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Literatura pelas periferias paulistanas
Pelas periferias paulistanas vê-se uma intensa movimentação em torno de diferentes expressões artísticas. Música, dança, literatura, audiovisual e teatro agregam artistas e coletivos originários, atuantes e inspirados nas franjas da cidade. No limiar do século XXI, as produções de espaços que margeiam centros geográficos e econômicos multiplicaram-se e ganharam visibilidade.
Periféricos, marginais e marginalizados, que sempre foram tema ou inspiração de criações artísticas, passaram de objetos a sujeitos e seguem transformando suas experiências sociais, visões de mundo e repertórios em linguagens específicas. E tudo aquilo que um dia faltou – como o acesso aos meios de produção, a escolarização formal, as técnicas, entre outras – tornou-se matéria-prima para as estéticas que vêm sendo consolidadas.
Especialmente na literatura, projetam-se escritores oriundos das camadas populares e majoritariamente identificados como negros, que, por meio de narrativas ficcionais e (auto)biográficas, trazem para o campo literário temas, termos, personagens e linguajares que refletem as margens do urbano. Allan da Rosa, Alessandro Buzo, Ferréz, Michel Yakini, Rodrigo Ciríaco, Sacolinha e Sérgio Vaz são alguns dos nomes de destaque; assim como Dinha, Elizandra Souza, Jenyffer Nascimento, Mel Duarte, Raquel Almeida e Sonia Bischain, que são das poucas que conseguiram lançar obras autorais e se encarregam de problematizar a participação das mulheres nesse contexto cultural. Mas muito além desses escritores e poetas, há uma centena de outros que se formaram ou ganharam visibilidade também como ativistas a partir das dezenas de coletivos, tais como Cooperifa, Sarau do Binho, Elo da Corrente, Poesia na Brasa e Perifatividade.
Alguns desses produtores retomam o uso da expressão literatura marginal para caracterizar, no contemporâneo, as obras dos que vivenciam alguma situação de marginalidade econômica e social. Outros preferem a designação literatura periférica, a fim de ressaltar o pertencimento ao lugar de onde e em nome do qual falam em seus textos. Mas vale considerar que esses termos – assim como outros, como literatura suburbana e litera-rua – podem ser tomados como classificações possíveis da condição desses autores ou das características de suas produções literárias, podendo ser mobilizados ou não para marcar posição no mercado cultural e se aproximar do público que compartilha o mesmo perfil sociológico.
Nessa recente relação entre literatura e periferia, uma série de práticas, produtos e perfis se misturam: formalizações estéticas, escrita como meio de expressão individual, obras autorais, publicações coletivas, CDs de poesia, saraus em botecos e escolas, performances, eventos, selos editoriais, bibliotecas comunitárias, escritores dedicados à carreira literária e profissionais diversos que recebem o título de poeta como reconhecimento ao vínculo estabelecido com coletivos que organizam recitais. Entretanto, principalmente nos textos literários, nota-se um projeto de ação estética que consiste em recriar o que é peculiar aos sujeitos marginalizados e aos espaços marginais (vivências, trajetórias, práticas, valores, relações afetivas, etc.), especialmente com relação aos moradores e bairros periféricos.
Nos últimos quinze anos, os textos aparecem em maior número sob a forma de poemas; e quando prosa são, predominantemente, contos e crônicas. Embora o referencial geográfico e as mazelas sociais sejam a tônica, as temáticas têm se diversificado para além de questões relacionadas ao cotidiano, à pobreza e à violência, estendendo-se para os conflitos de classes, o protesto social, as relações de trabalho, o erotismo, as questões raciais, o que pode ser lido como um tipo de feminismo, entre outros. São construções poéticas e narrativas em que prevalecem elementos documentais, biográficos e descritivos, numa escrita que pode apresentar regras próprias de concordância verbal e de uso do plural, além de explorar gírias e neologismos que a aproximam da linguagem falada. O que pode ser entendido como fruto da formação escolar e condições materiais desses escritores, mas também como uma valorização de manifestações linguísticas não hegemônicas.
É importante enfatizar que a literatura com a marca da periferia, mesmo cercadas por apelos midiáticos e políticos que teimam em reduzi-la a certa importância histórica, traz à tona importantes debates sobre produção, circulação e consumo cultural. Especialmente porque não é uma movimentação que se esgota em livros, mas se amplia para práticas focadas na difusão literária, formação de novos leitores e autores. E também porque não se trata apenas de representação de certa realidade social na literatura e seus desdobramentos no campo cultural, mas do modo como produtores que falam a partir da periferia querem se autorrepresentar e construir uma atuação a ser apreendida pelo público-leitor, mercado, poder público e academia.
Érica Peçanha é doutora em antropologia e pesquisadora da produção cultural da periferia. Autora de "Vozes marginais na literatura" (2009) e coautora de "Polifonias marginais" (2015), participou do ciclo de Jornalismo Cultural da Periferia, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo