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Potencial político do documentário latino-americano

Na América Latina, o documentário teve grande relevância nas lutas de emancipação política ou no diagnóstico de problemas sociais locais e igualmente na tradição cinematográfica por ter dado a conhecer nossa história e ter mostrado nosso povo para outras culturas. Por isso, podemos assegurar que seu duplo caráter de organizador das memórias bem como o de porta-voz das minorias ocultas, torna o documentário latino-americano um dos meios de expressão que mais se dissemina para nos representar fora das esferas convencionais. E isso porque, diferente do cinema de ficção, o documentário parece ter buscado expandir-se para além das salas de cinema, encontrando na TV, na internet e nas comunidades locais circuitos alternativos de exibição. Nestes lugares exerce de forma mais profícua sua mais nobre função: a reflexão política. Essa dimensão relacionada à circulação dos documentários não é menos importante quando pensamos em outro papel que ele desenvolve: o de educar. Desse modo, o documentário latino-americano consolida-se com novos realizadores que estão fora do mainstream, com novos formatos, como é o caso dos curtas e das séries, e com isso conquista novos espectadores.


Diversos documentários recentes em nosso continente recuperaram o tema ditadura. Entre esses filmes podemos citar H.I.J.O.S. - El Alma en Dos (2002), dos argentinos Carmen Guarini e Marcelo Céspedes; os chilenos Nostalgia de la Luz (2010), de Patrício Guzmán; El edificio de los chilenos (2010), de Macarena Aguiló e El Eco de las Canciones (2010), de Antonia Rossi, assim como o  paraguaio Cuchillo de Palo (2010), de Renate Costa.  Dentre esses filmes citados duas coisas chamam atenção: a narração em primeira pessoa e, com exceção do documentário de Guzmán, o fato de que todos são realizados por jovens cineastas que buscam compreender suas próprias vivências quando crianças e o que se passou durante os anos duros. A contribuição desses filmes sobre o trabalho com arquivos selecionados a partir das subjetividades é o que parece ampliar a discussão sobre as políticas da memória e sobre a reflexão acerca dos efeitos da ditadura em novos contextos e para as novas gerações.


Em outra chave, também poderíamos citar os brasileiros Eduardo Coutinho com Edifício Master (2002) e Jogo de Cena (2007); Ônibus 174 (2002), de João Padilha; Santiago (2007) de João Moreira Salles e Un Tigre de Papel (2007) do colombiano Luís Ospina, diretores que utilizaram a entrevista como espinha dorsal em suas produções. Vale notar que os filmes mencionados são contemporâneos e coetâneos, o que também seria interessante para pensar nos possíveis diálogos entre problemáticas e estilos. Nos filmes de Padilha e de Coutinho, ressalta-se a vertente mais antropológica e que parece recorrente em muitos documentários latino-americanos. Nesses casos, tanto a observação participante (Edifício Master) como a intervenção do cineasta (Ônibus 174) revelam o protagonismo dos realizadores na produção da chamada “realidade”. Por outro lado, o método e o posicionamento dos realizadores também provocam a experimentação do próprio formato que flerta com a dicotomia verdade/mentira. Em Jogo de Cena, numa espécie de “simulação”, Coutinho embaralhara as histórias de vida de atrizes e mulheres comuns que invertem seus papéis ao relatar seus dramas cotidianos. Moreira Salles, por sua vez, ao tentar contar a história do mordomo de sua família, revela a dimensão ética do realizador por meio da confissão ao espectador dos procedimentos de montagem do filme.  Assim, as diferenças sociais entre quem filma e quem é filmado tornam-se evidentes. Por fim, Ospina coloca a mentira como metáfora da ignorância da história colombiana. Ao criar um filme sobre um artista que nunca existiu, o diretor expõe a “realidade” dos últimos trinta anos de seu país. Com estilos e temáticas diferentes, esses filmes expressam a idiossincrasia de nossos países, baseados, sobretudo, no tema da desigualdade.


Longe de querer construir categorias com essas agrupações, chama nossa atenção o aspecto político inerente a todos esses filmes produzidos recentemente no nosso continente, quer seja do ponto de vista temático, de produção ou estético. Nem todos tiveram ampla distribuição nas salas de cinema; alguns, por exemplo, somente circularam em festivais. Ainda assim, a maioria dos filmes citados são obras de reconhecidos realizadores. Por isso, embora não haja espaço aqui, mencionamos a importância de iniciativas como a da TV TAL que não apenas produz documentários em colaboração, mas os faz circular por toda América Latina mediante parcerias com canais públicos de televisão ou ainda iniciativas como as da ONG Vídeo nas Aldeias, que desde 1986 desenvolve produções audiovisuais protagonizadas por realizadores indígenas, apoiando-os em suas lutas para fortalecer suas identidades e patrimônios culturais.

 


Elen Doppenschmitt é doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e docente na FMU/FIAM-FAAM.