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América Latina: Música e Identidade

EDWIN PITRE-VÁSQUEZ

Em 1995, iniciei estudos sobre Música e Identidade na América Latina, no mestrado da Universidade de São Paulo. Na época havia uma voz recorrente que afirmava: “a música brasileira e cubana são muito parecidas...”. Essa voz, que vinha de músicos, pesquisadores, dançarinos, produtores musicais e público em geral, acabou configurando uma pergunta: será que a música brasileira e a cubana se parecem? A pesquisa realizada objetivava encontrar as semelhanças e diferenças, levantar a bibliografia existente, em um estudo comparativo.

O desafio foi enorme, por envolver aspectos sobre música e identidade na América Latina. Este artigo traz as reflexões levantadas na época complementas por análises posteriores. O autor Otávio Ianni argumenta que a América Latina continua a viajar em busca da ocidentalização, no intuito de tornar-se contemporânea do seu tempo. Mas, segundo ele, essa é uma viagem acidentada, somando conquistas e frustrações, originalidades e distorções. 

Nesta proposição, Otávio Ianni coloca o paradigma cultural e identitário em debate, suscitando a pergunta: não seria uma nova forma “caótica” de encontrar resposta a este paradigma? Néstor García-Canclini, ao abordar as questões culturais na América Latina desde “A Hibridação e sua família de conceito”, tais como a mestiçagem e o sincretismo, também nos coloca diante de questões conflitantes das fusões étnico/raciais, crenças, entre o culto e o popular, a oralidade o escrito e o visual, observando que todos estes processos se encontram em transformação. 

O mesmo autor cria uma imagem possível de ser vinculada à de Ianni, ao comparar o Latino-americano com um pêndulo, ou seja: às vezes se comporta como “tradicional” e às vezes como “moderno”. Todas estas contradições aparecem quando queremos encontrar elementos identitários na Música da América Latina. 

Contudo, a Música produzida neste território possui características próprias e originais, e mostra a diversidade e a liberdade de criação, seja ela folclórica, tradicional, popular ou de massa, cada uma expressando-se com a sonoridade da cultura à qual pertence. Desde esta perspectiva, observo que se entendermos o contexto em que esta música é produzida, podemos compreender sua gente e seus valores culturais. Se tomarmos como exemplo duas cantoras ícones representativas como Celia Cruz e Mercedes Sosa, que a partir da segunda metade do Século XX surgiram como “adjetivos musicais” dos seus países, notamos que deixaram um material simbólico importante. Celia Cruz (1925-2003), cantora de ascendência afro-cubana, possui mais de 90 discos gravados. O primeiro deles, de 1948, inicia uma carreira vinculada a orquestras como a “Sonora Matancera”. Sua voz e performance trouxeram elementos identitários que caracterizam o povo cubano. Foram expressões idiomáticas, repertório, gestual, timbres vocais e instrumentais que nos permitem aproximar-nos dessa cultura. No ano de 1990, ganhou o Grammy, e em 1994, a Medalha Nacional de Artes do governo norte-americano. Com a Fania All Stars (grupo musical integrado pelos principais artistas de Salsa), esteve no antigo Zaire, hoje República Democrática do Congo, promovendo a integração entre América Latina e África através da música. Em 1995, Caetano Veloso e Celia Cruz se apresentaram em São Paulo, acompanhados pela Orquestra de Tito Puente.

Mercedes Sosa (1935-2009), cantora argentina de ascendência ameríndia, inicia sua carreira nos anos 1950 com um repertório de música tradicional e regional da Argentina. “La Negra”, como era conhecida, gravou 50 discos e imprimiu uma marca identitária da América Latina, a partir da sua imagem, performance, voz, instrumentação e gestual. Durante os anos 1960 participou do Movimento Novo Cancioneiro com base na “Música de caráter social”. Sua trajetória artística vinculada ao Movimento Peronista de esquerda provocou sua prisão e posteriormente seu exílio. Recebeu honrarias como Embaixadora da Boa Vontade pela UNESCO (2000) e o Grammy Latino (2003 – 2006). No Brasil (1976), junto com Milton Nascimento, foi uma das vozes em espanhol que reiniciou a tão sonhada integração latino-americana.

A trajetória destas duas artistas permite entender que a música faz parte da história no continente e constitui um dos fatores formadores da identidade. O sentido de pertencimento encontrado em cada manifestação, nas sobrevivências ameríndias, ibéricas e africanas na música, aponta para uma história da América Latina que ainda está sendo escrita, podendo inclusive ser contada através de sua música.

É possível que as respostas às contradições e essa forma caótica de buscar “tornar-se contemporâneo do seu tempo” estejam com os músicos, receptores e transformadores das mudanças culturais, sociais, políticas, comportamentais e práticas sociais por ocuparem uma posição privilegiada, convertendo-se em cronistas de seu tempo, às vezes de uma forma critica ou bem-humorada.

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Edwin Pitre-Vásquez é professor do Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná.

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