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O bruxo dos sons

Nascido em Olho d´Água e criado em Lagoa da Canoa, antigo município de Arapiracá, o filho de Vergelina Eulália de Oliveira, a dona Divina, e Pascoal José da Costa, o seu Pascoal, desde o dia em que nasceu, sentiu que a música estaria sempre presente em sua vida. Ouvia os sons da natureza e as vozes das pessoas o encantavam. Para o pequeno Hermeto Pascoal, tudo era música. Um cano de mamona ou de jerimum virava um pífano, que tocava para os passarinhos, e até os sapos eram seus companheiros de improviso, com seu coaxar na beira do lago. Na infância pobre, sem energia elétrica em casa, o menino albino se divertia construindo instrumentos musicais com as sobras de ferro da oficina de seu avô. Pendurava tudo em um varal para tirar os sons de um carrilhão improvisado, seu primeiro instrumento, criado por intuição, sem nunca ter visto um. Aos sete anos, encheu-se de coragem e se aventurou a tocar escondido a sanfona de oito baixos de seu pai. Passava as tardes brincando de fazer música com o irmão José Neto. O pai descobriu e se maravilhou. A partir daí, não parou mais. A ousadia de tocar a sanfona em casa – e, pouco depois, em forrós e festas de casamento no interior do nordeste – projetou o menino para o mundo. Hoje, aos oitenta anos, Hermeto é um artista consagrado. Tem mais de oito mil músicas em seu repertório e segue influenciando gerações, experimentando sua arte e “quebrando tudo”, como gosta de dizer.

Você imaginava que seria músico?
Vim para o mundo e Deus me botou no mundo para fazer isso. Tenho 80 anos de música. Quando me perguntam quanto tempo tenho de carreira, eu digo isso porque é o faço desde que nasci. Toda vez que via minha mãe conversando com uma pessoa, eu dizia: mãe, mãe ela está cantando. Eu também gostava de ficar ouvindo meu avô trabalhar, escutando as batidas dos ferros. Quando ele me pedia para jogar fora os restos de ferros eu escondia em casa para tocar. Minha mãe achou que eu estava ficando louco. Quando meu avô me viu tocando os ferros que pendurei no varal ele correu e chamou minha mãe. Ela chorou de alegria ao ver a música bonita que eu fazia tão pequeno.

Com quantos anos você deu seus primeiros acordes?
Foi com oito anos, na sanfoninha de papai. Ele tocava para se divertir porque sua vida era simples, na roça. Mas ele sempre deixava a sanfona em cima da cama. Eu tinha medo de tocar. Um dia, esperei ele sair, corri peguei a sanfona e saí tocando pela casa. Toquei com alegria e medo ao mesmo tempo, e dei para meu irmão experimentar. Com o tempo, minha mãe nos escutou e chamou meu pai. Não contou o que era. Fez surpresa. Ele ouviu e chorou de emoção. Eu me lembro muito bem quando ele disse que ia vender sua melhor vaca, para comprar uma sanfona boa para nós.

Sua família sempre apoiou sua música?
Uma coisa muito bonita é que minha família sempre me apoiou, sempre esteve comigo. Quando eu e meu irmão fomos tocar em outra cidade, era Palmeiras dos Índios, na época do São João, eu decidi não voltar mais para casa, tinha quinze anos. Lembro que recebemos um trocado depois de tocar, convenci meu irmão a viajar. Foi a intuição que me guiou, nada foi premeditado. Decidi que iríamos para Recife e fomos para a rodoviária. Nem queriam deixar a gente embarcar porque éramos menores de idade. Foi a partir daí que nós ganhamos o mundo. Eu, de certa forma, estava tranquilo porque sabia que meus pais ficariam felizes com a minha partida. Ia fazer o que me deixava feliz.

Quais são os conselhos para quem quer ser músico?
Uma coisa eu digo. Eu aconselho aos pais a não ensinarem teoria musical aos filhos antes dos dez anos. Isso limita muito a criatividade das crianças. Todos que começam cedo e estudar música têm problemas rítmicos e harmônicos. Muitos não dariam para músico, mas com o estudo da teoria aprendem música e fazem sem ter o dom natural. Música é sentimento. Você tem que sentir para querer tocar.

Como o menino sanfoneiro se transformou em bruxo da música?
Ah! Isso aconteceu quando cheguei ao Rio de Janeiro. Eu tinha 23 anos. Comecei a tocar na cidade e Ana Maria Bahiana, uma jornalista carioca, me chamou de bruxo no jornal. Fiquei assustado no início, porque a educação que recebemos lá na roça era diferente. Quando era criança, aprendi que bruxo era uma coisa má, negativa. Eu achei até que estava fazendo algo errado ou que tinha alguma coisa errada com minha música. Foi quando a jornalista me explicou que eu era sim um bruxo, porque era um mágico do som. Ela disse que me chamou assim porque sabia que eu tinha nascido para criar música. Depois de tudo esclarecido, fui manchete no jornal como o bruxo dos sons, o criador dos sons, intuitivo e autodidata. E até hoje é assim que o mundo me conhece.

Existe alguma crença ou força maior que esteja relacionada à música?
Tudo está ligado à música. Música não é só tocar um instrumento. Música é poder conversar com você, é ver as pessoas exercendo seus ofícios, trabalhando, vivendo. Eu não posso diferenciar ou destacar a música em nada. Para mim a ela está em todos os contextos, porque eu sou totalmente intuitivo.

O que a música representa para você?
A música é minha razão de viver nesse mundo, é minha religião. Eu aprendi a respeitar tudo que existe através dela. A música me faz não esquecer quem sou.

Há alguma característica artística sua que manteve ao longo da carreira?
Eu encaro a vida como uma grande escada de evolução. Subi o meu primeiro degrau, quando nasci. Então, vivo até hoje um dia de cada vez, me dedicando totalmente ao presente, sem precisar olhar para trás. Porque olhar sempre para trás não é bom. Só de vez em quando. Uma vez, quando eu viajava com meu grupo, ouvimos um arranjo que eu fiz há 40 anos e chorei. Porque eu sabia que estava bom, mas nem tanto. Eu amo o que faço, portanto o que eu fiz ontem também é válido e eu posso repetir as experiências que fiz, mas sempre serão feitas de formas diferentes.

Você acredita que o visual interfere na recepção e fruição de sua música?
Claro. Eu sempre fazia muitas coisas escondidas da minha família e seguia minhas intuições. Quando chego em algum teatro para me apresentar, fico olhando para ver se acho alguma coisa que possa ser tocada e fazer parte do show. Uma vez decidi entrar no palco vestido de satanás. Havia acontecido uma peça de teatro antes do show naquele espaço, então pensei agora vou entrar só eu e minha flauta, todo vestido de satanás. Quebrando tudo, como eu gosto de fazer, sabe? Eu queria ver o que ia acontecer. Não teve um chio, um riso. Até entrei fazendo alguns gestos para ver se o pessoal ria, e nada.

Na música em geral, o visual ajuda ou atrapalha o artista?
O visual pode até aparentemente ajudar, mas se você não tiver firmeza, qualidade naquilo que faz fica difícil. Por exemplo, eu uso vários objetos como instrumentos, até uma chaleira, mas ela não aparece mais do que eu no palco. Então, se o artista não tiver firmeza, qualidade e talento mesmo, o visual não ajuda.

Você acompanha o cenário musical atual no Brasil?
Em primeiro lugar, quero dizer que, para mim, não existe música brasileira. Isso é um engodo. Quando vestimos uma roupa cara ou barata, se estiver limpa e passada, o sucesso é igual. Eu ouço a minha mente, as minhas ideias. Elas me ajudam a criar as minhas músicas que são como quadros expostos, para que cada um ouça e sinta da forma que achar melhor. Segundo, não dá para acompanhar tudo, porque senão eu já teria morrido. Quando eu viajo para o interior do Brasil, às vezes encontro um sonzinho bom.

O que você ouve?
Eu gosto de ouvir jazz, uma valsa, bem tocada também é muito boa. Até mesmo bolero, eu gosto de escutar. Na verdade, eu ouço tudo, desde seja bem tocado.

Quem é Hermeto Pascoal?
O Hermeto é um ser que se conhece de dentro para fora. Porque de fora pra dentro eu não faço questão de me conhecer. Só a imagem da pessoa, não é nada. Temos que preservar a pureza de nosso interior para viver e fazer as coisas com alegria.