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Diálogos com a arte

Mestre e doutor em Economia, Moacir dos Anjos sempre acompanhou com interesse e proximidade a produção das artes visuais no Brasil e no mundo, o que o fez desenvolver o desejo de um envolvimento maior com o tema do que o de mero observador. Em seus estudos acadêmicos, investigou as relações possíveis entre moeda e arte, até começar a escrever textos críticos e atuar como curador em bienais de arte, além de diversas exposições individuais, como Ver é uma Fábula – Mostra de Cao Guimarães, em 2013, no Itaú Cultural, na capital paulista.

 

A produção de arte brasileira está mais contemplativa ou provocativa?
Não creio ser possível falar da produção artística brasileira em bloco. Acho que coexistem, no Brasil contemporâneo, modos de representação/recriação do mundo bastante diferentes. De algum modo, eles disputam a hegemonia de uma ideia de arte brasileira, mesmo que não afirmem abertamente tal disputa, e mesmo não sendo necessário afirmá-la para que ela exista. O que alguns chamam de uma arte “provocativa”, eu chamaria de uma produção artística que elabora uma “representação das sobras”. Ou seja, uma representação de mundo (e de Brasil) que busca incluir, no campo do sensível, gentes, temas e conceitos que não possuem visibilidade no corpo social do país. Embora não seja hegemônica no Brasil, a representação das sobras é aquela que, a meu ver, produz as imagens, os objetos e os entendimentos de mundo mais relevantes para que entendamos melhor esse lugar e esse tempo estranho (e desigual!) onde vivemos.

 

De que forma as novas tecnologias audiovisuais estão incorporadas na produção de arte contemporânea no Brasil?
Se chamarmos de “novas tecnologias” os instrumentos digitais de captura, tratamento e exibição de dados sobre o mundo (visuais, sonoros, tácteis etc.), acho que elas estão presentes numa parcela relevante dessa produção. Mas não colocaria tanto peso ou importância nesse fato, pois o fundamental é o que é feito com esses instrumentos. Por vezes, eles são somente acessórios que aprimoram uma ideia que, a rigor, independe de sua existência. Noutras vezes – mais relevantes, a meu ver –, as “novas tecnologias” permitem a invenção de algo, inclusive em termos conceituais, que não existiria em qualquer outro contexto. Por fim, há aquelas situações em que tais dispositivos são usados “contra” eles mesmos, no sentido de porem à prova, de forma crítica, o próprio ambiente social e político em que eles são gerados e consumidos. O próprio ambiente que ainda não permite que essas tecnologias sejam de pleno acesso para qualquer um.

 

No contexto geopolítico, é possível identificar uma escola artística periférica, na produção oriunda de países fora do eixo Europa – EUA?
Não diria que exista algo como uma “escola artística”, mas sim um conjunto disperso de criações artísticas que têm em comum o fato de empregarem “sotaques” do Sul. Sul aqui entendido como o Sul Político, ou como um Sul Global. Não necessariamente um lugar definido geograficamente, mas um lugar que, histórica e politicamente, é o lugar (são os lugares) de colonização, de exploração, de violências diversas. Sul que pode estar, inclusive, na produção de artistas que atuam desde o interior dos chamados países do Norte. Os sotaques dessas produções articulam informações e instrumentos de toda a parte do mundo de um modo específico, demonstrando e desmontando, criticamente, a reprodução dessas relações desiguais de poder no mundo de hoje.

 

Como a videoarte contribui ou influencia a produção audiovisual contemporânea convencional?
Não vejo muito sentido em dividir a produção artística como menos ou mais convencional em função da utilização ou não de determinadas tecnologias, como o vídeo, a internet etc. Ao menos se definimos como convencional tudo o que não pode ou não quer desafiar as convenções vigentes. Um objeto de arte pode incorporar a mais sofisticada tecnologia disponível e não fazer mais do que repetir, monotonamente, visões de mundo já assentadas e francamente conservadoras. Contrariamente, outro objeto pode se valer apenas de técnicas simples e antigas e produzir efeitos sensíveis capazes de abrir fraturas nos consensos e convenções que organizam nossas vidas. Dito isto, é evidente que alguns dispositivos tecnológicos influenciam a criação, permitindo pensar e/ou produzir e/ou difundir questões diversas de modos distintos, muitos dos quais antes não podiam sequer ser imaginados. Em particular, permitem (mas só permitem) a coleta, organização, tratamento e distribuição de informações de jeitos que potencializam nosso entendimento do mundo, embora nem sempre o que é potência se efetive.

Quais as possibilidades de interação entre a internet e as artes visuais, sobretudo a videoarte?
São muitas. Algumas muito pouco imaginativas, como a mera reprodução, para o ambiente da internet, de imagens ou formas ou sons criados fora dele. Outras, que se valem justamente do que é específico à rede mundial de computadores – principalmente sua capacidade de conectar pessoas e lugares diversos de modo quase imediato – para criar algo que somente poderia acontecer nesse lugar inventado pela tecnologia. São os artistas, em última instância, que ao longo do tempo vão decidir se essa relação pertence mais ao campo da ilustração ou, ao contrário, da criação de algo antes inexistente. 

 

É preciso pensar em uma produção artística audiovisual específica e um novo tipo de fruição para as novas plataformas, como a internet?
Não creio em formas puras de produção, em algo feito especificamente para uma plataforma como a internet. Prefiro pensar em formas híbridas, em descobertas, em desacordos, em atritos, em erros absurdos, em acertos inesperados. Prefiro pensar que a tecnologia digital permite muita coisa, mas não garante quase nada. Do mesmo modo, a fruição de tudo o que vem dessa plataforma é filtrada e lida a partir também de nossa experiência cognitiva de outros lugares. Talvez cheguemos a um ponto em que o uso dessas tecnologias seja de tal forma difundido em nossas vidas que nossos sentidos sejam moldados a elas somente. Mas sinceramente não consigo vislumbrar esse momento, a não ser que deixemos de lado as milhões de pessoas, em todo o mundo, que sequer têm acesso ao que é mais básico na vida (comida, casa, saúde etc.), e que têm que negociar o seu cotidiano valendo-se de tecnologias geradas em tempos distintos. E que vão continuar vivendo assim por muito tempo. Talvez para sempre.

 

É possível estabelecer um diálogo mais próximo (ou até buscar um protagonismo) das artes plásticas com o cinema e a televisão, explorando o tempo das imagens e o tempo das sensações?
Acho que esse diálogo ocorre o tempo inteiro, embora de uma maneira totalmente subordinada ao que é considerado mainstream nos campos do cinema e da televisão. Sou pessimista em relação à possibilidade de real “contaminação” desses campos por outras temporalidades. O jogo de forças é muito desigual, e pouco importa aos donos do poder a temporalidade crítica de tantas produções das chamadas artes visuais e de uma parcela do cinema de autor. Talvez o melhor que esse diálogo posso fazer (e já é muita coisa) é funcionar como um aviso permanente de que o que tomamos como natural quando assistimos às produções de massa no cinema e na televisão é somente dominante.

 

Qual o papel político da videoarte no mundo contemporâneo?
O papel político da videoarte é o mesmo que é próprio a qualquer produção artística fundada na visualidade. É ser capaz de criar experiências sensíveis que desacomodem nosso olhar, que o ponham em desacordo com o que é hegemônico no mundo. Experiências que fraturem as formas consagradas de ver e que nos exponham a outras possibilidades de cognição visual. Se isso vai ou não vai influenciar nossa maneira de atuar no mundo, vai depender somente de nós, do que fazemos, nas nossas vidas, dessas experiências. Essa é uma responsabilidade que não podemos atribuir à arte. Ela é nossa.