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Os índios do século XXI
O Rio de Janeiro continua índio 450 anos depois de sua fundação, mas nenhum guarani foi convidado para a festa de aniversário. No dia 1° de março, nenhum índio soprou a velinha do tradicional bolo de quase meio quilômetro que a Sociedade dos Amigos da Rua da Carioca fez para festejar os 450 anos da cidade, como parte da programação que prevê, ao longo do ano, a realização de 600 atividades: conferências, seminários, projeções, exposições, missa, performances, teatro, orquestras, bandas, salva de tiros, regata… Os índios, porém, estão ausentes de quase todas e da própria mídia, embora estejam presentes na história carioca, a passada e a atual.
A mídia, como regra geral, prefere folclorizar a figura do índio. Em pleno século XXI, jornais ainda estranham o fato de índios usarem iPhone, como se isso fosse algo inusitado. Desta forma, congelam as culturas indígenas e reforçam o preconceito que enfiaram na cabeça da maioria dos brasileiros de que essas culturas não podem mudar e se mudam deixam de ser “autênticas”.
A imagem midiática do índio “autêntico” é a do índio nu ou de tanga, no meio da floresta, de arco e flecha, tal como foi visto por Cabral e descrito por Caminha, em 1.500. Essa imagem ficou congelada por mais de cinco séculos. Qualquer mudança nela provoca estranhamento.
Quando o índio não se enquadra nesta representação que dele se faz, surge logo reação: “Não são mais índios”. O “índio de verdade” é o “índio de papel”, da carta do Caminha, que viveu no passado, e não o “índio de carne e osso” que convive conosco, que está hoje no meio de nós.
Na realidade, trata-se de manobra interesseira. Se o índio é destituído de sua identidade, nega-se a ele o direito garantido pela Constituição de 1988 do usufruto de suas terras¿—¿que são consideradas juridicamente propriedades da União. Nega-se a identidade indígena aos que hoje as ocupam. Se são ex-índios, então não têm direito à terra.
Criou-se, através dessa manobra, uma nova categoria até então desconhecida pela etnologia: a dos “ex-índios”. Uma categoria tão absurda como se os índios tivessem congelado a imagem do português do século XVI, e considerassem o escritor José Saramago ou o jogador Cristiano Ronaldo como “ex-portugueses”, porque eles não se vestem da mesma forma que Cabral, não falam e nem escrevem como Caminha.
O cotidiano de qualquer cidadão no planeta está marcado por elementos tecnológicos emprestados de outras culturas. A calça jeans, o paletó e gravata que vestimos não foram inventados por brasileiro. A mesa e a cadeira na qual sentamos são móveis projetados na Mesopotâmia, no século VII a. C., daí passaram pelo Mediterrâneo onde sofreram modificações antes de chegarem a Portugal, que os trouxe para o Brasil.
A máquina fotográfica, a impressora, o computador, o telefone, a televisão, a energia elétrica, a água encanada, a construção de prédios com cimento e tijolo, toda a parafernália que faz parte do cotidiano de um jornal brasileiro¿—¿nada disso tem suas raízes em solo brasileiro. No entanto, a identidade brasileira não é negada por causa disso. Assim, não se concede às culturas indígenas aquilo que se reivindica para si próprio: o direito de transitar por outras culturas e trocar com elas.
Foi o escritor mexicano Octávio Paz que escreveu com muita propriedade que “as civilizações não são fortalezas, mas encruzilhadas”. Ninguém vive isolado, fechado entre muros. Historicamente, os povos em contato se influenciam mutuamente no campo da arte, da técnica, da ciência, da língua. Tudo aquilo que alguém produz de belo e de inteligente em uma cultura merece ser usufruído em qualquer parte do planeta.
Setores da mídia ainda acham que “índio quer apito”. No currículo dos cursos de comunicação social que formam jornalistas, não circula qualquer informação sobre as culturas indígenas, que são vistas como algo do passado. O antropólogo Darell Posey, que trabalhou com os Kayapó, escreveu:
“Se o conhecimento do índio for levado a sério pela ciência moderna e incorporado aos programas de pesquisa e desenvolvimento, os índios serão valorizados pelo que são: povos engenhosos, inteligentes e práticos, que sobreviveram com sucesso por milhares de anos na Amazônia. Essa posição cria uma “ponte ideológica” entre culturas, que poderia permitir a participação dos povos indígenas, com o respeito e a estima que merecem, na construção de um Brasil moderno”.
Esses são os índios do século XXI. A mídia olha para eles, mas parece que não os vê.
Jose Ribamar Bessa Freire é professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.