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‘Faço televisão com prazer’
Aos 82 anos de idade, Fernanda Montenegro ostenta fôlego de iniciante. Versátil, ela cumpre com desenvoltura os mais diversos papéis, seja no teatro, no cinema ou na televisão. A síntese – revela a atriz – está no teatro, alicerce de sua formação. “Quando faço televisão, faço teatro; quando faço cinema, faço teatro; quando faço teatro, faço teatro”, diz. Seu mais recente trabalho é o monólogo Viver Sem Tempos Mortos, em que revisita textos da filósofa francesa Simone de Beauvoir, um ícone do feminismo. A peça, que já foi apresentada ao público em 2009 e agora é retomada, ficará em cartaz até o final deste mês no Teatro Raul Cortez, da Fecomércio, em São Paulo.
A senhora pertence a uma geração de atores que transitavam com naturalidade pelo teatro, cinema e televisão. De que forma esse ecletismo se reflete no seu modo de atuar?
O irradiador disso tudo é o teatro. Acredito nisso. Não sei como é com os outros, mas eu, quando faço televisão, faço teatro; quando faço cinema, faço teatro; quando faço teatro, faço teatro; quando faço rádio, faço teatro. Porque é o meu espaço, foi onde eu ganhei corpo, foi onde eu amadureci. Então, meu referencial é o palco. Mas, na verdade, isso pode ser expressado através de outros meios de comunicação. Por que não no meio de comunicação industrializado? Do meu trabalho, o teatro é a fonte e o alicerce.
A senhora trabalhou ao lado dos grandes nomes do teatro do País, tais como Flávio Rangel, Fernando Torres, Sérgio Britto, Gianfrancesco Guarnieri e Paulo Autran. Em que esse contato repercutiu em sua formação?
... Raul Cortez, Renato Consorte... é muita gente. Eu acho que através dos tempos, com cada grupo com que você trabalha, você aprende alguma coisa e amadurece as visões que você possa ter dentro de si. O teatro é, por excelência, um meio de comunicação, mesmo; quer dizer, ou é a comunicação entre o elenco e a plateia, que portanto está ali para você se comunicar com ela, ou até mesmo quando você está sozinho diante de uma plateia, você está ali, latente, se comunicando com a plateia. E cada pessoa com quem você se envolve traz uma respiração, traz uma personalidade: uns são mais agressivos, outros são mais quietos; uns são mais proponentes, vamos dizer, outros são mais modestos; um dá um olhar de um jeito, outro dá a réplica de outro jeito. É muito interessante, quando se faz uma leitura em que todos leem o mesmo papel, ver que cada um descobre um lado desse texto. Portanto, você aprende não só com o material de seu trabalho, mas também com a comunicação humana, com a experiência de querer estar ali e se comunicar com o outro.
Como a senhora avalia as novas gerações de atores brasileiros?
A televisão hoje em dia reúne elencos de todas as idades. Em toda novela tem da criança até o velho. No teatro tradicional, isso era muito comum antigamente, mas hoje não é mais. As grandes companhias na verdade estão hoje na televisão. Eu fico muito feliz de ver que as gerações vão se sucedendo; e quando há baixas na minha geração, há dez vezes mais gente chegando do que gente indo. Nem todos têm o mesmo talento, mas, na medida em que essas pessoas tenham real vocação, esse talento virá com o tempo. O próprio querer e não poder viver sem aquilo vai fazer com que se crie uma vontade que, com anos de experiência, vira qualidade e talento.
A senhora ganhou reconhecimento mundial por sua atuação no filme Central do Brasil, pelo qual recebeu uma indicação ao Oscar. Esse filme representa, de alguma forma, um marco na sua carreira?
Sim, foi um filme que atravessou fronteiras: onde ele foi, ele aconteceu. E aconteceu com prêmios para direção, para produção, para atriz, enfim. Um filme que chegou a ser indicado para o Oscar, que ganhou o Globo de Ouro, teve a atriz também indicada para esses dois prêmios e para um terceiro, o da Associação de Críticos dos Estados Unidos, que reúne votos de todos os críticos daquele país. E eu obtive esse prêmio, recebido em Nova Iorque, o que me tocou pelo próprio filme, pela qualidade da direção do Walter Salles, pelo peso que ele teve no mundo. É um marco na minha vida, sim.
A mídia e a classe artística lhe atribuem o título de dama do teatro brasileiro. O que significa receber um reconhecimento desse porte?
O teatro brasileiro tem muitas damas, e digo isso sem nenhuma ironia. Aliás, o teatro brasileiro é feito de grandes damas, jovens, idosas. É uma tradição no Brasil o mundo das atrizes ser um mundo rico de talentos. Então, não é a primeira, nem segunda, nem décima... eu faço parte – e fico muito feliz com isso – desse conjunto de atrizes extraordinárias, e tenho como exemplo, a quem tiro meu chapéu, a Bibi Ferreira. Ela é a grande figura do teatro brasileiro.
A senhora participou da série Hoje é Dia de Maria, da TV Globo, considerada uma produção de qualidade, e tida como uma exceção na TV aberta brasileira. Na sua opinião, há espaço e interesse das TVs brasileiras em produções de caráter artístico?
Eu acho que especificamente a TV Globo tem feito, através dos tempos, minisséries antológicas. Desde Morte e Vida Severina, Agosto, A Muralha, Hoje é Dia de Maria, Auto da Compadecida. É uma produção de honrar qualquer televisão do mundo. Então, acho que há interesse, sim. Agora, há também uma necessidade de alimentar o imaginário através desses folhetins que são as novelas. Fazem um sucesso louco e mesmo quando não dão certo são vistas por milhões e milhões de pessoas. Lógico: uma novela é melhor, outra é pior. Uma é espetacular, outra já é bem incompleta. Mas eu juro a você que há sempre um esforço de se fazer o melhor. Eu sei, porque estou dentro desse processo. Quando numa situação qualquer a inspiração não veio, certas coisas não se juntaram bem, há um fenômeno qualquer de saúde, sei lá, aí às vezes a coisa não se cumpre. Mas também há novelas antológicas, extraordinariamente bem feitas. Então, acho que é um grande mercado de trabalho, é um processo que já faz parte da cultura do Brasil; e eu sempre fiz televisão com muito prazer.
A senhora acredita que a TV é potencialmente um laboratório para experimentação de linguagem?
Acho que a televisão já conseguiu bastante independência no seu fazer, no campo da linguagem. Porque não é cinema, ela tem uma estrutura própria. E acho que dia a dia essa linguagem está sendo apurada.
Na sua opinião, os avanços tecnológicos e as novas plataformas audiovisuais, como a Internet, provocarão mudanças na dramaturgia e no tre no trabalho do ator?
Não sei dizer. Mas acho que é um campo, um processo que vai se desenvolver e a gente não tem noção de onde vai parar. E que força que isso já tem hoje em dia! Talvez essa tecnologia, que dia a dia se apresenta com uma novidade mais embasbacante do que a outra, mude todo um processo de comunicação humana. Como tem sido a experiência de encenar Viver Sem Tempos Mortos, com texto autobiográfico de Simone de Beauvoir, considerada uma das pensadoras mais influentes do século 20? Um prazer. Eu quis fazê-lo, pude fazê-lo, acreditei nele e me parece que deu certo, pelo menos até aqui, até agora. Estou novamente em temporada em São Paulo, já estive aqui em 2009, quando foi muito bem, fico até o fim de novembro. É prazeroso, mas exige muita atenção, e, embora eu esteja sentada numa cadeira, é muito desgaste físico e mental. É um texto que vai do possível para o irremissível.
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