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A tartaruga e a alface crespa

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

A tartaruga e a alface crespa

Deu-se certa vez, em meu primeiro ano no Rio, por volta de 1927, um episódio curioso. Morava com meu amigo André, estudante de direito, e que viria a se tornar um escritor famoso, num apartamento de dois quartos na Glória. Dividíamos um cômodo enquanto o outro era ocupado por uma velha viúva que era dona do apartamento e nos alugava a moradia.

Dona Emerendiana era uma pessoa simples, simpática, mas um tanto quanto solitária. Tinha lá suas posses e recebia um bom rendimento pela pensão do marido, por quanto entendo que nos alugava o quarto pelo simples motivo de uma boa prosa no início da noite. Como eu e André estudávamos e pouco permanecíamos em casa, dona Emerendiana nos surpreendeu uma noite com uma tartaruga, que recebeu o nome de Visconde.

A viúva logo se afeiçoou ao quelônio e passava longas horas monologando com o animal. Ela o alimentava com folhas de alface crespa, novidade à época, e que eram exclusivas para a tartaruga na casa. Para nós, a ínspida alface americana mesmo.

Numa segunda-feira à noite em especial, época de provas na universidade, eu e André nos trancamos no quarto para estudar, o que não era comum. Dona Emerendiana nos chamou para o jantar, mas, como recusamos, devido aos estudos, decidiu levar Visconde à mesa. Deixou o quelônio em cima da cadeira em que André costumava sentar e colocou uma folhinha de alface ao seu lado. Porém, o animal não mostrou nenhum interesse, talvez com medo da altura em que estava, e se recolheu dentro do casco. Foi nesse momento que a viúva começou um longo discurso sobre como era solitária, e que nós estávamos sendo mal-educados em não sentar à mesa para jantar e que nem o animal estava tendo modos etc. e tal.

André e eu, que depois de dez minutos tínhamos desistido de estudar, estávamos gargalhando. Logo tivemos uma ideia (na verdade, dele) para nos vingar de Dona Emerendiana pelas reclamações e por atrapalhar nossos estudos.

A empresa era simples, mas sua execução precisaria ser feita com artimanha. Nosso plano era substituir Visconde por uma tartaruga maior e ver se a viúva perceberia. André conhecia uma lojinha na Rua do Catete que vendia animais, e disse que só precisaríamos de alguns minutos para trocar Visconde por outro quelônio enquanto dona Emerendiana fosse fazer compras no dia seguinte.

Assim foi feito. Enquanto nossa concierge saiu para o mercado – inclusive para trazer a alface crespa do animal –, nós trocamos Visconde por outro quelônio, que apelidamos de Marquês, pois era um pouco maior que o anterior.

Dona Emerendiana não percebeu a mudança na hora, o que nos frustrou de certa maneira, mas no jantar ficou espiando o bichinho comer a alface com grande apetite. Até fez essa observação conosco sobre a fome do animal. Com sua sagacidade, André aproveitou a deixa e disse que certamente o bicho cresceria bastante comendo alface crespa, que era de ótima qualidade, e ainda emendou que Marquês estava mesmo belíssimo. Dona Emerendiana sorriu satisfeita, só fazendo questão de obsequiar André, pois o nome da tartaruga era Visconde.

A galhofa não podia parar, ora pombas, e na semana seguinte fizemos a mesma artimanha. Ao ver Dona Emerendiana sair, pegamos o Marquês e trocamos pelo Duque, ainda maior e mais pomposo.

Uma semana depois entrou no pequeno apartamento o Príncipe, um quelônio consideravelmente maior que os anteriores. Desta vez, Dona Emerendiana logo percebeu e se alarmou. Veio conversar conosco, desesperada, perguntando o que fazer, o que fazer, mas nós não demos o braço a torcer e dissemos que o crescimento do animal era natural, as tartarugas vivem centenas de anos e na sua juventude crescem bastante, para depois diminuir. Era a lei da natureza, a teoria de Darwin, bastante em moda naquela época, colocada em prática sob nossos olhos, dissemos.

Dona Emerendiana se acalmou um pouco. Simples que era, a preocupação da velha era apenas pela saúde do animal. E tome de comprar folhas e folhas de alface crespa para o quelônio.

Rodamos todo o Rio de Janeiro atrás de uma tartaruga maior que o Príncipe, mas não achamos nenhuma. O animal comia tanto que Dona Emerendiana estava cada vez mais na rua atrás de alface.

Logo tive uma boa ideia. Desta vez André apenas foi coadjuvante na artimanha. E se esperássemos a velha comprar logo quilos de alface e a convencêssemos de que a verdura era que estava provocando o gigantismo do animal. “Perfeito!”, disse André.

Mas teria mais. Nesse dia exato achamos uma tartaruga ainda maior, e para nossa sorte com uma imensa mancha amarelada no casco. Trocamos o Príncipe pelo Rei e fomos para o quarto esperar Dona Emerendiana voltar da rua com as alfaces e chamar para o jantar.

Pobre velha. Ela viu aquele animal gigante e amarelado no canto da cozinha e deu um longo grito agudo. Quase desmaiou, inclusive. André precisou ampará-la, enquanto eu trouxe um copo d’água com açúcar.
Desta vez concordamos com ela que a tartaruga estava enorme e a convencemos que a mancha só poderia ser pelo excesso de alface crespa, que estava fazendo mal ao quelônio.

Daí para a frente, como planejado, a tartaruga voltou a diminuir, enquanto a alface americana era sua alimentação e a crespa a nossa. Voltou o Príncipe, e a mancha amarelada se foi. Depois, o Duque, o Marquês e em menos de 15 dias lá estava o Visconde, para espanto de Dona Emerendiana.

Para finalizar a empresa, numa véspera de feriado em que passaríamos em casa de nossos pais, longe do Rio, levamos o Visconde e trouxemos o Bobo da Corte, um filhotinho de tartaruga, quase do tamanho de um botão.

No retorno do feriado encontramos apenas uma carta de dona Emerendiana, em cima da mesa, dizendo que precisava descansar alguns meses na serra, pois estava sentindo os efeitos do calor do Rio. Aconselhava-nos a comer toda a alface, que, senão, estragaria.
 

Flávio Izhaki é autor dos romances De Cabeça Baixa (Guarda-chuva, 2008), Amanhã Não Tem Ninguém (Rocco, 2013), eleito pelos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo como um dos melhores do ano e semifinalista do Prêmio Portugal Telecom, e Tentativas de Capturar o Ar (Rocco, 2016). Como contista, participou de oito antologias no Brasil e na Alemanha.