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Jogo é coisa séria!
Eu sou da época do Atari. Quando tinha cerca de oito anos, minha mãe comprou um console para mim e meu irmão. Ficamos fascinados com aviõezinhos, carrinhos e espeleologistas em toda a sua glória pixelada. Passávamos horas em frente à TV, absorvidos nos procedimentos repetitivos demandados pelos jogos da época. Da mesma forma que um adolescente de hoje é capaz de passar a madrugada inteira se esgueirando por uma representação quase perfeita da Toscana medieval, em busca de alvos para assassinar. Familiares, médicos e pedagogos podem argumentar que passar tempo demais se relacionando com videogames é prejudicial à saúde, à educação e à formação psicológica, mas tanto meu irmão quanto eu nos tornamos membros produtivos da sociedade, apesar do “vício” em Atari.
De fato, posso atribuir aos videogames ao menos uma habilidade importante: a fluência em inglês. Quando passamos para a geração 8-Bit do Nintendo, descobri o universo dos role playing games com Final Fantasy. O problema é que, para avançar no jogo, precisava entender diálogos complexos em inglês. Já tinha uma base na língua, fornecida pelo colégio, e passei a jogar com um dicionário a meu lado. Ao mesmo tempo, nosso pai assinou a revista americana Nintendo Power, que esperávamos ansiosamente todo mês e líamos de cabo a rabo, para conhecer os lançamentos e descobrir macetes como o código Konami (↑ ↑↓ ↓← → ← → B A; tentem essa sequência em qualquer website para revelar surpresas). O melhor incentivo para se aprender alguma coisa é ter objetivos de curto prazo claros, o que os jogos eletrônicos fornecem em profusão.
Se mesmo jogos relativamente toscos como os da geração Atari e da geração 8-Bit ofereciam potencial para o aprendizado, hoje as ferramentas para a criação de jogos ricos em informação e diversão podem ser apropriadas por educadores, artistas e até mesmo pela imprensa. A tartaruguinha do Logo ensinava os princípios básicos de programação às crianças ainda nos anos 1990. Simuladores ensinam pilotos a voar Boeings e mecânicos a instalar som automotivo. Publicações mundo afora têm investido em jogos jornalísticos, que vão de labirintos nos quais o leitor deve conduzir a Mulher Melancia, produzido pela editoria “Ego” de O Globo, a role playing games em que o leitor assume o papel de um repórter cobrindo a emergência humanitária do terremoto no Haiti, criado pela emissora de TV pública do Canadá.
A grande vantagem dos jogos jornalísticos é a taxa de retenção de informações. Pesquisas científicas relatam que, enquanto os espectadores se esquecem das notícias veiculadas nos telejornais, ou do que leram em semanários, em cerca de 15 minutos, a taxa de retenção das informações oferecidas em jogos eletrônicos pode ficar acima de 70%¿—¿contra 20% para textos simples, por exemplo. O fascínio exercido pela interação com imagens na tela, que tanto preocupa pais e educadores, é justamente o mecanismo através do qual a mente se predispõe a perceber e armazenar uma quantidade maior de informação.
A relação de interação entre homem e máquina permite a imersão do ser humano no cenário do jogo e o desempenho do protagonismo numa narrativa procedimental, cujo fim só se dá pela ação. Enquanto um jovem pode assumir uma postura passiva ou indiferente em sala de aula, ou ao assistir aos telejornais no sofá da sala, é impossível ter um bom desempenho num jogo eletrônico sem se envolver totalmente. Os videogames se mostram, portanto, promissores para a educação e a disseminação de informações de interesse público. A imersão em simulações também tem potencial para apresentar aos nativos de uma cultura¿—¿a ocidental europeia, por exemplo¿—¿outras formas de estar no mundo. Um exemplo recente é Never Alone, um jogo desenvolvido por uma comunidade inuit para reforçar seu imaginário e valores culturais entre as novas gerações, além de difundi-los para outras sociedades. Jogos de estratégia como Europa Universalis e Crusader Kings podem ajudar os estudantes a compreender sistemas complexos como o feudalismo e o mercantilismo, enquanto se divertem¿—¿com efeito, SimCity, um simulador de administração pública, é usado há décadas em escolas.
A história recente mostra que os hábitos de consumo de mídia e de entretenimento das novas gerações são condenados ou temidos pelos mais velhos. Nos anos 1950, eram atribuídas aos quadrinhos as mesmas mazelas hoje atribuídas aos videogames. Os mesmos jovens que se criaram lendo, por vezes às escondidas, as aventuras do Super Homem, agora criticam o hábito de jogar dos filhos como, na melhor das hipóteses, perda de tempo. Os jovens têm a desculpa de nunca terem sido velhos para não entenderem como nós pensamos. Qual é a nossa desculpa?
Marcelo Träsel é doutor em Comunicação Social e professor na Famecos/PUCRS.