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Realidade inquieta

Realidade inquieta

O trabalho do cineasta mineiro João Batista de Andrade é marcado pelo debate político. Desde que chegou a São Paulo, em 1960, esteve ligado a movimentos estudantis, políticos e culturais, que conciliava com a faculdade de Engenharia da Universidade de São Paulo – curso que acabou deixando por amor ao cinema. Apesar de ter iniciado a carreira em meio ao turbilhão da ditadura militar, sua obra tornou-se muito conhecida e premiada, com filmes como Gamal (diretor revelação no prêmio Air France, 1969), Doramundo (melhor filme e melhor diretor no Festival de Gramado de 1978) e Vlado: Trinta Anos Depois (melhor roteiro no II Prêmio Fiesp/Sesi-SP de Cinema Paulista, 2006). Em encontro realizado pelo Conselho Editorial da Revista E, o convidado desta edição falou sobre o choque que sofreu ao chegar a São Paulo, relembrou a participação nos diversos movimentos durante a ditadura e relatou momentos de desespero. “Eu era muito jovem e desconhecido – minha família não tinha nome nem nada – e tive que buscar o meu espaço na cidade de São Paulo como qualquer migrante”, afirma. “Era uma perdição, a vida era um horror. Quantos amigos eu perdi porque se degradaram, perdi porque muitos foram embora [exílio] e também porque outros foram para a luta armada e morreram.” A seguir, trechos.

Estudante
Em 1960, eu vim do interior de Minas [Ituiutaba] para São Paulo fazer Engenharia na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Aqueles anos até 1964 eram de grande agitação política no Brasil. Eu tinha pouquíssima informação e, quando cheguei, vi esse cenário e fiquei desesperado. Tomei um banho de cultura: ia ler livros nos sebos porque não tinha dinheiro para comprar, ouvia músicas em apartamentos de colegas meus, foi impressionante. Comecei a participar politicamente. Fui dirigente político na juventude, era militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) – o “Partidão” – até 1964. Além disso, criamos um grupo de cinema na Politécnica no final de 1962 [o Grupo Kuatro de Cinema], tínhamos o Jornal Literário, na Casa do Estudante [espaço cultural da Escola Politécnica na USP], e fazíamos também o jornal O Politécnico, que era um jornal muito politizado, conhecido como Jornal Vermelho – inclusive os colocamos em bancas de jornal. Tinha a revista de cinema [chamada Cadernos da Poli]. Eu não sei como sobrava tempo para estudar, mas eu era bom aluno! Parece que, quanto mais ocupamos nosso tempo, mais coisas conseguimos fazer. Eu digo tudo isso porque eu era muito jovem e desconhecido – minha família não tinha nome nem nada – e tive que buscar o meu espaço na cidade de São Paulo como qualquer migrante.
Isso marcou muito não só a minha carreira como a minha vida pessoal. Sempre digo que quem não viveu no Brasil entre 1960 e 1964 não sabe o que é o Brasil. Eu era um garoto do interior, desconhecido, sem nada. Fui diretor da União Nacional dos Estudantes (UNE) e também representava os estudantes brasileiros num grupo chamado Comando de Mobilização Popular. Havia também os líderes sindicais nos grupos. Nessa época, fui para manifestações, comícios, assembleias de sindicatos, de operários. Tudo isso ligado à literatura, ao cinema, à cultura de forma geral. Então, o golpe de 1964 foi muito duro. O nosso grupo de cinema estava filmando algumas coisas, nós não conseguimos terminar. O material de um deles, que era sobre os catadores de lixo de São Paulo, foi apreendido na sede da UNE. Enfim, 64 acabou com o grupo.

Cinema de intervenção
Não gosto da realidade, então não queria filmá-la do jeito que estava. Tenho um viés muito político, crítico. Acabei gravando Liberdade de Imprensa (1967) com a ideia de que a minha presença nele modificava a realidade. A câmera ajuda a modificar a realidade. Você está filmando o resultado da sua participação na realidade. O que você está filmando já não existe: era a realidade como fetiche. Então decidi aprender a usar isso. Levei uma série de livros sobre a questão da liberdade de imprensa para a rua e os distribuí. A ideia era que as pessoas lessem as obras, com as páginas marcadas – e filmei tudo isso. Inclusive quebrei tabu, porque eu apareço, aparece câmera, aparece todo mundo. Nunca me incomodei com gente olhando para a câmera. Filmava as pessoas lendo e depois perguntava sobre o que haviam acabado de ler. Então, elas começavam a me dizer o que achavam a partir da leitura. Que realidade era aquela que só eu poderia filmar? Por estranho que pareça, naquele momento, aquilo era uma realidade. Agora, manda outro cineasta para lá para ver se tem aquilo para filmar? Não tem. Essa é a radicalização daquela ideia de que o que você filma é o resultado da sua presença na realidade, é uma coisa que você incorpora. Eu não pensava nisso, mas é uma coisa quântica. O pesquisador interfere na pesquisa, mas os documentaristas não aceitavam! Inclusive isso foi objeto de crítica na época.

O ano de 1968
Passei um período muito ruim pessoalmente. Depois de muitos problemas [três filmes que não deram certo por complicações decorrentes do governo militar e o incômodo constante com a questão política], entrei numa fase de desespero muito grande, muito ligada ao agravamento da repressão no Brasil em 1968. Além disso, passei por um momento de degradação pessoal mesmo, das pessoas que conviviam comigo, e esse desespero levava as pessoas a várias coisas. Ou para a luta armada, de que eu não gostava, achava errado; ou para a droga. Era uma perdição, a vida era um horror. Quantos amigos eu perdi porque se degradaram, perdi porque muitos foram embora [exílio] e também porque outros foram para a luta armada e morreram. Entrei numa fase que para mim é um enigma até hoje. A chave do meu trabalho é essa inquietação com relação à realidade. O viés político está sempre presente. Naquele momento eu entrei num “parafuso”. Acabei fazendo dois filmes: um longa-metragem que se chama Gamal (1969) e um outro que se chama Em Cada Coração um Punhal (1969). Não é que eu não goste desses filmes, inclusive ganhei o prêmio Air France de diretor revelação com Gamal, que me deu uma viagem para a Europa, muito importante para mim. Mas os filmes eram uma perda. Essa perda de tentar se exercitar em meio ao incômodo em relação à realidade, sem perder a racionalidade. Deixar o sangue ferver e tentar ficar equacionando o tempo inteiro, tentar passar uma coisa para a sociedade que teve uma visão crítica das coisas, sem perder esse calor. Era um exercício forte. O meu discurso é todo assim e naquele momento eu perdi isso. Então por mais que as pessoas falem bem dos filmes, para mim é um lado bastante pesado.

“A chave do meu trabalho é essa inquietação com relação à realidade. O viés político está sempre presente.”

O diretor e produtor de cinema ¿João Batista de Andrade ¿esteve presente na reunião do ¿Conselho Editorial da Revista E ¿em 18 de setembro de 2013