivalente a esperar que as memórias e as histórias de vida dos moradores locais sejam apagadas de uma hora para a outra.
A observação, diz ele, é especialmente importante quando se fala em turismo de massa, que implica grandes volumes de pessoas concentradas em poucos locais. Segundo o professor, quando se começa a observar o desenvolvimento do turismo nesses contextos, questões éticas afloram com muito mais intensidade.
“Na minha experiência com o Timor Leste cheguei à conclusão de que, se as empresas de turismo não cuidarem da aproximação ética e humana com a população, o turismo deixa de ser uma possibilidade de reconstrução e acaba aprofundando ainda mais as sequelas do que um dia foram os conflitos”, explica. “O turista chega buscando diversão, e, com isso, as sutilezas envolvidas no processo de reconstrução nacional acabam sendo atropeladas”, afirma. “E isso vale também para os governos.”
Em caso de descompasso entre as questões éticas e econômicas, o que pode acabar acontecendo, na visão do especialista, é que a própria atividade turística gere um outro tipo de conflito, opondo moradores locais e viajantes de todas as partes do mundo.