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O cinema na TV

INÁCIO ARAÚJO

Quem foi adolescente nos anos 70 do século 20 sabe do que estou falando: assim que a musiquinha chamava para a Sessão da Tarde, todo o mundo ia para a frente da TV. Havia dramas e comédias, faroestes e musicais, ficção científica e aventura.
Cada dia se sonhava de um jeito. O que ninguém sabia é que, tarde após tarde, estava desenvolvendo
uma cultura cinematográfica que levaria para o resto da vida. Uma experiência precária? Talvez. Os filmes eram interrompidos para os comerciais. A tela não era a ideal. A imagem da TV era precária. Mas era o que dava para ser. Estávamos no Brasil, e aqui o cinema não fazia parte da cultura: os cineclubes definhavam já havia alguns anos; a Cinemateca, como até hoje, raramente tinha filmes para exibir.

Para os mais velhos, o cinema naquele tempo era um escape, sim, uma das maneiras de driblar as durezas da ditadura: buscava-se cultura. Esperava-se pelo novo Godard, pelo último Visconti. Pela Mostra de Cinema, que apenas dava seus primeiros passos. Para a garotada não havia durezas, fora as de sempre, as da adolescência. Não se sabia de ditadura, nem se tinha ideia de que a TV Globo era uma espécie de monopólio. Mas era. E, aliás, graças a isso não tinha que programar as coisas horríveis que passam hoje em dia para ganhar audiência.

O programador da Globo era um fino crítico. Os filmes eram só americanos, mas que importa? Ali se viam os biscoitos finos. Mas não só, porque isso é impossível Tanto melhor. Ali se podia comparar John Ford a William Wyler, Jerry Lewis a Woody Allen, Sergio Leone a George Stevens. Era possível escolher o seu lado, os seus preferidos, o seu gênero...

O que a TV oferecia era uma experiência capaz de suprir a falta de boa programação na maioria dos cinemas. Nosso grande descaso, no fim das contas, pelo cinema. (À noite, diga-se, não era tão diferente assim. A mesma variedade, entre o ótimo e o medíocre, era oferecida diariamente na, por exemplo, Sessão Coruja).

Vamos voltar no tempo. No começo dos anos 60, quando qualquer filme mais complicadinho já era proibido aos menores de 18 anos. Que fazer? A TV Excelsior era um escape importante, onde num dia da semana o cinema era visto de fato como arte e via-se Antonioni e Fellini, Godard e Bresson, Bergman e Monicelli. Que digo eu? E Totó? Sim, havia as comédias de Totó. Legendadas, como os outros filmes. E havia a série das comédias juvenis italianas de Marisa Allasio.

A TV, essa TV ainda não submetida à corrida maluca por audiência, que faz qualquer coisa para ganhar um ponto ou dois na audiência, sobretudo enterrar a cultura – cinematográfica ou não.

Por isso a TV paga foi uma esperança grande, quando surgiu. Todo o mundo achava que haveria uma oferta variada, quase infindável de bons filmes. No começo foi isso mesmo que aconteceu. Lembro-me de quando o Telecine tinha um programador que ficava atormentando os estúdios para que copiassem os filmes no formato original. Cinemascope era cinemascope... Tinha que ser exibido como cinemascope... Nesse momento dava para pensar numa TV que ensinaria a ver filmes. Ela trazia ciclos completos de diretores, de épocas, de gêneros, de países.

Mais ou menos quando a TV paga entrou no circuito, os canais abertos passaram a exibir quase exclusivamente produtos de terceira linha. Era para “o povão”. Que, como se sabe, não merece nada... exceto desprezo. As coisas já andavam ruins, mas sempre dá para piorar. E isso aconteceu quando a TV paga passou a adotar hábitos de TV aberta.

Começou, por exemplo, a interromper os filmes para anúncios. Conforme o canal, há mais tempo de anúncio do que de filme... E passaram também a encher a tela de mensagens, anúncios do que seria exibido no dia seguinte, no mês seguinte, mensagens do patrocinador.

Não interessa, não aqui pelo menos, investigar por que isso aconteceu. O certo é que nos últimos anos a TV paga virou o mesmo que a aberta: uma máquina de venda. No mais, os DVDs, com sua qualidade de imagem, impuseram-se como opção. E a TV paga não soube ou, sobretudo, não quis retomar o papel da velha Sessão da Tarde, de Cinemateca informal, e buscar os filmes que estavam fora do mercado. E organizá-los em ciclos. Essas coisas que dão trabalho, afinal.

Para completar, surgiu a opção internet. Qualquer garoto sabe como baixar filmes na internet. Com legendas ou sem. Formato original ou em tela cheia. À vontade. Os mais espertos, os que têm mais informação, vão atrás dos filmes que não existem em DVD ou TV. O mundo caminhou e a TV, paga ou não, ficou para titia... Seus bons tempos, parece, passaram.

Mas, enquanto foram mesmo bons souberam preservar o interesse e o amor pelas imagens que carregam nossos sonhos.

Inácio Araújo é crítico de cinema.
 

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