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“Pobre não faz cinema no Brasil. Só faz se for teimoso.”
(Foto: Alexandre Nunis)
Cristiano Burlan teve uma infância difícil. Primogênito de uma família de cinco filhos, de pai pedreiro e mãe empregada doméstica, nasceu na periferia de Porto Alegre, em 1975, e cresceu vendo seu pai alcóolatra bater em sua mãe, até que ela fugisse com os filhos para o bairro do Capão Redondo, em São Paulo. Tinha nove anos de idade e se apaixonou pelas artes. Autodidata, leu bastante, ia sempre ao cinema, fez teatro, escreveu peças, atuou, dirigiu, criou grupos. Trabalhou em fábrica, construção, feiras livres, teve diversas profissões e saiu das periferias brasileiras para viajar o mundo. Nunca pensou em fazer cinema, porque era caro, mas o acaso o levou para a direção das câmeras e hoje, aos 40 anos, tem no currículo mais de 15 filmes, entre curtas e longas-metragens, como o premiado documentário Mataram Meu Irmão. É professor por notório saber e um homem satisfeito com seu ofício de contar histórias.
Como é fazer cinema no Brasil?
Fazer cinema sempre me pareceu uma coisa inatingível, porque é um ofício para poucos, para gente privilegiada. Existe uma questão de classe muito forte. Pobre não faz cinema no Brasil. Só faz se for teimoso. Em geral, as pessoas que fazem cinema aqui são pessoas abastadas. É uma arte cara. Não há nenhum problema em ter dinheiro – veja bem. Eu adoraria ter nascido em uma família rica, ter estudado em Nova Iorque, em Paris, na Itália. Mas não é o meu caso. Tive que forçar um pouco a barra para poder realizar meus filmes. E continuo forçando. Todas minhas produções foram feitas com dinheiro do meu bolso, apoio e tempo doado dos meus amigos, técnicos e atores.
Qual é sua forma de produzir?
Eu fiz mais de 15 filmes. Deles, somente um curta-metragem fiz com edital público, O Boto e o Homem. Todos os outros, fiz com recursos próprios: o dinheiro do meu salário de professor e a ajuda de amigos. Ano passado, levei ao Festival de Brasília meu filme Fome. Gastei dez mil reais para produzi-lo, mas fiquei com vergonha de falar o quanto o filme custou. Então, aumentei para 15 mil. Só que custo é diferente de orçamento. O custo foi o quanto tirei do meu bolso, da minha poupança. Já o orçamento envolve o cachê dos atores e dos técnicos que eu não paguei, o equipamento que meus amigos me emprestaram e o finalizador que trabalhou sem receber. No fim, o filme foi orçado em 300 mil, mas eu não tinha essa grana. A paixão das pessoas em querer realizar e se experimentar de alguma maneira através do seu ofício me ajuda a fazer cinema. Eu tenho bons amigos, essa é uma maneira de fazer, mas não é a única e também não me impede de ir atrás de outras.
O que é necessário para fazer um filme?
Tem gente que acha que para fazer cinema é necessário dez milhões de reais, quatro caminhões de luz, interditar um quarteirão inteiro e cem pessoas trabalhando no set. Não estou dizendo que não possa ser feito dessa maneira, mas essa não é a realidade. Não ter acesso a isso não impede de realizar. Acabei de fazer meu último, em sete dias. Estou completamente extenuado, devendo como pessoa física e jurídica, mas com uma sensação de satisfação de ter chegado pelo menos até o final do set vivo. Isso é muito importante para mim porque como faço filmes sem recursos, não tenho só a minha paixão, tenho responsabilidade na parte das paixões que eu movi.
Você é autodidata. O que é preciso aprender para produzir?
Grande parte dos meus mestres do cinema foi autodidata, mas cada um tem seu caminho. Também acho importante a formação acadêmica, mas é fundamental ter uma cultura cinematográfica. Estudei em uma escola da qual fui expulso e onde hoje dou aula. Dizem que sou formado por lá e aceito. Foi muito bom para mim, principalmente para saber o que eu não queria fazer. Passei anos tentando desaprender o que aprendi nas aulas para encontrar uma voz mais autêntica. As escolas de cinema trazem um bem grande, mas instrumentalizam o aluno muito rápido. Ele se apaixona pela câmera, não pelas ideias, pelas pessoas e pelo movimento do mundo. Ele acha que cinema é grua, trilho, maquinaria. Isso é muito apaixonante mesmo, mas o aluno se forma e acha que vai para um set dirigir uma equipe e estrutura grandes; é muito raro. Ele tem que entender que não precisa disso.
Você concorda quando o consideram um cineasta da periferia?
Meu trabalho está pautado na periferia por causa da minha história e da minha origem, mas hoje, moro em Pinheiros; brinco que sou burguês. Mesmo tendo muitos amigos e parentes ainda na periferia, quando vou visitá-los, não me sinto mais de lá.
É possível traçar um panorama da produção cultural na periferia?
A cultura na periferia sempre existiu, sobretudo em poesia e teatro, mas antigamente não havia comunicação. A situação começou a mudar. A internet conseguiu interligar as pessoas. Hoje, a gente sabe o que está sendo feito e quem está fazendo. Me interessa muito saber quem está produzindo lá no Capão Redondo, na Zona Norte, na Zona Leste. Me interessa o trabalho do Lincoln Péricles, em São Paulo, do Adirley Queirós, na Ceilândia, do André Novaes, em Contagem. Existe uma produção cultural intensa de uma rapaziada jovem, politizada, consciente, que promove saraus, debates e produz bastante. O poder público deveria ajudar mais. Há algumas iniciativas, como editais mais democráticos que não elitizam tanto os meios de produção. Isso é essencial. Não existia na minha época. Mas a gente não pode depender disso também, tem que fazer cinema com as próprias mãos.
O avanço da tecnologia contribuiu para democratização da produção?
Os equipamentos e mídias digitais são ferramentas potentes, cada vez mais acessíveis, que auxiliam bastante na produção. Já viajei por todo o País e conheço muitos que estão produzindo graças às novas tecnologias. Elas contribuem ainda para o surgimento de novas estéticas. Isso é bom porque, na história do cinema, as grandes revoluções aconteceram primeiramente na estética. Seja no Realismo italiano ou na Nouvelle Vague francesa, o avanço dos equipamentos possibilitou uma geração de realizadores reinventar a maneira de fazer cinema, contrapondo à forma hollywoodiana. Isso influenciou diretamente o cinema brasileiro, mais autoral, pelo qual somos reconhecidos, mas me parece que temos nos esquecido dele ultimamente.
“A limitação de recursos nunca foi nem deve ser desculpa para deixar de realizar.”
A que você atribui esse esquecimento?
Atribuo a um aburguesamento, um encarecimento dos meios de produção do audiovisual brasileiro, uma ideia de que existe uma indústria de cinema no Brasil. Isso é uma falácia, porque se você muda o governo, as políticas, que são muito frágeis, não se sustentam e muitas produções dependem disso. Não conheço nenhum lugar no mundo onde a única possibilidade de produção audiovisual seja pública. Fico me perguntando onde estão os rebeldes, os que têm paixão por fazer cinema e que com uma câmera na mão vão registrar o que acontece à sua volta, seja em documentário ou ficção.
Os meios que você tem para produzir afetam diretamente sua obra?
Afetam completamente, mas faz parte da nossa história. A falta de recursos do cinema latino-americano e brasileiro, nunca foi desculpa para fazer filmes menores. Pelo contrário, ela está diretamente ligada a nossa estética. Nos anos 1960, boa parte da produção do Cinema Novo se dava na relação de uma câmera na mão e de planos-sequências, porque assim você já estava montando o filme. Isso deixava a produção mais barata, mais rápida e esteticamente mais potente. Os meios e o dinheiro que você tem para produzir afetam o modo e o resultado, mas é claro que não é uma regra. É uma visão muito pessoal do mundo. A limitação de recursos nunca foi nem deve ser desculpa para deixar de realizar.
Existe boa receptividade em relação ao cinema feito na periferia?
A produção mais periférica tem dificuldade de chegar ao público e à crítica, mas já existe um olhar para esse tipo de cinema, que a gente pode chamar de um cinema de borda ou um novo cinema marginal. Há uma nova crítica atenta, percebendo transformações no audiovisual. Em geral, ainda parte de um olhar pueril, frívolo e preconceituoso: “Ai, que bonitinho, um pobre filmando sua realidade”. Mas essa produção precisa ser desaguada. A própria periferia tem dificuldade em ver seus filmes, mas isso está mudando com saraus e cineclubes. A gente não pode depender só das salas de cinema, que são poucas no País, além do ingresso ser caro. Por isso a internet surge como alternativa na divulgação desses trabalhos porque o cara que faz filmes na periferia não tem aonde mostra-los.
Como filmar a periferia sem estereotipá-la?
É complicado porque, a partir do momento em que eu saio da minha situação e a filmo através de uma câmera, já existe uma intermediação. Não podemos ter um olhar estrangeiro e exótico sobre nossa própria cultura. Isso acontece comigo também. Hoje, quando eu vou para a periferia, fico como um burguês que filma pobres, que quer contar as mazelas do mundo, achando que está ajudando de alguma maneira. Por isso, é essencial que a periferia seja sua própria voz. O que me habilita a falar sobre pobreza? Eu não sou rico, mas eu também não moro mais na favela. Eu posso emitir opinião sobre as coisas, mas é importante que todos tenham voz, pobres, negros, mulheres, gays, etc. Que todos façam filmes sobre tudo também, mas que isso seja discutido com quem tem propriedade sobre aquilo que se quer abordar.
Como é levar suas histórias tão pessoais para as telas?
Cinema é meu ofício e minha tentativa de entender, através de uma câmera, o mundo em que vivo. É a arte que escolhi para minha vida e nada mais óbvio do que querer entender minha vida através do cinema. Não é terapia. Faço como realizador, mas muitos filmes são para mim um rito de passagem. Como Construção, que conta a história do meu pai que era pedreiro, e Mataram Meu Irmão, sobre a morte do meu irmão. Vou fazer um terceiro filme, Elegia de um Crime, que fecha o que chamo carinhosamente de Trilogia do Luto. Será meu primeiro longa-metragem com orçamento aprovado em edital. Nele, vou investigar o assassinato da minha mãe pelo namorado, que está foragido. Quero fazer esse filme para perguntar a ele o porquê fez isso. É uma questão importante não apenas para mim como pessoa e artista, mas para todos: como um ser humano é capaz de matar o outro de maneira tão brutal?