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"O barro é vida... e pode ser espírito, também!"

Fotografia: Alexandre Nunis
Fotografia: Alexandre Nunis

Shoko Suzuki, com seus gestos simples e tranquilos, forte sotaque japonês, leva a conversa suavemente para onde deseja. Acompanhada de Ivone Shirahata, sua discípula de desde 2004, Shoko quis falar, principalmente, do sentir na criação de suas obras. No encontro, contou como um documentário com imagens da recém-inaugurada Brasília foi o sinal para que decidisse viver no Brasil, no início da década de 60.

 

Mais 60 Shoko você comentou que quando viu a reportagem sobre Brasília decidiu que era esse lugar que procurava há muito tempo para viver e trabalhar. Contou que a sua intenção era começar uma nova vida, fazendo cerâmica em terras brasileiras e carregava uma dúvida. Sobre o que eram essas dúvidas? 

Shoko Suzuki Sobre o valor humano. Desde que presenciei a guerra, comecei a questionar sobre esse tema e isso me fez iniciar uma caminhada para entender esse aspecto da vida. Houve um momento marcante, um bombardeio. Depois daquele bombardeio, fugimos todos e chegamos a um lugar que não fora atingido pelo fogo. Havia uma casa, estava perfeita e os moradores ofereciam lugar para os desabrigados dormirem. Dormi no chão, havia muita gente abrigada lá. Naquela noite dormi no chão. No dia seguinte, quis ver minha casa. Já não havia fogo forte e ali vi um senhor cavoucando uma coisa, desenterrando objetos. Era algo brilhante, era cerâmica e ali senti “_ah! é vida” e foi uma sensação muito boa. Só isso, isso que tive a vida inteira, fundamentava a mim. O barro é vida... e pode ser espírito, também! Eu senti, senti apenas, não é nada de teoria. Só a vida brilhou naquele momento. Só isso.

Foi isso que a levou a tornar-se aprendiz de ceramista?

Sim, mas só agora entendi, aos oitenta e oito anos, entendi. Em minha vida tenho feito descobrimentos dessa maneira. Eu não queria ir à escola. Quando me vi com o barro na minha mão, sentindo calor, escolhi esse caminho. 

Foi à procura do que fez sentido para você

Sim, mas, em Tóquio, onde nasci, não havia quase nada de ceramista. Por que era mais urbanizada. Mas, tive um professor que dava aula na escola da cidade. De dia eu trabalhava e toda noite – até quase madrugada -, eu trabalhava no ateliê do professor. 

Foi um percurso de conhecimento compartilhado com mestres. Parece que não era comum ter mulheres ceramistas Japão, era um ofício de homens? 

Era muito difícil ter mulheres, naquele tempo. Lembro apenas de quatro, que conheci.

Bem, você trouxe ao Brasil conhecimentos milenares da cerâmica.

Vim para o Brasil trazendo tudo o que aprendi no Japão, inclusive o projeto do forno Noborigama(1), que um amigo ceramista fez especialmente para mim. Hoje mesmo, senti uma coisa que não sei dizer, vendo essas peças que fiz, agora, eu acho bonito. Acho que cheguei ao que queria.

Foram aprendizados importantes.

Sim, foi muito bom... esse é meu trabalho. Não fiz faculdade, escola de arte, nada. Eu não fiz nada, apenas fui olhando, descobrindo... insistindo e sentindo! 

Shoko, percebemos em sua fala essa força viva e pulsante. Você se encontrou com a cerâmica como uma forma de vida. Força, energia, movimento.

Sim, algo me chamou. 

Sim, e está em você hoje.

Sim, a mesma coisa. 

Aqui no Brasil, você desejou ensinar?

Não, eu não gosto de dar aula, não sou professora, não tenho jeito...

Se não é professora e nem mestre, como você se denomina, diante das ceramistas com quem você compartilha seu conhecimento, a Ivone (2) por exemplo?

Ah! mas ela já tinha quinze, dezesseis anos de experiência, comigo, só passei sobre esse torno manual ((risos))

Você está sendo generosa dizendo que sua discípula veio pronta ( (risos)). E você, Ivone, o que acha?

Ivone Shirabata Entendo que muito além da técnica de tornear, utilizando esse torno milenar - que só Shoko sabe fazer aqui no Brasil -, junto a esse aprendizado, e essa passagem dessa tradição, tem o ensino para a vida. Isso foi fundamental.

Para utilizar este torno não basta saber a técnica, não é isso? Há uma questão de ritmo, um ritmo que não é aprendido, mas vivido. Não é saber a velocidade correta e, sim, sentir.

Ivone Exato. É estabelecer o diálogo, uma conversa com a peça, com a argila. Este é um componente importante que nenhuma escola ensina, nem uma universidade. É a alma que você imprime num trabalho, ou melhor, que você consegue passar para um objeto.

Você tem o seu corpo vivendo a construção daquela obra, quase que se transformando naquela peça. 

Ivone Outra coisa que a Shoko mostra é que nunca foi o objetivo dela se tornar uma grande artista. Não há preocupação com o  produto final, mas você se colocar dentro dela. Isso é outro acontecimento que a Shoko sempre menciona, como a obra toca as pessoas. Em vários momentos, ela se confrontou com essa situação, o quanto as obras dela tocam as pessoas. Tocam o coração.
E ela se admira, ela se espanta da forma como toca o coração das pessoas. 

Shoko Esse que é outro objetivo do trabalho. Será que eu consigo fazer? Será que posso fazer? Sempre duvidando. Será que eu posso? Será que eu consigo?

Essa também é uma força? Quando há muita certeza é como se aquele algo já tivesse dado, estivesse pronto, não estivesse vivo. Na criação da cerâmica, o forno atua como o útero...

Isso mesmo... 

Como se as peças fossem gestadas 

Ivone Fizemos uma exposição, em 2006, uma retrospectiva de Shoko. Tivemos que pedir emprestadas várias obras de colecionadores da obra de Shoko. Ela, pessoalmente, foi à casa dos colecionadores para pedir emprestado, para buscar as peças. Foi um reencontro, e lembro que na época ela dizia “_ Parece que estou reencontrando meus filhos”.

Shoko Até fiquei emocionada, sabe por quê? Na casa de um dos colecionadores que tem muitas obras minhas, quando entrei na casa dele, senti alguma coisa estava movimentando, eu ouvi vozes...

Como as peças te recebendo

É... até sorrindo ((risos)).

Nesse momento, você sente que você atingiu, que criou a obra que deseja? Está no Brasil desde a década de sessenta -, tinha cerca de 30 anos quando veio para o Brasil - jovem, mas com um percurso anterior. Aprendendo, experimentando. A experimentação, criação dos 30 anos era uma experiência diferente. Seu desejo e sua expressão de que não está pronto, ainda. Você nos disse “_Agora estou chegando”. Chegando, mostra o movimento. 

Ivone Está sempre em movimento, não é Shoko? Hoje quando cheguei, ela me mostrou peças que torneou essa semana. 

Shoko Sim, consegui tornear esta semana.

Ivone Há dois anos, Shoko teve um AVC (3), em julho de 2015, depois disso ela não torneou mais. 

Shoko Não conseguia.

Ivone Esta semana ela torneou algumas peças. Ela descobriu outro jeito de tornear. Um recomeço. É um recomeço, mas também é uma continuidade. Ao mesmo tempo em que recomeça – descobrindo outra forma de usar o torno -, continua.

Uma bailarina idosa que nos concedeu uma entrevista (4) disse que vai transformando seus movimentos, procura outras formas. Parecido com sua experiência. Até 2015, você usava o torno de uma maneira, agora, em 2017, descobriu outra forma. Você reputa ao AVC, como oportunidade de descobrir outro jeito de fazer. 

Sim, sim. Descobri. Estou programando uma nova instalação ((risos)) emocionante. Acho que vai ser bom.

Você não separa sua vida, seu momento, dessa obra que você cria

A verdade, criando a obra... pensando nisso 

Quando pensamos no envelhecimento, não a velhice em si, mas o envelhecimento como um percurso de vida, nos deparamos com essa questão que as coisas não precisam estar sempre da mesma forma. Quando chegamos aos oitenta, setenta, sessenta anos, enfim, não existem apenas perdas. Você, por exemplo, está recriando

Ivone Shoko nunca diz que perdeu. 

Shoko Há muita coisa, com a idade, eu preciso acreditar mesmo. Muitas coisas que já não preciso vão embora. Percebo que eu tenho que enfrentar, eu tenho que me acreditar. Acreditar em mim.

Mas não foi sempre assim? Quando você tinha quinze, dezesseis anos, quando você foi a procura de um professor? Se não acreditasse em você mesma e não fosse persistente?

Tem muito significado. Eu nunca pensei, por exemplo, nome, eu nunca pensei em ter um nome. Eu queria e quero fazer bom trabalho, só isso.

E você tem outros desejos? 

Eu queria ser médica. Para salvar vidas. Meu pai inha amigos médicos e muitas vezes ele me levava de riquixá. Conhece riquixá? 

Um tipo de um carrinho, para transporte. 

Shoko É. Tão gostoso ((risos)). E eu pensava, eu vou ser médica. Às vezes ele me deixava ir sozinha de riquixá até em casa. ((risos)) 

Ivone Acho impressionante como quando tocamos cada obra de Shoko, você sente a vibração, você sente mesmo. É visceral. 

Essa sua movimentação Shoko, sua fala “_Eu vou fazer, eu vou tentar fazer, estou experimentando fazer”, esse movimento traz vida. Você sente isso, Shoko? 

Acho que estava sentindo, o tempo todo, esse sentimento. Mais essa imagem do parto, meu forno como um útero. Isso é o principal. Nascimento,futuro, tudo.

E quando você molda no torno? 

Eu não penso nada ainda, quando moldo no torno, não penso nada, há um branco na minha cabeça, de repente, um momento, pronto, aconteceu. Uma vez, sempre aqui, trabalhando, no torno, não é muito fácil fazer aquilo que eu queria, mas um dia não faço nada, nada, nada, e de repente, ah! isso que é o mundo da gente!

Quando conta que viu um filme sobre a inauguração de Brasília e que foi daí que surgiu a vontade de vir para o Brasil, você consegue identificar algo que estimulou esse desejo? A terra... 

Não, não... Foi o momento. Paixão mesmo. Não tem explicação. Eu vi um novo mundo naquele projeto, naquele monumento. Eu senti, naquele momento, mas não tem explicação, eu senti. 

Algo que estava ligado a um nascimento, também? 

Shoko Pode ser isso, pode ser. Está ligado a alguma coisa, mas eu não sei. Começar do zero. 

Ivone O que Shoko trouxe na bagagem foram poucas coisas. Objetos, coisas essenciais o que não era essencial ficou lá. Trouxe só o essencial para começar do zero. E começou do zero mesmo. Em termos de moradia, tudo. 

Shoko Foi muito bom. O que eu podia fazer, o que eu fiz, essa experiência. Eu tive oportunidade de passar por essa experiência. Quanto à Brasília, eu não tenho explicação. Tive pouco tempo para pensar, e decidi, eu vou! Shoko. Acho que me impressionei com as formas do Niemayer, mas eu não sabia quem era Niemayer ((risos)). Cheguei aluguei uma casinha, bem pequenininha, de pau a pique, em Mauá. Sertão de Mauá, que não existe mais. Muita coisa boa, uma lagoa, trabalhadores, mulheres lavando roupa todo dia naquela água. Nesse tempo, eu vivia descalça e elas também viviam descalças. Aquelas mulheres me ajudaram muito.

Quando chegou ao Brasil, foi morar direto em Mauá?

Não, aluguei casinha lá na Vila Olímpia. Depois mudei. Na colônia japonesa, sabendo que eu era ceramista, todo mundo perguntava “_Mas, o que é cerâmica?” Não sabiam! Ficavam espantadas com meu trabalho. 

A arte impulsionando sua vida

Ivone É o próprio jeito de Shoko viver. Sempre vendo uma possibilidade de melhora. Isso é algo que Shoko sempre coloca para quem está ao seu lado “_Vai ficar bom, vai dar certo, estou melhorando”. Um movimento para frente. 

As possibilidades de transformação, de aprender a fazer algo de outro jeito, de outra forma. Deixar de pensar na perda. Pensar na possibilidade. No que pode ser. Grata por nos ter recebido.

Muito obrigada também

(1) Noborigama é um tipo de forno a lenha tradicional japonês, de origem chinesa, utilizado no Japão desde o século XVII. Construído num declive aproveitando a inclinação do terreno, contém várias câmeras interligas entre si, cada uma num determinado  ível. A duração de uma queima em noborigama pode ser de até 35 horas. Por esse motivo é geralmente considerado um trabalho masculino. Disponível em https://portugalbrasiljapao.wordpress.com/2011/10/04/shoko-suzuki-mestre-ceramista-e-artista/. Acesso em 1 de maio de 2017.

(2) Ivone Shirabata, discípula de Shoko desde 2004, acompanhou toda nossa conversa no ateliê da ceramista em Cotia. Em 2015, Shoko Suzuki pediu-lhe que se responsabilizasse pela guarda e cuidado com seu acervo de obras que, segundo Ivone, além de importante valor histórico, possui, também, significativo valor sentimental.

(3) Como sequela do AVC, Shoko teve uma diminuição da força nas mãos dificultando e quase que impossibilitando o uso do torno manual.

(4) Dorothy Lerner. Edição 66 – dezembro/2016.