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‘Precisamos nos valorizar’

ANTONIO NÓBREGA é músico, compositor e dançarino. Estudou violino na Escola de Belas Artes de Recife e tocou na Orquestra Sinfônica de sua cidade, mas aos 18 anos de idade viveu uma reviravolta em sua trajetória, quando recebeu o convite de Ariano Suassuna para integrar o Quinteto Armorial, grupo de pesquisas musicais que misturava referências da cultura popular brasileira e da música erudita. A partir de então, Antonio Nóbrega faz uma imersão pelas raízes culturais brasileiras, rearranjando e reinterpretando essas referências em espetáculos de música e dança. Após apresentar a aula-espetáculo Naturalmente: Teoria e Jogo de uma Dança Brasileira, publicada em dvd pelo Selo Sesc, ele se prepara para realizar um documentário de longa-metragem sobre sua carreira e o trabalho do Instituto Brincante, que ele criou.

Quando desperta seu interesse pela música?

Quem descobriu essa vocação foi meu pai. Quando eu era criança, tinha o hábito de ficar batucando na mesa, na hora das refeições. Ele pensou que eu levava jeito, acho que tinha razão (risos). Meu pai decidiu me pôr para estudar violino. Eu tinha uns dez anos de idade. Estudei na Escola de Belas Artes, que naquele período vivia um bom momento, com professores chegados da Europa, dentre os quais o espanhol Luís Soler. Mas nesse processo acabei abrindo mão de muitas atividades próprias dos meninos daquela idade, como jogar bola, porque às vezes eu me quebrava e isso poderia prejudicar os estudos.

O senhor tocou em orquestra e poderia ter seguido carreira na música erudita, mas envereda para a cultura popular. Como se deu essa mudança?

Eu estudava violino, e ao mesmo tempo fazia o colegial, e depois o pré-universitário. Queria ser diplomata. Por isso, cursei um pouquinho de Direito. Como gostava muito de ler, acabei estudando Literatura também. Além do estudo da música. Juntei um pouquinho de cada curso. O responsável por essa mudança foi Ariano Suassuna. Eu tocava na Orquestra de Recife, tinha uns 18 anos de idade. Um dia, ele me viu num concerto e me convidou para integrar o Quinteto Armorial, um grupo que ele estava montando para estudar a cultura brasileira.

Hesitou em aceitar o convite?

Aceitei na hora, mesmo não sabendo nem o que era uma rabeca (risos). Esse convite me abriu para o acesso à cultura popular. Eu não conhecia o maracatu. Naquela época, a cultura popular era ainda mais afastada do que é hoje. Era um mundo à parte. Fiquei muito encantado e seduzido pelo que descobri. Comecei a estudar essas manifestações, num primeiro momento não de modo intelectual, mas para entender melhor a musicalidade presente no toque do tambor, no jeito de cantar, nos passos de dança. E tudo isso através da festa, do universo lúdico. Desde a década de 1970, venho vivendo as diferentes etapas de estudos sobre esse tema.

Em que grau sua passagem pelo Quinteto Armorial mudaria sua trajetória profissional?

O Quinteto é a pedra angular de tudo o que passei a fazer depois. Entre os anos de 1970 e 1980 tive meu período mais rico de convivência com a cultura popular. Além do mais, tive a oportunidade de estar num grupo que reinterpretava tudo isso e com a orientação de Ariano Suassuna. Os ensaios eram realizados na casa dele, eram um misto de sarau, estudo e festa. Minha formação teve influência masculina nas figuras de meu avô, que era escritor e tinha uma biblioteca, de meu pai, que me incentivou a estudar música, e do Ariano.

Em que momento da carreira o senhor passa a dedicar-se também à dança?

A dança entra de enxerida, sem ninguém chamar (risos). Nessas incursões pelo universo popular, tive contato com muitos dançarinos. Exemplo: o Mateus, que é o palhaço do bumba-meu-boi. No teatro popular, diferentemente do teatro europeu, a palavra não tem tanta primazia, e há um imaginário corporal muito forte. A dança está presente no frevo, no pífano, na capoeira. Fui procurando assimilar esse vocabulário e, além da música, incorporar esse outro universo específico dos movimentos.

Em sua opinião, de que modo a mídia e a TV abordam a cultura brasileira?

A gente nunca entendeu a cultura do povo como um bem cultural cuja representatividade dá a ele o lugar que ele merece. Se a gente observa o que é considerado arte brasileira, ou seja, o samba, o baião, o choro e até a arte erudita, percebe que, sem a contribuição da cultura popular, nada disso existiria. A questão é que essa arte brasileira foi construída de maneira perversa, pelo modo como os negros chegaram ao Brasil, pela forma como os índios foram quase dizimados e pela razão da vinda dos imigrantes para cá. Mas dessa mistura nasce a riqueza de ter tanto a tradição da cultura europeia, com suas referências da arte erudita, quanto a da cultura dos negros e a dos índios. A mídia, tal como a vejo, acompanha o que a ordem vigente hegemônica determina. Está ligada ao poder da indústria cultural. Não existe, por exemplo, um veículo que coloque dentro dessa proporcionalidade de programas, toda a gama da cultura brasileira. Hoje você não ouve Pixinguinha no rádio. Nem Chico Buarque nem Chico César. E muito menos Antonio Nóbrega.

Como a TV poderia contribuir para ampliar a divulgação da cultura brasileira?

Deveria ser prioridade divulgar a cultura do Brasil. Para nos valorizar. Temos o que mostrar, por sermos jovens, por nossa riqueza cultural e de imaginação. A Europa vem de construções maravilhosas, de enorme contribuição para a humanidade, mas vai haver um momento em que ela vai se exaurir, enquanto nós estamos em processo de expansão. Mas não nos entendemos e não nos valorizamos. Nossa visão é incompreensiva desse estrato cultural. Aquilo que nos caracteriza enquanto identidade, como o tal jeitinho brasileiro, que é nossa generosidade, nosso envolvimento com os outros e predisposição para resolver as coisas, quando em exagero torna-se algo dispensável.

Como surge a ideia do espetáculo Naturalmente...?

Ao criá-lo, o senhor cita que ficou na dúvida se ele daria certo, no conceito de aula-espetáculo. Como o senhor avalia hoje o resultado do projeto? O espetáculo deu certo. Nas últimas apresentações, até mencionava isso para a plateia. E avalio esse resultado por alguns aspectos. Primeiro, porque hoje temos uma visão muito aberta sobre o que é espetáculo. Qualquer proposta pode ser chamada de espetáculo. A ideia de inserir falas entre as coreografias tinha de ser para dizer algo interessante, para fazer sentido para quem está lá sentado. A plateia mostrou-se muito interessada e atribuo isso ao desconhecimento que temos sobre a dança brasileira. Nesse sentido, esse projeto se mostra muito original e foi para mim uma surpresa ter recebido, com ele, prêmios que nunca tinha conseguido antes. Naturalmente... é surpreendente, porque rompe com a dicotomia erudito versus popular... O ocidente nos deu uma visão dicotômica: o erudito versus o popular. No caso da arte, esse conceito não pode reproduzir isso, porque a gente cria obras que não saberia dizer se pertencem a um ou a outro. Um exemplo é o choro de Pixinguinha, que guarda elementos dessas duas frentes, com toda a sua complexidade. Essa classificação é muito ocidental. A mídia sempre me colocou como um artista popular. Eu não sou um artista popular. Nem por minha origem social nem por minha formação musical. Sou um artista que se identifica com ambas e que procura criar uma simbiose, porque me acordei para isso. Nutri isso em mim. O que trago é o encontro entre duas linhas do tempo cultural: a da festa e a do rigor da forma e da clareza dos movimentos. Eu consegui criar um dinamismo entre essas duas heranças.

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