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Cinema e Educação: um namoro difícil, mas possível
Todos nós conhecemos casais que se sentem muito atraídos, mas vivem brigando. Separam, voltam, brigam, reatam. Nesses casos, os dois lados se desejam, mas há muitas diferenças, muitos descompassos. Eu gosto de pensar no Cinema e Educação como instâncias educativas que se atraem, mas são de naturezas diferentes, por isso vivem aos tapas e beijos. Se não olharmos para esses descompassos e tensões, essa relação amorosa, que pode ser muito interessante e criativa, continuará complicada.
Para começar, há muita diferença de idade. Quando o Cinema surgiu, no finalzinho do Século XIX, a Educação já existia há muito tempo, já bem consolidada como campo de estudo. O Cinema encantou o mundo inteiro como uma absoluta novidade, traduzindo os sonhos humanos em imagens apaixonantes. O Cinema chegava às pessoas pelo caminho da emoção, enquanto a Educação defendia o pensamento científico, o racionalismo, o positivismo. A Educação tradicional, baseada na cultura letrada e no discurso unidirecional (o professor transmite as informações e o aluno aprende) naturalmente desconfiou daquela novidade que ela não sabia definir. Ainda assim, era preciso reconhecer o seu potencial educativo.
O Cinema, matriz de toda a nossa cultura audiovisual, transmite valores, padrões e normas de comportamento. Aí, alguém vai dizer: “Mas nem todo cinema é educativo. Há filmes que não difundem bons valores, que trazem pornografia, violência, isso não é educativo”. Mas uma experiência cultural é educativa porque é transformadora, independente de se concordar com os valores que estão sendo transmitidos. Até porque os valores variam de acordo com cada cultura, tempo e lugar.
Podemos pensar, por exemplo, que a animação Branca de Neve, da Disney, lançada em 1935, “educava” as meninas para serem ótimas donas de casa, aprendendo a limpar a casa e a fazer tortas de maçã, e que seria “salva” por um lindo príncipe. Esses valores hoje possivelmente não se coadunam com as expectativas das nossas meninas (e, espero, nem dos meninos), mas fez sucesso na época. Como negar, por exemplo, que o “cinema” ensinou muita gente a fumar? Muitas fumantes contam que o hábito surgiu inspirados no charme de Humphrey Bogart ou Bette Davis... Hoje não é politicamente correto heróis ou heroínas fumarem...
Outro exemplo que mostra a função educativa do cinema: na animação futurista Wall-E (Disney/Pixar, 2008), o protagonista é um robozinho programado para reciclar o lixo do planeta Terra e se diverte com os “restos” da herança cultural deixada pelos humanos. Entre os brinquedos herdados, o seu predileto é uma fita de videocassete, com um musical dos anos 1950. Assistindo ao filme, ele tenta “aprender” a dançar e a conquistar seu amor. Todos sabemos o quanto o cinema é formador de sentimentos e comportamentos e que nossa visão de mundo está, individual e socialmente, permeada pela experiência do cinema.
E é justamente esse envolvimento e emoção provocados pelo Cinema que deixa até hoje os educadores de orelha em pé com os filmes, atribuindo a estes uma enorme responsabilidade de boas ou más influências.
Ambas as instâncias, Cinema e Educação, trazem consigo ambiguidades, tensões, dicotomias. A Escola tem, mais do que qualquer instituição, a missão de preservar e difundir o conhecimento acumulado pela humanidade. Quem, além da Escola, tem a responsabilidade mais evidente de desenvolver o pensamento científico, ensinar as histórias dos nossos antepassados, desenvolver as linguagens, conservar a cultura? Por outro lado, o conhecimento produzido e difundido tem que estar em sintonia com a sociedade contemporânea. Então, vemos que a educação formal tem uma natureza conservadora, mas é chamada o tempo todo para a transformação.
O Cinema, por sua vez, surgiu como diversão, como resultado do desenvolvimento técnico, voltado para o entretenimento. Aos poucos, a novidade foi se transformando em narrativa e constituiu-se uma linguagem artística. Mas essa passagem não foi compreendida rapidamente. Somente uns 20 anos depois do seu surgimento, é que o Cinema começou a ser chamado de Sétima Arte, ganhando aos poucos o status de cultura. A consolidação da indústria do cinema foi o primeiro fenômeno cultural que se pode chamar verdadeiramente de “cultura de massa”, pois atinge a milhões de pessoas no mundo. Como produto desta indústria cultural ele traz também uma dicotomia: é arte e negócio, ao mesmo tempo.
Do ponto de vista da arte, o Cinema atua na sensibilidade do espectador, expressa os sonhos e as subjetividades, não pode ter seus resultados previstos de antemão, é fruto do trabalho de inúmeros artistas (roteiristas, atores e atrizes, figurinistas, cenógrafos, iluminadores, entre tantos outros). Do ponto de vista do negócio, tem que atender às necessidades do mercado, é obrigado a racionalizar sua produção, pois tem o lucro como parâmetro. Na perspectiva mercadológica, é fundamental que o filme se comunique com o público, o que implica em se transformar e se adequar aos anseios dos espectadores, especialmente os mais jovens.
Voltando à nossa brincadeira do namoro: a Educação é o lado ciumento, que tenta controlar e “didatizar” o filme para que ele caiba na grade curricular. E o Cinema, por sua natureza, é ousado, transgressor, que busca sempre as novidades. Para que esse namoro dê certo é preciso que cada um dos lados aceite as contradições e ambiguidades do outro. A Escola não pode abandonar sua essência de conservar a cultura acumulada, mas pode considerar toda a herança cultural trazida pelo Cinema, sem precisar atender às razões mercadológicas, cuja tendência é investir apenas no entretenimento. A arte é fundamental na escola, para a educação do sensível e humanização da sociedade. Os educadores precisam aceitar o Cinema com toda sua rebeldia e transgressão, aproveitando-o como instrumento de transformação tão necessário à Escola que desejamos.