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Chuva forte vem aí

KIKO GOIFMAN E OLÍVIA BRENGA

Cem quilos erguidos por uma senhora de 67 anos. Pai e filho – cartunistas – tocam jazz juntos. Zé Celso de mãos dadas com seu jovem namorado revela paixão. Jean-Claude Bernardet e o seu desejo de entrar em órbita. Uma prostituta de 65 anos no Parque da Luz. Uma jovem que herdou da mãe o gosto pela morte. Um transformista de 73 anos que se chama Biá.

O desafio que nos foi proposto era o desenvolvimento de uma série que tratasse das relações entre pessoas de diferentes gerações, sempre enfocando de alguma forma a terceira idade. Assim como na nossa sociedade em geral, na televisão os idosos são muitas vezes vistos a partir de estereótipos.

De um lado, desprezados, de outro, tratados como super-heróis infantilizados. A intenção era tentar ir além, tratar de relações sociais entre pessoas de fato, com sua poesia e suas agruras. Desafio proposto, desafio topado. Assim nasce a série Temporal, palavra essa que possui a ideia de tempo em seu interior.

Anteriormente fizemos com o SESCTV a série HiperReal, que se dedica a grupos de jovens em ambientes urbanos. Skatistas, amantes da transformação radical do corpo, ciclistas, palestinos ou jovens gays evangélicos. Em Temporal, a aglutinação de pessoas em grupos é menos importante. Interessam os processos humanos, os rituais cotidianos nos quais pessoas de diferentes idades dividem um mesmo espaço, simbólico ou concreto. Jovens e velhos que se contaminam culturalmente.

São vários os temas dos programas. Alguns relacionados à arte e cultura, outros sobre atividades físicas, lazer, etnias e, essencialmente, comportamento. Para chegar aos assuntos tratados e, depois, às personagens, foram meses de pesquisa. Como encontrar essas relações na cidade? Que tipo de relações são estabelecidas entre pessoas de diferentes idades? Temos, de fato, encontros? Temos confrontos? Perguntas básicas orientavam uma pesquisa que se adensava. Se em uma das mãos tivemos a solidez da pesquisa, na outra a opção foi realizar uma série na rua, nos deslocamentos pela cidade. A busca da diversidade. Um exercício de abertura de olhar para poder ser surpreendido. Assim como um temporal que pode desabar a qualquer instante e depois sumir, abrindo o espaço para o sol. Nada de formulações anteriores, nada de certezas de gabinete. Sabíamos sobre as pessoas que iríamos encontrar, mas deixávamos um espaço para que o novo surgisse. O contato com o outro e a descoberta de relações singulares a partir de uma câmera.

Quando se trabalha com a ideia de abertura ao acaso, surpresas emergem. Marcamos um encontro com Zé da Ilha, de 81 anos, frequentador assíduo de um parque. A entrevista ia bem, nos emocionamos muito e ele deixou cair uma lágrima. Subitamente, Zé da Ilha interrompe a conversa, se levanta, começa a andar e cantar mostrando o parque para nossa câmera e falando com pessoas que passavam. De objeto de entrevista, Zé da Ilha converteu-se em sujeito e fez nossa equipe ter que “correr atrás” para ajustar o foco, lidar com o sol forte e a sombra. Naquele momento, a pauta com perguntas, o melhor enquadramento, já nada interessava. Zé estava mais à vontade naquele lugar do que qualquer um de nós.

Um outro bom exemplo foi quando saímos de São Paulo até a Granja Vianna para filmar o grupo Mutantes. Atualmente, com a mudança de vários integrantes, eles são um belo exemplo de contato entre pessoas de várias gerações. Chegamos ao estúdio/casa às 14h. Sérgio Dias, o líder, dormia. Foi ali que ficamos esperando, em meio aos viajados estojos de equipamentos repletos de adesivos, guitarras lendárias e amplificadores históricos. Que prazer a espera! Quando Sérgio Dias acordou, um imenso problema. A energia elétrica da casa/estúdio acabou.

Tínhamos tudo para cancelar as filmagens. Pois foi aí que um dos momentos mais emocionantes da realização de Temporal aconteceu. Saímos do estúdio e fomos para a sala da casa, onde a luz do sol cruzava a parede de vidro. Juntos, Vitor Trida, Bia Mendes e Sérgio Dias – de gerações bem diferentes – fizeram uma jam session acústica de tirar o fôlego. Tocaram músicas antigas e novas, coisas de que gostavam. Acertavam os arranjos ali, diante de nossos olhos. Entre risadas e brincadeiras, fizemos depois um bate-papo, muito melhor do que seria qualquer entrevista formal. Cada um dos membros de nossa equipe guardará pra sempre essa experiência. Bendita falta de luz.

Temporal começa agora a ser veiculado pelo SESCTV. Topamos o desafio e agora teremos o prazer de saber se fomos bem sucedidos. Pratos serão quebrados no episódio dos gregos, corpos com e sem rugas bailarão, pernas finas com mais de 80 anos subirão em pranchas de surfe, fogões serão acesos por pais e filhos, videogames divididos por netos e avôs. Um programa que tem pessoas de todas as faixas etárias em seu conteúdo e que, também, acreditamos possa ser visto por todas as idades

Kiko Goifman e Olívia Brenga são documentaristas e diretores da série Temporal, em exibição no SESCTV.

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