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O impacto e as contribuições da obra de Clarice
Quando Clarice publicou o seu primeiro conto na imprensa carioca, em 1940, creio que não poderia imaginar que, dali a algumas décadas, sua obra escrita ao longo dos 37 anos seguintes teria tamanha repercussão no Brasil e no exterior.
É bem verdade que o romance de estreia, publicado em final de 1943, Perto do coração selvagem, foi lido e aprovado por críticos argutos e rigorosos, como, para citar apenas um exemplo, Antonio Candido, em meados de 1944. Portanto, os primeiros críticos garantiram um lugar de destaque à romancista novata, então com seus 23 anos, que afirmou ter ficado surpresa diante deste seu primeiro sucesso.
Daí para diante houve uma crescente recepção de sua obra, com alguns lamentáveis intervalos, promovidos, em parte, por algumas editoras que nem sempre aceitaram publicar seus textos... E com muitos ganhos, como sua colaboração na revista Senhor, que levou suas crônicas e contos a um público brasileiro mais amplo. E com a tradução de sua obra, que começou ainda nos anos 1950, na França e nos Estados Unidos, marcos de um longo e corajoso trabalho que haveria de se estender para outros tantos países.
A divulgação progressiva da obra durante as décadas subsequentes foi tamanha que, atualmente, conta com tradução em cerca de mais de 20 línguas e 30 países. Há textos publicados, por exemplo, em japonês e croata, em coreano e holandês, em finlandês e hebraico. E, ainda este ano, terá edições em romeno, justamente no país em que a família Lispector, de judeus russos ucranianos, conseguiu passaporte para prosseguir sua viagem em direção ao Brasil.
A que atribuir tamanho sucesso? A resposta pode ser simples: o sucesso deve-se à qualidade da sua literatura, cujo nível excepcional a situa entre os nossos melhores escritores. Com uma característica singular: Clarice escreve textos de vários gêneros - crônicas, contos, romances, páginas femininas, literatura infantil, cartas, entrevistas, adaptações -, dirigidos a leitores de diferentes idades. Capta com sutileza situações peculiares à realidade brasileira, como a migração nordestina para a cidade do Rio de Janeiro.
E os textos têm marcas comuns: a narradora mostra-se muito atenta aos detalhes do que acontece na intimidade dos seres, nas suas profundezas, e, muitas vezes, ao criar essa experiência interior, confere ao leitor a ilusão de que estaria tudo acontecendo no instante mesmo em que está sendo escrito, ou lido.
Além disso, as pessoas, ainda que morando em diferentes lugares e falando diferentes línguas, ou seja, apesar da diversidade cultural, têm lá seus denominadores comuns, que advêm da sua condição humana, tão bem retratada pela nossa escritora, com suas sensações, emoções, dores, surpresas, decepções, encantamentos...
Talvez seja esse o motivo de sua obra ser traduzida para muitas línguas. E ser adaptada para diversas outras linguagens - a do cinema, teatro, TV, música. No Brasil, a primeira adaptação para o teatro data de 1965, com o pioneiro espetáculo Perto do coração selvagem, baseado em romances e contos de Clarice, dirigido por Fauzi Arap, com José Wilker no elenco. No cinema, relembro o premiado longa-metragem A hora da estrela, de 1985, dirigido por Suzana Amaral, com atuação de Marcela Cartaxo, José Dumont e Fernanda Montenegro. Mais recentemente, a cineasta Nicole Algranti, aliás, sobrinha-neta de Clarice, filmou entrevistas que Clarice fez com várias personalidades, na maioria artistas, para revistas cariocas, incluindo no elenco atores e atrizes de renome.
Nos dias de hoje, um novo veículo de divulgação, a internet, encontra-se disponível para tornar ainda mais conhecida a obra de Clarice, além das edições, traduções, adaptações e críticas de sua obra. Pena que as redes e os sites, pretendendo divulgar Clarice, nem sempre divulguem Clarice, ao compartilharem textos que nunca foram por ela escritos.
Portanto, o melhor mesmo é ir até a própria obra de Clarice, até os seus livros. Talvez passando por certas antologias que têm sido recentemente publicadas, sim, mas apenas como um passo num caminho bem mais longo e também mais completo, o da leitura dos textos tais como ela os organizou em vida, além, naturalmente, de alguns textos póstumos.
Afinal, os textos publicados em vida têm a garantia da autenticidade da autoria também na sua organização: na sequência dos capítulos, se for romance; na seleção e sequência dos contos em volumes. Aí teremos a autora Clarice mais presente em cada livro seu, e é sempre essa escritora Clarice, o mais presente possível na elaboração de cada livro seu, que também e sobretudo nos interessa.
Nádia Batella Gotlib é professora e pesquisadora de literatura brasileira, com ênfase na obra da escritora Clarice Lispector.