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Sem dinheiro, sem estrutura

Olaria, em jogo com Flamengo: dias de glórias ficaram para trás / Foto: Rodrigo Luiz/AGIF/Folhapress
Olaria, em jogo com Flamengo: dias de glórias ficaram para trás / Foto: Rodrigo Luiz/AGIF/Folhapress

Por: FRANCISCO LUIZ NOEL

A bola rolava no gramado do América, que recebia o Olaria, na quarta rodada do Campeonato Estadual da Série B do Rio de Janeiro, quando uma briga pipocou fora do estádio, em Mesquita, município da Baixada Fluminense para onde os americanos transferiram o campo da agremiação, em 2000. Um encrenqueiro teve a mão dilacerada por um rojão e foi levado às pressas para o hospital na ambulância de suporte aos atletas. Eram quase oito horas da noite e, jogo parado aos 23 minutos do primeiro tempo, os torcedores esperaram uma hora pela volta do veículo e o reinício da peleja. Diante dos 443 pagantes, o América fez três gols, tomou dois e seguiu firme para conquistar o título, em julho, e retornar à Série A, em 2016.

Improvisos como esse, que esticou a partida por falta de infraestrutura fora do campo, fazem parte da rotina dos clubes de pequeno porte do Rio de Janeiro e de outras cidades do país. Nenhuma outra capital, todavia, possui pequenos em tão grande número e com tanta tradição e perseverança quanto a fluminense. Engalfinhados todos os anos no sobe e desce das séries do Estadual, os times do América, Bangu, Bonsucesso, Campo Grande, Madureira, Olaria, Portuguesa e São Cristóvão integram um patrimônio distintivo da vida socioesportiva do Rio. Persistentes, eles não desmentem o lema de que o importante é competir.

O espírito esportivo torna, porém, a vitória mais importante ainda, sobretudo depois de revezes prolongados. É o caso do América, estacionado havia cinco anos na Série B, em contraste com a época de ouro de 1982, quando a agremiação ganhou a Taça Rio e a Taça dos Campeões, certame nacional. Em julho, nos dias que se seguiram à conquista antecipada da Série B, os torcedores americanos extravasaram a emoção como quem celebra a vitória em final de Copa do Mundo. “Estamos de volta à Série A, de onde nunca devíamos ter saído”, festeja o presidente do clube, o tabelião Léo Barros Almada, há um ano no cargo.

Apesar da fidelidade da torcida modesta, Almada isenta os americanos de participação na refrega que interrompeu o jogo de 20 de maio. Dirigentes do Olaria também inocentaram seus torcedores. O Grupamento Especial de Policiamento em Estádios (Gepe), da Polícia Militar, concluiu que o confronto fora do estádio expôs uma nova feição da violência no futebol carioca. Em face da ação da polícia contra facções briguentas que se entrincheiram nas grandes torcidas, os arruaceiros passaram, via internet, a agendar troca de tapas e socos em jogos de times pequenos. Desde aquela noite, o Gepe reforçou o policiamento nas partidas da Série B.

A ascensão à divisão principal promete devolver ao América o status de pequeno a meio caminho entre os grandes e os menores, dos quais os americanos nunca se sentiram iguais. “O América é um grande clube, mas de pequeno investimento no futebol. Temos um patrimônio que vai ser utilizado para o nosso soerguimento”, diz Almada, que também invoca a favor do rubro (como o time é referendado) a condição de segundo clube de muitos cariocas. “O América tem a maior torcida do Rio de Janeiro. Quem não é americano só não torce para nós quando jogamos contra seu clube de coração. Somos o mais simpático, um patrimônio da cidade”, afirma.

A taça da Série B foi levantada, porém com um time de clube pequeno. Somado o elenco de 29 atletas mais a comissão técnica, a folha de pagamento do América não foi além de R$ 150 mil mensais – quatro vezes menos que o salário do atacante peruano Paolo Guerrero, do Flamengo, o mais alto do futebol nacional. Com 400 sócios pagantes e receita em torno de R$ 30 mil, os americanos cobriram a diferença com doações dos dirigentes. “Cada um meteu a mão no bolso e, graças a esse gesto, conseguimos montar um time razoavelmente bom, juntando jogadores de nossa base, atletas que estavam atrás de algum clube e alguns que estavam prestes a pendurar as chuteiras, mas ainda têm nome no futebol”, relata o presidente.

Instalações na lona

O goleiro Felipe Eduardo, 28 anos, foi um dos que já pertencia ao clube. Paulistano, ele chegou ao América em 2014, egresso do São João da Barra, pequeno time do norte fluminense. Felipe conquistou a vaga com a experiência acumulada nas divisões de base do Corinthians e em times do interior de São Paulo, antes de lançar-se no futebol fluminense, em 2010, tendo passado pelo Audax e Olaria. Empolgado com o título, o atleta contava, em setembro, defender o gol do rubro na Série A em 2016. “O primeiro degrau já subimos: era conseguir chegar”, diz. Previdente, o goleiro divide a bola com um curso a distância de administração de empresas.

Após a volta à elite do futebol carioca, o sonho americano é converter em renda o combalido patrimônio imobiliário do clube, fundado em 1911. Dono de um quarteirão na Rua Campos Sales, Tijuca, o América fechou sua sede em julho, devido ao mau estado das instalações – piscinas com azulejos quebrados, banheiros precários, caixa de água prestes a rachar e instalações elétricas a um passo de causar curto. Almada está à procura de empresas para a construção de uma sede nova integrada a um shopping center a fim de gerar dinheiro. O clube deixou de usar o estádio local em 1962 e manteve outro no bairro do Andaraí até erguer o de Mesquita.

Os clubes de menor porte têm lugar especial na trajetória do esporte carioca – e, por tabela, do brasileiro. Enquanto as ligas principais, como a Metropolitana do Rio de Janeiro, proibiam a presença de trabalhadores nos times filiados, os clubes formados nos subúrbios e no entorno das fábricas foram espaços de desenvolvimento esportivo para muitos operários, que viram no futebol um meio de ascensão social, destaca o historiador Leonardo Affonso de Miranda Pereira, autor do livro Footballmania: Uma História Social do Futebol no Rio de Janeiro (Nova Fronteira, 1ª edição, 2000), sua tese de doutorado.

As regras nos clubes de elite da zona sul da cidade, que se tornariam grandes, incluíam também a proibição de negros, em nome da distinção social associada ao futebol, importado da Europa. Lazer elegante dos jovens ricos, o esporte foi pouco a pouco produzindo craques fora do circuito chique. “Seu sucesso nos campos fez com que, mesmo de forma lenta, os clubes grandes passassem a burlar as proibições, acabando por acolher jogadores antes excluídos das ligas principais”, assinala Leonardo Affonso, professor da Pontifícia Universidade Católica Rio de Janeiro (PUC-Rio). Exemplo dessa virada foi a fama alcançada, nos anos 1930, por negros como o zagueiro Domingos da Guia, do Bangu, e o atacante Leônidas da Silva, do Bonsucesso.

A tradição dos pequenos na antiga capital da República guarda, portanto, relação direta com o papel que o futebol representou na formação da sociedade carioca. “No Rio, o futebol serviu como meio poderoso de articulação de identidades entre moradores de bairros e regiões. Desde a década de 1910, formavam-se clubes dedicados ao jogo em todos os bairros, como forma de afirmar a elegância e a modernidade associadas ao novo esporte”, afirma Miranda Pereira, um flamenguista que também torce pelo Bangu. Mas, proletários e suburbanos numa cidade de fortes contrastes socioespaciais, os pequenos nunca concorreriam em recursos com os grandes.

Oitavo lugar no Estadual da Série A, em 2015, o Bangu foi páreo duro para os grandes até os anos 1980. Campeão carioca em 1966 e vice no “Brasileirão” de 1985, o clube tem entre seus ídolos dois nomes que alcançaram projeção nacional – o meia Zizinho e o ponta-direita Marinho. Craque na seleção brasileira de futebol, de 1942 a 1957, Zizinho era um dos melhores do mundo em sua posição quando foi comprado do Flamengo, antes da Copa de 1950. Consagrado no certame, deu títulos ao Bangu até 1957 e foi para o São Paulo, onde viria a servir de inspiração para um novato apelidado de Pelé, então, um jovem atleta do Santos. Zizinho voltou ao Bangu como técnico e morreu em 2002. Seus pés estão gravados no hall da fama do Maracanã.

Número dois no panteão vermelho e branco, Marinho encarna o apogeu e a queda vividos por atletas que brilharam nos nanicos. Adquirido do América de São José do Rio Preto (SP) em 1983, ele deu alegrias aos banguenses até 1987, tendo sido o último do clube a vestir a camisa da seleção, em 1986. Nos anos 1990, após jogar no Botafogo, voltou para pendurar as chuteiras em Moça Bonita, estádio do Bangu, e trabalhou como treinador de times menores. Marinho entrou em 2015 empobrecido e com tuberculose. Para ajudá-lo, amigos famosos como Zico e Júnior disputaram, em julho deste ano, um torneiro beneficente em Três Rios (RJ).

Referência comunitária

Um dos mais antigos clubes brasileiros, o Bangu reivindica a condição de berço do futebol no país. Ele foi criado em 1904, mas operários da Fábrica de Tecidos Bangu jogavam peladas desde setembro de 1894 com uma bola trazida ao Brasil por um dos técnicos da indústria, o escocês Thomas Donohoe. Seu Danau, como Donohoe ficou conhecido, é lembrado com uma estátua de bronze erigida em 2014 diante da antiga fábrica, hoje transformada em shopping center. A pelada banguense precedeu em sete meses a partida organizada por Charles Miller (filho de pai escocês e mãe brasileira de origem inglesa), no bairro paulistano do Brás e considerado o primeiro jogo de futebol realizado no Brasil.

Jogador do modesto Olaria após ter feito fama no Botafogo, nos anos 1960, o meia Afonsinho testemunha que os pequenos, além de formar atletas, são referência comunitária em seus bairros. “Quando cheguei ao Olaria, o que me chamou a atenção foi a organização. O Botafogo tinha um grande time, mas o resto era improvisado; o Olaria era um clube certinho, estruturado.” Afonsinho foi pioneiro na conquista do passe livre no país e no uso de barba e cabelo grandes nos gramados. Banido do time botafoguense continuou no futebol graças a um convite do Azulão, da Rua Bariri. “O Olaria foi o meu renascimento”, recorda-se.

Rival histórico do Bonsucesso, vizinho que também arrebata corações na zona norte, o Olaria garante o lazer de uma legião de famílias da região da Leopoldina, cortada por um dos mais movimentados ramais ferroviários do Rio. Além de estádio, o Azulão dispõe de sede com piscinas, toboáguas, salão de festas, parque infantil, churrasqueiras ao ar livre, ginásio e dois campos de futebol. Em 2012, esse patrimônio foi leiloado pela Justiça para a quitação de débito trabalhista com o ex-volante Valter, que seis anos antes defendera o clube na Série B. Salvo pela falta de arrematante, o complexo esportivo foi tombado pela Prefeitura em outubro de 2013.

Sétimo colocado na Série B do Estadual, o Olaria amarga tempos difíceis no futebol, mas compensa o infortúnio revivendo dias saudosos. Em julho, no centenário do time, os torcedores celebraram a passagem de Mané Garrincha pelo clube, onde o craque assinou o último contrato, em 1972, aos 38 anos. Outra honra: ter sido o primeiro time de Romário, em 1979, na categoria infantil. O clube viveu naquela década sua última fase de alta, que incluiu a estreia no Campeonato Brasileiro de 1973 e uma vitória sempre lembrada sobre o Santos, por 2 a 1, em pleno estádio de Vila Belmiro.

Afonsinho lamenta o desamparo dos pequenos como o Olaria, que pouco têm a oferecer de visibilidade em troca de patrocínios. O ex-craque, que iniciou a carreira no XV de Jaú, no interior paulista, prega que empresas de controle estatal, como a Caixa Econômica Federal (CEF) incluam os nanicos nas verbas de publicidade. “O dinheiro público deveria ser empregado na consolidação de uma estrutura de base dos clubes menores. Hoje, com a concentração do patrocínio nas séries A e B, o ‘Brasileirão’ virou o campeonato da Caixa”, lastima-se. A CEF investiu mais de R$ 100 milhões no campeonato em 2015 e foi patrocinadora principal de oito dos 20 participantes, incluídos gigantes como Corinthians e Flamengo.

O fato é que o dia a dia dos pequenos passa muito longe das cifras do “Brasileirão”. O São Cristóvão, que teve lugar cativo na primeira divisão nos anos 1960 e 1970, disputou a Série B em 2015 com uma folha de pagamentos que oscilou de R$ 40 mil a R$ 45 mil mensais – e ainda saiu do certame com dois meses de salários atrasados. “Bati na porta de 25 empresas e não consegui nada”, conta Emmanuel França, presidente do time, resumindo sua via-crúcis à procura de patrocínio. Parte das despesas foi coberta com a receita do aluguel de galpões na sede náutica e de um espaço para shows na social. Como a conta nunca fechava, afirma França, advogado aposentado e dono de estacionamento, ele tirava o que dava do próprio bolso.

O orgulho do São Cristóvão é ter formado o atacante Ronaldo Nazário, uma história que se alongou de 1990 a 1993. Menino pobre do subúrbio de Bento Ribeiro, o Fenômeno foi acolhido pelo clube aos 14 anos de idade, com auxílio para as passagens de trem – ele não pôde treinar no Flamengo por falta de dinheiro para a condução. Passadas duas décadas, o modesto estádio na Rua Figueira de Melo tem o nome de Ronaldo. Suas transferências milionárias no futebol europeu renderam ao São Cristóvão, na década passada, mais de R$ 1,6 milhão – valor correspondente ao percentual reservado nas transações de atletas a seus clubes formadores, de acordo com o estatuto da Federação Internacional de Futebol (Fifa).

Gravação de vídeos

A exemplo de outros pequenos do futebol carioca, o São Cristóvão dispersou a equipe mal havia terminado sua participação no certame, no meio de junho, ao fim de três meses de campanha. O curto período de atuação e remuneração dos atletas – realidade generalizada de norte a sul do país – evidencia as dificuldades de profissionalização no futebol fora do circuito glamouroso dos grandes clubes e seus patrocinadores miliardários. “Não posso pagar salário para o cara ficar em casa”, fala França. Com as finanças no vermelho, ele negociava com os jogadores, em setembro, o parcelamento dos atrasados, e previa zerar o passivo em outubro.

Um dos credores era o meia Igor Lucas, 20 anos. “Acredito na palavra do presidente”, dizia o jogador à espera de dois salários que haviam ficado para trás. Com passagens pelo Flamengo e CFZ do Rio, clube-empresa criado pelo ex-craque Zico, ele estreou no São Cristóvão em 2013, na Série C. No ano seguinte, integrou o time que conquistou a subida para a B, série em que permanecerá em 2016. Para engordar o salário pouco acima do mínimo, Igor se alternava entre a rotina no clube e o trabalho com o pai, gerente de um bar restaurante no centro do Rio. “Saía dos treinos e ia ajudá-lo à noite”, conta. “O dinheiro não dava para muita coisa”.

Nove entre dez atletas dos pequenos clubes aplicam economias na gravação de vídeos com suas melhores jogadas, para exibi-las em DVDs a empresários do esporte, olheiros e cartolas. O sonho comum é vestir a camisa de um time maior e deslanchar no globalizado mundo da bola, que tem no Brasil um respeitado fornecedor de talentos. “Espero, se tudo der certo, jogar num clube de nome, com chances de subir e acontecer”, aposta Igor Lucas. Até o futuro próximo é incerto para os jovens dispensados pelos pequenos ao fim de cada campeonato, pois não sabem se serão chamados no ano seguinte, se terão vaga em outro time ou se ficarão longe dos gramados.

Com experiência em clubes pequenos e grandes, no país e no exterior, o presidente do Sindicato dos Atletas de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (Saferj), Alfredo Sampaio, tem olhar crítico para a ciranda dos clubes de pequeno porte. Os oito nanicos cariocas com tradição integram uma lista de 85 clubes fluminenses que a Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (Ferj) reconhece como praticantes do futebol profissional, incluídos os grandes e outros pequenos novatos do Rio, como Barcelona, de Jacarepaguá; Ceres, de Bangu, e Barra da Tijuca. Dessa relação, 49 disputaram em 2015 as séries A, B e C – nesta última, o carioca Campo Grande debate-se há anos.

“Os pequenos podem ser divididos em dois grupos: que jogam a Série A, como Bangu e Madureira, com direitos de transmissão de tevê e que tem recursos para honrar compromissos; e que estão nas séries B e C, onde começam os problemas. Alguns, como o América e a Portuguesa, cumprem compromissos, mas outros estão no futebol por obrigação estatutária ou paixão, sem condições de ter status de clube profissional”, diz Sampaio. Ex-zagueiro e treinador, ele propõe que o Ministério do Esporte e a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) criem um certificado para os clubes profissionais, condicionado a requisitos gerenciais e financeiros.

O sindicalista considera que a maioria dos pequenos compõe “um mercado de trabalho de mentira, que gera grande ilusão” e rende dividendos políticos a muitos cartolas. Jovens sem talentos notáveis, testemunha Alfredo Sampaio, perdem anos nesses clubes, ganhando mal e nem sempre em dia, na expectativa de serem descobertos para a fama, mas chegam aos 30 anos sem outra formação e experiência profissional. “A realidade é ruim não só nos salários: há clubes em que o campo é ruim, não há médicos nos treinos e até água falta”, deplora. Mas, tradicionais ou neófitos, sustentáveis ou insolventes, os pequenos do Rio seguem em campo – cada um torcendo para estar no topo da gangorra em 2016.