Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Vocação para mudar o mundo

Toni Venturi é cineasta e produtor. Formado em Cinema pela Ryerson University, de Toronto (Canadá), é diretor dos longas-metragens de ficção Estamos Juntos (2011) e Cabra Cega (2004) e dos documentários Rita Cadillac: A Lady do Povo (2007) e O Velho – A História de Luiz Carlos Prestes (1997). Dentre seus trabalhos recentes está Vocacional – Uma Aventura Humana, documentário sobre a experiência dos Ginásios Vocacionais de educação pública, nos anos 1960, que o SescTV exibe neste mês.

Abaixo a entrevista para a Revista SescTV

 

Como surgiu a ideia de realizar um documentário sobre os Ginásios Vocacionais?

Comecei este projeto sem a intenção de fazer um filme. Fui aluno do Vocacional Oswaldo Aranha (no bairro do Brooklin, em São Paulo), entre 1967 e 1970. Em 2006, fundamos uma associação de ex-alunos e passamos a organizar encontros. Nas conversas com os ex-colegas, percebemos que a grande maioria das pessoas está realizada e bem sucedida e notamos o quanto essa etapa no Vocacional foi importante em nossas vidas. Como eram encontros ricos em histórias e lembranças, tive a ideia de registrar os depoimentos. Queria fazer um arquivo de memória. Certo dia, alguém chega com a informação de que nos arquivos da Escola de Comunicações e Artes da USP havia um filme sobre o Vocacional. Ele tinha sido feito para um trabalho de conclusão de curso e mostrava registros do Vocacional, em 1968. A fotografia era assinada por ninguém menos que Jorge Bodanzky! Quando eu me vi neste filme fiquei emocionado. Diante desta joia histórica e dos depoimentos que eu tinha em mãos, decidi fazer o documentário.

 

Quais foram os desafios e dificuldades para concretizar o projeto?

Como em todo trabalho de resgate de memória, comecei a vasculhar arquivos. Fomos até a PUC-SP, que mantém todo o material pedagógico e fotográfico sobre o Vocacional. Com os encontros dos ex-alunos, comecei a receber arquivos pessoais. Mas a maior dificuldade foi no processo de montagem. Meu desafio foi enxugar o excesso de emoção e efetiva adjetivação, para dar um tom mais equilibrado ao filme. Era difícil, porque os depoimentos eram muito carregados de emoção e eu não queria que o filme parecesse uma propaganda. Depois, tomei a decisão de estrear o documentário na televisão em vez do cinema, porque a TV chega a uma população mais ampla e esse filme tem uma função social e, por isso, precisa chegar a um número grande de pessoas.

 

No filme, você faz a escolha de uma linguagem mais pessoal e faz uma abordagem em primeira pessoa. Por que?

Porque eu me emocionei muito quando encontrei o material da ECA e quando vi um pouco da minha história lá. Não queria contar essa história de uma forma fria, eu queria me colocar de forma subjetiva e mais calorosa. Mas com o cuidado de não cair no sentimentalismo. Estava sempre preocupado em não aparecer demais. Por isso a montagem demorou tanto.

 

Como ex-aluno do Vocacional, que contribuições essa experiência teve em suas escolhas pessoais e profissionais?

Do ponto de vista pedagógico, o Vocacional trazia uma proposta inovadora, que deixou enormes contribuições, como a introdução dos estudos de meio, os trabalhos comunitários, a ideia da escola em tempo integral. Pena que isso foi absorvido pela educação brasileira de forma tão pulverizada! Do ponto de vista pessoal, eu vivia ali num mundo bastante protegido. Até conto isso no filme: depois que saí de lá, virei um aluno-problema, quase fui expulso do colégio. Tentava me encontrar no mundo, havia a repressão, o movimento hippie. Ficava procurando meu espaço. Tentei estudar Psicologia, História, até me decidir pelo Cinema. Fui morar no Canadá, onde me formei e voltei, aos 29 anos, para começar minha carreira. Acho que essa escolha vem muito dessa experiência libertária.

 

O projeto dos Ginásios Vocacionais foi encerrado durante o regime militar. Na sua opinião, era um modelo, de fato, ameaçador para um governo totalitário?

De fato, não. Era um nicho pequeno de bebês! Mas a educação libertária, sim. Seria subversivo para qualquer regime totalitário, fosse de direita ou de esquerda, porque constrói cidadãos com visão crítica. O que fizeram no Vocacional foi uma excrescência. Era uma semente de uma árvore que poderia virar uma samaúma. Então, eles resolvem trocar essa experiência de educação generalista por um modelo importado norte-americano de educação especialista. Ou seja, era o oposto. Mas o Vocacional não era uma ameaça. Era só uma escola.

 

De que forma a experiência do Vocacional pode contribuir para um debate sobre a melhoria da educação pública brasileira?

A contribuição para este imenso contingente de educadores e políticos é a ideia de que é possível ter uma educação pública brasileira de qualidade. Mas não sou saudosista, não acho que devemos recriar o Vocacional. Foi a experiência de uma época. Acho, sim, que devemos beber da fonte e criar algo novo. Esse filme dá a possibilidade de sonhar que isso é possível. Passei dez anos no Canadá, onde 70% das escolas são públicas – e são melhores que as privadas. É possível! É só pagar um bom salário para o professor. Tem de haver um plano de carreira para que as pessoas queiram seguir esta profissão.

 

Você acredita que o Vocacional deixou heranças na educação brasileira?

Deixou, mas de forma pulverizada. Temos de acordar para a necessidade de uma boa educação. Mas acho que o pior já passou, acredito que nos últimos dez anos demos um salto, trabalhando a inclusão social, permitindo o acesso da população mais carente à universidade. O filho do mestre de obras, morador da periferia, está chegando à faculdade. Isso muda a realidade de todos ao seu redor. Mas é uma mudança lenta e só pela educação ela será efetiva, com acesso à cultura, às artes, tornando a sociedade mais equilibrada.

 

Como você avalia o mercado cinematográfico brasileiro atual, em especial para os documentários?

Vivemos um momento pujante, muito forte para o documentário. Há um florescimento da produção brasileira, com cada vez mais conteúdo para as TVs pagas. Também é um momento histórico de convergência de mídias, da transição do analógico para o digital. Antes, o acesso aos equipamentos era difícil, filmar era inacessível. Hoje, qualquer menino tem acesso. E o documentário é um olhar sobre a realidade. Mas, como um ex-aluno do Vocacional, procurando enxergar o outro lado, também vejo uma enorme banalização da imagem. As pessoas acham que fazer um filme é só registrar algo pontual. E não é bem assim. Cinema é linguagem, é narrativa. As pessoas deveriam se preocupar mais com o foco. Está faltando isso.