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“Plínio era um homem livre”
Oswaldo Mendes é ator, diretor de teatro, jornalista e foi amigo pessoal de Plínio Marcos. Escreveu a biografia do dramaturgo, Bendito Maldito, lançada em 2009, dez anos após a morte dele. Aos 68 anos, Oswaldo frequenta os palcos há 52 e conheceu Plínio quando atuava no teatro amador de Marília (SP). Os dois se reencontraram na capital paulista, onde trabalharam juntos no jornal A Última Hora.
Como você chegou ao teatro e conheceu Plínio Marcos?
Criaram um grupo de teatro na escola, em Marília (SP), e me chamaram para participar em 1962; eu tinha 15 para 16 anos. Estreei numa peça intitulada Chá e Simpatia, que mostrava a relação de homossexuais. Era um assunto proibido, não havia a homofobia de hoje, mas existia preconceito, as pessoas viravam o rosto para não ver. Depois, Cacilda Becker, Cleyde Yáconis e Walmor Chagas foram até a cidade com uma peça, e ajudamos a vender ingressos para duas sessões. Parte do valor ajudou na nossa formatura e ainda conseguimos viajar para o Rio.
Em 1967, o Plínio foi lá fazer Dois Perdidos Numa Noite Suja, foi quando nos conhecemos. Vim para São Paulo com 19 anos, fiz um curso na Escola de Arte Dramática da USP, com o Augusto Boal, sobre dramaturgia e crítica. Eu e o Plínio nos reencontramos em 1969, em A Última Hora, ele era cronista e eu, jornalista. Fomos amigos por toda a vida, frequentávamos as mesmas mesas e nunca brigamos, só nos desentendemos uma vez por questões profissionais. Conciliei o teatro e o jornalismo até os 45 anos, aí vi que não tinha mais o que fazer na imprensa, começou a perder a graça, e passei a viver dos palcos.
Como foi, sendo amigo, ter escrito a biografia de Plínio Marcos?
No dia da cremação do Plínio, o filho mais velho dele, Léo Lama, disse que eu tinha a obrigação de escrever a biografia do pai dele. Isso porque eu já tinha feito a biografia do Ademar Guerra [diretor de teatro famoso nas décadas de 1960 e 1970, responsável por montagens como Hair e Marat/Sade]. Falei para o Léo: “Depois a gente conversa”, e fui adiando, pois não via sentido em fazer aquilo tão próximo da data de morte do Plínio, precisava de uma certa distância.
Outro autor já tinha começado a escrever sobre ele em 1992, mas entrou na questão dos amores, e o Plínio proibiu. Uma biografia não é olhar pelo buraco da fechadura, a não ser que a vida particular tenha ressonância na obra, o que não era o caso. Acabei, depois, usando vários depoimentos que esse escritor havia recolhido. Em 2007, a editora [Leya] topou lançar o livro nos dez anos de morte do Plínio, e a poeira já tinha assentado. Aí consegui me distanciar, mas não deixei de escrever os “pecadilhos” que ele cometeu.
Quais foram as principais contribuições de Plínio para a cultura brasileira?
A primeira contribuição dele foi dar voz no teatro a quem não tinha. Esses personagens não estavam nos palcos, só levavam porrada, não conseguiam mudar nem a própria história. Plínio sentia carinho, amor, dor e imensa compaixão por eles. E nenhum dos personagens é melhor que o outro, o cafetão é tão lamentável quanto a prostituta ou o travesti.
Ele tinha esse olhar de cumplicidade, dava voz sem colocar a dele como mediador, não tentava pôr seus pensamentos ali. Essas pessoas existem, mas não contam nas estatísticas, a gente não dá atenção. Além disso, o Plínio tinha uma grande capacidade de síntese e causou uma ruptura na duração das peças, que normalmente tinham dois atos. Navalha na Carne, por exemplo, era encenada em 50 minutos. Havia, ainda, a linguagem das ruas nas peças dele, mas não tinha tanto palavrão assim, desafio as pessoas a procurar.
Por que predomina sempre a imagem de Plínio Marcos como um autor de teatro?
Ele foi maior dramaturgo que cronista, autor, romancista. O teatro dele é modificador. Com o Nelson Rodrigues, ocorreu a mesma coisa. Ainda que as crônicas de futebol dele sejam importantes, as peças prevaleceram.
Como você vê a adaptação da obra de Plínio para a linguagem audiovisual?
Isso depende menos dele do que de quem assume essa tarefa. A adaptação é sempre outra linguagem, fala além do autor, embora concentre a ação naquilo que a obra tem de essencial.
O Neville D’Almeida [diretor da versão de Navalha na Carne para o cinema, em 1997] transformou Neusa Sueli em Jesus Cristo. O Plínio respeitou, era uma outra obra. Mas essa não era a visão dele, da prostituta coitadinha, crucificada.
Ele também brincou que o Vado [cafetão], com aquele sotaque cubano, ficou parecendo o Veludo [travesti]. Mas ele negociou [os direitos], foi pago, então aquilo não lhe pertencia mais. As obras são inspiradas, baseadas, adaptadas sobre o que o Plínio fez.
Que impacto a censura do regime militar e da mídia teve na vida e na obra de Plínio Marcos?
Ele continuou produzindo, apesar de tudo. E sempre dizia sobre o que passou: “Eu fiz por merecer” – que era o título que eu queria inicialmente para o livro. O problema é que ele não pertencia a grupos, não tinha carteirinha de nada, vivia apenas com um conceito detribo, de estar junto do núcleo familiar. Ele brincava: “Se eu fosse católico, pelo menos alguém me daria uma hóstia”. A família dele era o teatro, e ele não gostava de rótulos – como o de anarquista – e tinha aversão a gurus, chefes.
O Plínio era um homem livre, temperamental, um modelo de integridade. Alguém que queria poder cometer os próprios erros com as próprias pernas e pensar com a própria cabeça.
Plínio era uma pessoa coerente e desapegada de bens materiais. Essas eram suas principais qualidades?
O Plínio era generoso, ganhava roupas de presente de Natal e dava para o porteiro, zelador. Também não tinha muita noção de valores, cobrava apenas pela necessidade que tinha naquele dia, se queria comprar um presente para o filho, por exemplo. Ele tinha muita coerência entre discurso e prática, era aquilo mesmo, gostassem ou não.
Você acha que os temas de Plínio Marcos continuam atuais?
O teatro sempre procura tratar de temas atuais, tem urgência em falar para o público. O problema é ele ser efêmero, perder a importância. O que dura é aquilo que vai na essência, sobre o comportamento humano, a compreensão da condição humana.
O ideal do ser humano é chegar a um estágio em que a arte seja supérflua. Enquanto não chegar, essa urgência é condição sine qua non. E o teatro perdeu um pouco isso, de falar com alguém, de ressoar nas pessoas, para ajudá-las a entender o mundo em que estão vivendo. Mas acho que o teatro aos poucos está voltando à sua essência, de abordar temas que o indivíduo entenda, ou o incomode, ou lhe diga respeito.