
Intervenções
urbanas, como o grafite, ganham status de arte colecionável e
deixam os muros da cidade rumo às galerias e museus
Entre as principais
características de uma grande metrópole, algumas estão
na ponta da língua: o tráfego pesado - tanto de carros
como de pedestres -, o intenso e variado comércio e o acesso
a serviços e bens culturais, como cinemas, teatros e restaurantes.
Pelo menos no que diz respeito a São Paulo, esses aspectos marcam
a feição da capital. O que nem sempre é lembrado
nesse tipo de lista, mas que está muito presente no cotidiano
da cidade, são as chamadas intervenções urbanas,
como aqueles desenhos nos muros e nos paredões da cidade. Como
exemplos, é possível citar os grafites, o estêncil
- feito com um molde vazado - e o sticker, aquele adesivo que vemos
em postes e placas. Sim, há também as pichações,
muito malvistas, mas as discussões para definir quais delas são
expressões artísticas e quais são puro vandalismo
estão em plena ebulição. O que já se tornou
consenso é o fato de as demais - sobretudo o grafite - serem
mais e mais interpretadas como um estilo de arte. E, uma vez com esse
status, já deixaram as ruas e conquistaram os espaços
das galerias e museus. Como o Museu de Arte Moderna de São Paulo
que, nos últimos anos, ao grafite sempre dedica uma parede ocupada
por um artista.
Pioneiro
Essa migração, na verdade, não é recente
- a diferença talvez esteja no número de artistas que
passam por essa experiência hoje. Um dos primeiros grafiteiros
a "invadir" a praia dos artistas plásticos foi o etíope
de nacionalidade italiana e naturalizado brasileiro Alex Vallauri, no
início da década de 1980, com a mostra Stencil Invaders
(Invasores do Estêncil, em português), realizada em 1982
na galeria Alain Belau, em Nova York. "Alex dominava todas as técnicas
de gravura", explica o crítico e historiador João
Spinelli, criador do curso de pós-graduação em
arte pública da Escola de Comunicações e Artes
(ECA), da Universidade de São Paulo (USP). "Ele tinha toda
uma formação acadêmica." Spinelli conta que
a estada de Vallauri em Nova York, onde ele também fez um curso
de especialização, rendeu ainda um encontro com um dos
pais da arte pop, Andy Warhol, que o apresentou a Jean-Michel Basquiat,
outro grafiteiro de fama internacional. "Os dois [Vallauri e Basquiat]
grafitaram juntos na cidade", declara o crítico. No Brasil,
Vallauri participou da 18a Bienal Internacional de São Paulo,
em 1985, dois anos antes de morrer, com a instalação A
Rainha do Frango Assado, famosa personagem criada por ele e que dava
nome a um de seus grafites.
Sucesso
de público
Entre tantas obras espalhadas pelas ruas, há as que chamam a
atenção de estudiosos e colecionadores de arte. Com isso,
muitas vezes deixam as áreas públicas para ocupar espaços
fechados, especialmente preparados para exposições e para
a fruição artística. Mas o que faz um artista cruzar
essa linha? "Aqueles que estão nas galerias são os
que dominaram a forma, que estruturam a composição de
uma maneira diferenciada", analisa Spinelli. "Antigamente,
um jovem artista ganhava visibilidade quando participava de exposições
coletivas em galerias, recebia prêmios, e colecionadores começavam
a comprar sua obra. Já para os artistas grafiteiros, a visibilidade
começa na rua".
Um dos exemplos atuais são os irmãos Gustavo e Otávio
Pandolfo, de 33 anos, que assinam simplesmente como osgemeos (com essa
grafia mesmo, com letras minúsculas, sem espaço entre
as palavras nem acento). A dupla começou a grafitar na cidade
de São Paulo no final da década de 1980. A partir de 1999,
passaram a realizar exposições e projetos de arte pública
em países como Estados Unidos, Espanha, Alemanha e Japão.
No ano passado, conquistaram o público brasileiro com uma bem-sucedida
exposição na galeria Fortes Vilaça, na Vila Madalena,
na Zona Oeste de São Paulo. O Peixe que Comia Estrelas Cadentes
abriu com um público de 800 pessoas, e 50 mil foram conferir
o trabalho durante os doismeses de temporada, de julho a setembro. "Acho
interessante pensar que osgemeos fizeram uma exposição
que foi recorde de público", diz o artista plástico
que também faz intervenção urbana Alexandre Órion.
"Porque você pega uma coisa que era democrática [a
arte enquanto está na rua], do ponto de vista do acesso que o
público tem para conferi-la, e leva para a galeria. Mas as pessoas
se sentiram à vontade para ir a um espaço que talvez antes
fosse elitista, dedicado ao colecionador, àquele que pode comprar
o trabalho ali exposto."
Relação
com o olhar
No início dos anos de 1990, quando trabalhava como estilista
para marcas de moda jovem, o galerista Baixo Ribeiro convidava grafiteiros
para estampar camisetas. Essa relação com os artistas
se intensificou em 2004, quando ele abriu a galeria Choque Cultural,
no bairro de Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo. Neste mês,
sua galeria leva dez artistas para exporem na Inglaterra, incluindo
nomes já de prestígio no meio, como Zezão e Speto.
"A idéia da galeria surgiu da necessidade de fazer uma ligação
direta entre artista e jovem colecionador", conta Ribeiro. "Então,
pareceu muito lógico que o artista que desenhava uma camiseta
pudesse também fazer um desenho para uma gravura."
Segundo o galerista, no entanto, o termo grafite só faz sentido
quando empregado para se referir a obras que ainda estão na rua.
"Sua existência [dessas intervenções] depende
do entorno, da paisagem urbana. Enquanto na galeria é outra coisa,
o artista tem de ter outro tipo de repertório, trabalhar com
diferentes materiais e transformar a obra em peças colecionáveis."
Para João Spinelli, há algumas diferenças que podem
ser notadas quando a criação desses artistas migra do
espaço público para o privado, como a relação
entre o espectador e a obra e a influência do ambiente da rua
na técnica empregada. "A cidade tem o poder de esconder
ou valorizar tanto as coisas feias como as bonitas em seu espaço",
avalia o crítico. "[Na galeria,] o artista usa o grafite
como técnica de composição artística - não
mais como forma de expressão urbana - para pintar sobre tela
ou madeira, por exemplo. E esses suportes podem ser transportados e
vendidos. O mercado de arte é um mercado de obras transportáveis."
Ver boxes:
Arte
pública
Invasão urbana
Arte
pública
Exposição
Julio Guerra, do Sesc Santo Amaro, e projeto Murographia, ?da
unidade Ipiranga, valorizam a produção artística
das ruas da capital
De 30 de
outubro a 1o de dezembro, o Sesc Santo Amaro apresenta esculturas
e pinturas do artista plástico Julio Guerra (1912-2001).
Suas obras, vindas de coleções públicas
e privadas, também serão sintetizadas em um catálogo
com textos e imagens. Um dos objetivos da mostra é revelar
ao público a relação que Guerra teve com
o bairro de Santo Amaro - local onde nasceu, viveu e realizou
um de seus trabalhos mais conhecidos: a estátua de Borba
Gato, inaugurada em 1963, na confluência das avenidas
Santo Amaro e Adolfo Pinheiro. Já com o projeto Murographia,
da unidade Ipiranga, a arte de rua é abordada por meio
da criação coletiva. Mensalmente, desde janeiro
de 2006, são realizadas oficinas com jovens entre 13
e 18 anos, orientados por nomes experientes da intervenção
urbana em São Paulo. Os participantes aprendem técnicas
como o grafite e a colagem, e também discutem fatos e
datas históricas que servem de mote para a produção
dos trabalhos.
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Invasão
urbana
A
mostra A Conquista do Espaço traz a arte de rua internacional
para as unidades Pinheiros e Pompéia
Com a exposição
A Conquista do Espaço - Novas Formas da Arte de Rua,
realizada de 10 de julho a 23 de setembro, o Sesc Pinheiros
e o Pompéia apresentaram artistas nacionais e internacionais
reconhecidos por suas intervenções urbanas. As
obras - grafites, colagens e instalações - não
só ocuparam áreas internas e externas das unidades
como também os arredores, legitimando a proposta do evento.
"Acredito que a intervenção urbana é
um ato político e uma demonstração da existência
humana, que passa a ressignificar o lugar", diz o artista
plástico paulistano Alexandre Órion, um dos participantes
do evento. A mostra teve curadoria do coletivo de arte Base-V
e contou com uma programação paralela, que incluiu
oficinas, workshops e palestras com os artistas.

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