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Audiodescrição no cinema: A imagem pela palavra
O cinema como arte audiovisual, se comunica por meio de uma linguagem. No que se refere à linguagem visual, ou seja, à imagem, o cinema constrói sua comunicação de duas formas: pelo conteúdo da imagem e pela forma pela qual captamos este conteúdo. O conteúdo é responsável pelo sentido lógico. A forma de registro são os planos e movimentos da câmera. Se a imagem no cinema constrói sua comunicação pela forma e conteúdo, a audiodescrição no cinema também deve seguir os pressupostos da linguagem da arte a que se propõe descrever, ou seja, uma audiodescrição que não se restrinja a descrever somente o conteúdo das imagens, mas que se estenda à maneira pela qual elas são registradas, sua linguagem.
Uma pessoa que nasce vendo e escutando cresce, por assim dizer, alfabetizada por códigos visuais e sonoros estabelecidos pelos sentidos e pelos ambientes socioculturais. A pessoa que nasce cega, por sua vez, não tem acesso aos códigos visuais de comunicação, ela recebe, dos que veem, as descrições das coisas do mundo. Desse modo, esse espectador no cinema só poderá imaginar as imagens e os detalhes dos movimentos se conseguir se projetar ali. Será a audiodescrição cuidadosa, com os elementos da linguagem da câmera, a proximidade, o ângulo, que darão a sensação, o prazer ou o incômodo, seja de um tombo, de um rosto sorrindo, do seio de uma mulher ou de duas pessoas fazendo amor. O audiodescritor terá que, a partir da pluralidade do olhar, dar conta dessa tradução visual. Buscamos a objetividade da imagem enquanto ela busca em nós, a subjetividade. Eis a parte invisível do olhar: aquela que está na mente de cada um.
A audiodescrição (AD) é um recurso de acessibilidade comunicacional, utilizado com o objetivo de ampliar o entendimento de pessoas com deficiência visual, intelectual, baixa visão, disléxicos e idosos com baixa acuidade visual, em quaisquer situações nas quais as informações visuais sejam fundamentais para sua compreensão. A AD pode ser feita em imagens estáticas e em movimento e é considerada um modo de tradução audiovisual intersemiótico, no qual o signo visual é transposto para o signo verbal. No cinema, ela é feita por meio de um audiodescritor que descreve as cenas, os ambientes, os personagens, as mudanças de tempo e espaço, a iluminação e as articulações de planos, tudo isso entre as falas do filme.
A complexidade está em toda parte do processo! A escrita de um roteiro de audiodescrição de um filme consiste em escolhas de imagens e formas de descrição. Para o filósofo Vilém Flusser, escrever um roteiro de cinema é uma sucessão de formas de rasgar imagens, é um ato de fazer incisões, criar rupturas e isso também é aquilo que o audiodescritor faz com as imagens do filme. No entanto, um espectador que ouve (cego ou que permanece de olhos fechados) não poderá conferir qual a medida dessas rupturas e o audiodescritor deverá ter a responsabilidade de transformar aquelas imagens em palavras. Imagens trazem palavras, que levam a outras imagens; é a palavra que deverá fazer com que o fluxo contínuo das imagens não pare na mente da pessoa cega.
Na sequência da Escadaria de Odessa, no filme Encouraçado Potemkim, de Sergei Eisenstein, sua própria linguagem pede um roteiro de AD que a referencie. Se a sequência da escadaria for descrita sem salientar as mudanças de ponto de vista do cinegrafista por meio da câmera (que ora está lá embaixo no final da escadaria, câmera rente ao chão, filmando de baixo para cima as pessoas que correm desesperadamente em diversas direções, clamando para que não atirem e, ora está no alto da escadaria, rente a uma estátua do ditador, que mostra uma fileira de soldados emparelhados, descendo e disparando seus fuzis contra o povo), não será possível o espectador com deficiência visual sentir o ritmo e o impacto da mudança de olhar que Eisenstein quer provocar. É o impacto que provoca a reflexão sobre o conceito de hierarquia e de luta de classe. É um cinema conceitual e somente a articulação dos planos o confirma. Essa experiência do corpo, ou melhor, do olhar somente poderá ser apreendida pela pessoa com deficiência visual por meio do relato da experiência do olhar do audiodescritor, que deve, por sua vez, estudar a obra a ser audiodescrita. A descrição dessa linguagem pode ser decisiva para que a pessoa entenda as óticas de representação, responsáveis pela fisionomia do objeto filmado e pelo sentido do filme.
Assistir um filme é sentir uma profusão de sensações, é usufruir dos elementos de som e imagem, que constituem sua gramática. Esses elementos conjugados são a forma de representação simbólica da arte cinematográfica e, ao serem descritos em palavras, poderão contribuir para a formação do repertório imagético das pessoas com deficiência visual e para o desenvolvimento das relações simbólicas, tão fundamentais para a fruição da arte.
Não importa se a pessoa com deficiência visual vai conseguir imaginar exatamente aquilo que o audiodescritor descreveu. O que importa é que somente a AD dará à pessoa que não enxerga, a possibilidade de imaginar aquelas imagens e ampliar os seus conceitos.
Não se pode mensurar o entendimento da arte cinematográfica, porque um dos preceitos da arte é de que ela não deve servir a algo. Na arte não há comparação, porque no olhar não existe medida, o que a arte pede é percepção e é a audiodescrição adequada que permitirá a reflexão sobre a pluralidade das percepções, tornando possível o debate sobre a arte cinematográfica, entre pessoas que veem e as que não veem.
Bell Machado e´ audiodescritora, bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas e mestre em Multimeios no Instituto de Artes da Unicamp. Foi professora de Histo´ria do Cinema, no MIS - Museu da Imagem e do Som de Campinas, e no curso de Especializac¸a~o em Audiodescric¸a~o, na Universidade Federal de Juiz de Fora. Dirige atualmente o departamento de inclusa~o e acessibilidade cultural na empresa Quesst Consultoria.