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A arte da convivência
texto: Gabriel Vituri
Pelo menos duas vezes por semana, João e Catarina – de seis e três anos, respectivamente –, acompanhados pela mãe, descem uma rua íngreme no bairro da Bela Vista rumo a um aconchegante destino. Logo em seguida, assim que o portão verde e gradeado do edifício se abre, o casal de irmãos corre em direção à avó, que geralmente já os espera de prontidão. Dona Cecília, como é conhecida por todos os moradores do condomínio de 13 andares onde também exerce o papel de síndica, tem quatro netos – dois deles moram a uma quadra de sua casa.
“Eu sou aquela avó que curte, acho que não faria outra coisa na minha vida, e as crianças são muito apegadas a mim”, conta Cecília Neger, de 67 anos. O outro par, Pedro e Ana, de nove e oito anos de idade, mora mais longe, na zona sul da capital paulista. “As crianças hoje são espertas; elas têm a televisão, esses aparelhos que manuseiam com uma facilidade que eu nem sei, e existem aquelas coisas que antigamente era difícil falar, de namoro, sexo, e que elas sempre perguntam, nos deixando meio embaraçados”, diz. “A gente tenta responder, porque não dá pra mentir. Se você não ensinar, elas vão aprender de outras formas e pode acabar sendo pior”.
Apesar de o convívio entre netos e avós, no Brasil, ser relativamente comum e corriqueiro entre muitas famílias há pelo menos duas décadas, a relação entre a avó Dona Cecília e seus quatro netos reflete uma questão mais ampla: atualmente, crianças, jovens, adultos e idosos, nascidos em gerações completamente díspares, começam a compreender que é preciso dividir os espaços – em casa e na rua.
Os primeiros programas que discutiam as relações intergeracionais – termo que define a convivência entre indivíduos de tempos distintos – surgiram entre as décadas de 1960 e 1970 na América do Norte, sobretudo nos Estados Unidos. As pesquisas sobre o tema, todavia, ainda são parte de um campo em desenvolvimento. Segundo o psicólogo José Carlos Ferrigno, na Europa e no restante do continente americano, a prática se expandiu com mais intensidade somente a partir dos anos 90. “Não é questão de integrar o idoso na sociedade, e sim de integrar diferentes gerações. Só quando surgiram os primeiros profissionais da gerontologia é que se percebeu que isso não é restrito, que não faz parte da dicotomia entre jovens e velhos”, explica o especialista.
Professor afiliado ao departamento de sociologia da Universidade de Granada, na Espanha, Mariano Sánchez Martinez trata a intergeracionalidade como algo absolutamente pessoal. “O termo poderia ser definido como qualquer relação em que diferentes gerações estão envolvidas, mas isso é muito pequeno se comparado à experiência em si. Estamos falando de algo que não conseguimos descrever”, afirma. Para o estudioso espanhol, o ponto-chave deve tratar de “ações em que as pessoas estejam envolvidas para compreender a si mesmas”. E completa: “Devem sentir que estão conectadas ao mundo e que podem aprender. Ter essa identidade não é individual, é sempre coletivo” (leia a entrevista completa).
Se, de um lado, existe o consenso entre estudiosos de que o tema deve ser tratado da forma mais ampla possível, por outro, é inevitável que os idosos se tornem o centro das atenções do debate, uma vez que o envelhecimento populacional é uma realidade cada vez mais latente – e atualmente estendido a países em desenvolvimento, saindo das cercanias europeias e de outras regiões do chamado Primeiro Mundo. No Brasil, por exemplo, entre os mais de 190 milhões de habitantes, cerca de 14 milhões (ou 7,4% da população) têm 65 anos ou mais, de acordo com o Censo 2010. “As pessoas estão se acostumando a essa convivência, é inevitável”, defende Ferrigno. Para Mariano Sánchez Martinez, é justamente esta a novidade: “As relações sempre estiveram aí. É verdade que se vivemos mais, como hoje, existe a probabilidade de cada indivíduo interagir com três ou quatro gerações ao mesmo tempo. Pela primeira vez na história humana isso está acontecendo”, diz.
Avanços na área médica e crescimento econômico são só alguns dos fatores que contribuem para que o tema permaneça em evidência. Além disso, com o aumento da expectativa de vida e com a inserção da mulher no mercado de trabalho, a estrutura patriarcal – que remete ao “velho sábio” – caiu por terra de vez. “Nós precisamos pensar de que tipo de família estamos falando. Hoje em dia, muitas mulheres são as ‘donas da casa’, já estão separadas e cuidam dos filhos sozinhas. Além disso, às vezes você encontra gerações juntas sem qualquer apoio masculino”, defende Vera Brandão, pedagoga e pesquisadora do Núcleo de Estudos do Envelhecimento no curso de pós-graduação da PUC-SP.
Embora indivíduos com mais experiência de vida possam tentar exercer o papel de transmitir seu conhecimento adiante, a prática é exceção. “As famílias estão estruturadas de maneira diferente. Essa coisa da propaganda de margarina, com todos felizes no café da manhã, é puro marketing. Há muito disso em cima da velhice ideal, que dança, namora, viaja e faz sexo. Isso existe, e é super legal. Mas e as pessoas mais velhas que não querem dançar ou já não querem ter vida sexual ativa? Só porque estão fora do modelo de mercado não são cidadãos?”, questiona a pedagoga.
Enquanto nos países desenvolvidos o processo de envelhecimento da população foi lento e cadenciado, em lugares como o Brasil isso se deu de forma súbita, impossibilitando que os cidadãos desenvolvessem consciência sobre essa nova realidade. Não é de estranhar, portanto, que idosos sejam tratados de forma idealizada, como explica a pedagoga Vera Brandão, ou pior, como indivíduos já no fim da vida e incapacitados de realizar atividades que os integrem ao restante da sociedade. De que maneira, então, deve-se fomentar as relações intergeracionais sem que a discussão descambe para os estereótipos?
Na opinião da psicóloga Isabella Alvim, não é mais questão de apenas pensar nas pessoas, e sim nas relações: “A longevidade é uma coisa nova, ainda não sabemos como lidar com isso. Em vez de buscar soluções para rejuvenescer, a gente precisa olhar para a importância que a velhice tem”.
JUNTOS E SEPARADOS
Pela compatibilidade da rotina, as gerações mais aproximáveis atualmente são as crianças e os idosos. Com mais tempo livre durante o dia, ambas se encontram com facilidade em lugares públicos e dentro de casa, ao contrário dos jovens e adultos, que muitas vezes, sufocados por horários apertados e atividades em excesso, acabam passando menos tempo com gerações diferentes das suas no dia a dia.
“Se a gente pensar na vida contemporânea, em que os pais vivem correndo, o fato de ter um avô ou uma avó morando por perto pode suprir bem a questão do afeto para as crianças. Não substitui, mas tem grande valor”, defende Isabella Alvim. Por outro lado, ter um núcleo familiar estável e calcado em relações amistosas é indispensável para evitar conflitos. “É muito complicado, porque não dá para chegar a uma conclusão, depende de cada família”, explica a psicóloga.
Além do fato de que gerações diferentes estão vivendo juntas cada vez mais, a noção do idoso que leva uma vida independente vem ganhando contornos sólidos. Mesmo sentindo necessidade de interagir com crianças e jovens, uma grande parcela da população mais velha prefere ter sua própria casa, onde eles definem as regras e estabelecem parâmetros de acordo com suas necessidades. “Pretendo nunca depender de filho pra viver, porque deve ser muito ruim. Se eu ainda tiver condições, quero ficar no meu canto até o ultimo dia da minha vida”, ressalta Dona Cecília.
Vera Brandão exemplifica: “Um idoso em casa com 3 gerações pode até ser respeitado e querido, mas não é o espaço dele. No dia a dia, se só existir uma televisão, o controle remoto nunca estará com ele”. Acostumados anteriormente a viver em espaços – tanto públicos como privados – sem tanta diversidade de gerações, hoje em dia crianças, jovens e adultos são conduzidos a uma convivência inevitável. Dessa forma, é natural que com a interação involuntária propiciada pela mudança da configuração familiar da sociedade contemporânea surja uma série de ganhos, para ambos os lados.
“Estamos mudando de uma cultura voltada ao indivíduo para algo direcionado às relações, em grande parte impulsionadas por essa questão intergeracional. Saímos da coisa do ‘eu’, desse raio-x que restringe o campo e padroniza perfis, para percebermos que existe um terceiro ponto. Entre o meu contato e o seu existe algo mais”, teoriza a psicóloga Isabella Alvim, que faz parte do Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento (Olhe).
O aprendizado de interagir com o diferente e o estreitamento das relações trazem benefícios, embora às vezes desafiantes. “Nem tudo é cor de rosa”, pondera Dona Cecília. “Sempre tem algum bate-boca, porque a gente discorda em algumas coisas. E vai ter atrito mesmo, a vida hoje é outra, são hábitos e ensinamentos diferentes daqueles que eu tive”, diz a síndica. Ceder a pressões, todavia, não significa necessariamente algo negativo no campo da intergeracionalidade; assumir a divergência de opiniões é admitir que há esforço nesta busca de relações estáveis e de ajuda mútua.
DESAFIOS
Chegado o final de semana, Cecília Neger, os filhos, os netos e a mãe, de 87 anos, caem na estrada rumo a Itatiba, a menos de cem quilômetros da cidade de São Paulo. No sítio, em meio a uma tranquilidade inexistente na capital, a temperatura da casa acaba oscilando. Com quatro gerações sob o mesmo teto, pequenas fagulhas são capazes de provocar grandes explosões. “Eles estão em um momento de aproveitar o dia, de relaxar, porque no restante do tempo há horários para tudo. Eu não vivo naquela pressa em dias normais, então sei que não posso ficar nervosa”, admite a síndica , que conta com a ajuda do marido, de 68 anos, para acalmar os ânimos e entender que os hábitos dela são diferentes do restante da família. “É preciso se controlar muito pra não dar problema”, diz ela, com um sorriso de fora a fora.
“Se assumo que o ângulo de visão que eu tenho é uma verdade, eu deixo de respeitar as verdades do outro”, ressalta Isabella Alvim. “Em casa, não dá pra chegar e dizer: ‘Estou de saco cheio e vou embora’. Pode até dar vontade, mas o núcleo familiar não é facilmente separado”, explica José Carlos Ferrigno, especialista no assunto. “Os conflitos geralmente acontecem entre pessoas da mesma família, por conta da relação afetiva, que vive entre tapas e beijos”, ele completa.
Na rua, o quadro é outro. A cena seguinte é corriqueira, sobretudo nas grandes cidades: dentro de ônibus e trens superlotados, em horários de pico, não raro jovens e adultos aparentemente saudáveis fingem não perceber a presença de idosos ou crianças e continuam ocupando assentos destinados a cidadãos em situações mais frágeis. Por impulso, a primeira reação é condenar com fúria tal atitude. Ferrigno, porém, faz um alerta: “A gente parte do princípio de que o idoso é fragilizado. Ficamos incomodados com a falta de solidariedade, mas não percebemos que às vezes aquele jovem passou o dia trabalhando e estudando e, ao menos naquele momento, está muito mais debilitado do que um indivíduo bem mais velho”.
Na opinião de Vera Brandão, membro-fundadora do Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento (Olhe), o excesso de cuidado e preocupação com indivíduos de idade avançada pode se tornar um fator preocupante. “Isso não pode impedir que um idoso leve uma vida independente. Minha mãe tem 90 anos, e é claro que tenho algum cuidado especial. Por outro lado, não posso ficar amolando para que não faça isso ou aquilo, porque ela tem a vida dela, gosta de viajar, sair”, afirma. Para ela, o pressuposto de que os mais velhos estão em situação desfavorecida acaba suprimindo uma vida que ainda pode ser amplamente aproveitada.
Vera, 63 anos, ressalta que apesar de o ritmo diminuir, é possível manter na velhice praticamente as mesmas atividades de uma pessoa com “idade produtiva” – em outras palavras, jovens e adultos que estudam e têm um cronograma diário bem delineado. “Hoje eu me canso mais do que a 20 anos atrás, é claro, mas continuo fazendo tudo o que sempre fiz”, explica a especialista, que também acumula a função de editora no Portal do Envelhecimento, um site dedicado a debater a velhice.
De que maneira, então, a convivência familiar e o convívio em sociedade – em espaços públicos – são avaliados no âmbito das ações intergeracionais? Para Mariano Sánchez Martinez, não deve haver qualquer separação. “É um obstáculo a que devemos prestar atenção, porque isso precisa estar ligado”, diz. Ele explica também que os ambientes comunitários estão mudando com o tempo; a intenção inicial, de jovens e velhos ocupando os mesmos lugares, se transformou no que a psicóloga Isabella Alvim chama de “terceiro ponto”, em que o fazer algo juntos se torna o objetivo maior nas relações a céu aberto. Martinez faz um contraponto: “O crescimento do capitalismo e a mercantilização do estilo de vida é um grande desafio. Há muita atenção voltada à produtividade, e não tanta às conexões humanas”.
NOVOS PARADIGMAS
Em certa medida, a desumanização da qual fala o estudioso espanhol causou também o afastamento do idoso da sociedade e, consequentemente, isolou a categoria em um “não-lugar”, como define Isabella Alvim. “Com os estereótipos e as representações negativas, o velho perdeu o posto de detentor do conhecimento para o jovem”, diz ela. Este panorama, no entanto, por mais verdadeiro que seja, está se transformando pouco a pouco. Ela completa: “Apesar de às vezes não ter conhecimento do mundo tecnológico, moderno, na velhice é possível enxergar o mundo com serenidade, sem idealizações”.
Aos poucos, o idoso começa a se apropriar de uma condição própria, com estatutos específicos e iniciativas de convivência organizadas por instituições de diferentes naturezas, seja nas ações realizadas pelo Sesc, para citar uma delas, ou em espaços mantidos pelo poder público.
Na Universidade de São Paulo (USP), o programa Universidade Aberta à Terceira Idade oferece oportunidades a cidadãos com mais de 60 anos que queiram participar de aulas da instituição. O objetivo do programa é “possibilitar ao idoso aprofundar conhecimentos em alguma área de seu interesse, e ao mesmo tempo trocar informações e experiências com os jovens”, segundo a entidade. Além disso, é permitido ao idoso participar de atividades complementares, tais como palestras e excursões, por exemplo. Estendido a outras unidades da universidade (em Bauru, São Carlos, Ribeirão Preto e demais), o programa abre inscrições duas vezes ao ano para cursos cujo número máximo de vagas não tenha sido atingido.
“O velho, hoje, está sendo mais ajudado. Existem empresas, muitas no campo da engenharia, contratando funcionários mais idosos, que têm uma experiência fundamental a essas organizações”, pondera Isabella Alvim. A inserção, contudo, também deve surgir de dentro para fora, defende a especialista. “Cada um envelhece de uma forma, depende das relações criadas, tudo acaba sendo consequência do que aconteceu ao longo da sua vida”, ela diz.
A visibilidade sobre o tema é crescente e já faz parte da agenda política. “Apesar de não ser um campo tão sólido, ele existe, e tem sido estudado, pesquisado; há expertise para desenvolver isso ainda mais. Hoje em dia, diversas organizações vêm fazendo o possível para estabelecer contato e trocar ideias com outros países, ter ligação”, explica Mariano Sánchez Martinez.
Os rumos ainda são muito incertos, mas, se depender de estudiosos como a pedagoga Vera Brandão, as previsões são as melhores. “Antes de qualquer coisa, temos esperança de propiciar uma vida melhor, porque assim vamos envelhecer bem e as famílias conseguirão compreender essas relações. As pessoas até comentam que não vamos ver isso totalmente construído, mas apesar de não usufruir, deixamos a semente”, diz. Para Mariano Sanches, a dedicação tem um propósito claro: “O mais importante é perceber a chance de lutar contra a discriminação por meio de ações e projetos do gênero. Há visibilidade e recursos para isso”.
A INTERNET TAMBÉM É PALCO DE RELAÇÕES INTERGERACIONAIS
Não se restringe mais às ruas ou às famílias o convívio entre gerações distintas. Com o aparecimento das relações intermediadas pelo espaço virtual, e sobretudo com o aumento exponencial de cidadãos que têm acesso a ferramentas variadas na Internet, jovens e idosos começam a experimentar aos poucos outras formas de interação.
Diferentemente do que o senso comum costuma imaginar, as tecnologias não são mais uso exclusivo dos mais jovens. Integradas ao mundo cibernético por meio de cursos de aprendizado, ou mesmo pelo conhecimento transmitido por quem tem mais afinidade com a era digital, pessoas de idade mais avançada hoje são parte desta nova realidade e a vivenciam diariamente – em grupos de e-mails, nas compras online, para fazer pesquisas e participando de debates das redes sociais.
É exatamente esse o caso de Rachel de Lima Freitas, de 70 anos. Aposentada por tempo de serviço, “optei por não continuar a trabalhar e ter tempo disponível para poder curtir meus netos e minha família”, diz, ela acessa a rede todos os dias, geralmente à tarde ou à noite.
Para Rachel, a diferença na forma como gerações distintas usam a Internet está na criação: “Os jovens expõem sua opinião abertamente e discutem sem receio o seu ponto de vista. Já os mais velhos, oriundos de uma geração com educação rígida, muitas vezes se limitam a mostrar seu pensamento e dosam suas críticas.”
Além disso, a psicóloga do Olhe (Observatório da Longevidade) Isabella Alvim cita outro fator que, embora também se adapte à realidade dos jovens, pode ser aplicado aos mais velhos. “No mundo virtual, o idoso fica protegido dos estereótipos. Ele pode não ter idade, credo, cor, e transita de uma forma que não conseguiria na realidade, pois existe a experimentação de papéis”, explica. Por conta disso, um indivíduo que não quiser correr o risco de ser julgado pela idade pode expor suas opiniões – em chats e grupos de discussão, por exemplo – sem pré-julgamentos. “É preciso validar as experiências na Internet, porque elas propiciam aprendizados, emoções, sentimentos”, completa a especialista.
Vera Brandão acredita no mundo virtual como um grande facilitador da mobilidade de indivíduos com idade avançada. Sobretudo em grandes cidades, onde transporte e serviços costumam ser caóticos e nem sempre tão eficientes, dispositivos online – compras, bancos, comunicação – são grandes aliados. Por e-mail, Rachel Freitas resume: “A Internet facilita a vida de cada um de nós. A notícia chega em tempo real, não importando a distância que estamos daquela pessoa tão querida. Vale a pena estar aqui e viver este momento”.