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Objeto Sonoro Não Identificado

Foto: Washington Possato

 

Bernardo sempre gostou de música, mas nunca imaginou que pudesse viver disso. Pensou em ser desenhista ou veterinário, mas a música acabou sendo mais forte, questão de necessidade de expressão. Fã de Michael Jackson, cantava e dançava ao som do ídolo que abriu o campo para o break no Brasil, e para várias outras coisas, como a dança de rua. Se apaixonou pela estética do hip hop e pela agressividade do punk rock. Ouvia Inocentes, Ratos de Porão e sentia com eles a necessidade de falar diretamente às pessoas. Acompanhou o surgimento do rap no país e dividiu por anos os vocais com Marcelo D2 no grupo de rap rock Planet Hemp.

Desde 2001, segue nos palcos com a banda BNegão & Seletores de Frequência, misturando rap, hardcore, dub e funk, com letras imersas em crítica social. O garoto que nunca imaginou que pudesse viver de música, hoje vive de sua arte. Foi um dos artistas convidados para representar o Brasil no encerramento dos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, e é considerado um importante nome do hip hop nacional.

 

Quando descobriu que queria ser artista?
Eu não me considero artista até hoje. Sou um cara que gosta de música e se expressa através dela. Na verdade, eu nem sabia que era possível viver de música. Eu me joguei nesse caminho porque tinha a necessidade brutal de fazer isso e foi mais forte que todo o resto. Na época, briguei com toda minha família que achava que eu era insano, um camicase. E não é que deu certo? Eu vivo de música desde 1995 e hoje sustento uma galera. Trabalho com música, mas não me considero nem músico e nem artista. Sou tipo um objeto sonoro não identificado.

 

Você chegou a estudar música?
Tentei estudar, mas não deu certo. Entrei quatro vezes na escola de música e só consegui ganhar amigos. Até hoje, tenho vários amigos e professores destas escolas. Eu era bom apenas na aula de percepção, todo o resto era um fiasco.

 

De onde surgiu BNegão?
Esse nome surgiu quando comecei a frequentar uma turma de amigos em que já tinha um Bernardo. Sempre que alguém chamava o nome, os dois olhavam. Aí, nos dividiram entre o BBranção e o BNegão. Quando entrei para o Planet Hemp, eu precisei de um nome. Marcelo e Bernardo, para grupo de rap, não tinha como pegar. Então, o Marcelo já tinha descolado o D2 e decidi usar o BNegão mesmo, um apelido que ficou.

 

Como foi o início da sua carreira?
Meu pai já tinha desencarnado e eu estava numa situação financeira sinistra. Minha família me condenava questionando o porquê eu queria trabalhar com música. O bicho estava pegando. Mas eu falei “Cara, é isso que quero fazer mesmo e funcionou”. Era tipo horizonte zero, mesmo fazendo parte de uma geração que fez acontecer nos anos 1990. A gente fez por que tinha uma força de vontade grande. Não tinha mercado, não sabia como ia ser o dia de amanhã, se ia ter comida. Na época não tinha dinheiro pra pegar ônibus. A gente trabalhou pra caramba e, quando rolou, foi uma surpresa. Não foi nada fácil. A gente não tinha nada muito planejado, não existia internet, Youtube. Naquela época, nosso negócio era juntar grana o ano inteiro para gravar uma fita cassete demo num estúdio furreco.

 

O que a música representa para você?
A música para mim é oxigênio, vida e possibilidade de transformação. Minha vida toda foi transformada através da música. Independentemente se eu não produzisse, ela sempre foi o que me moveu. Antes mesmo de eu começar e saber que podia fazer música, ela fazia a diferença. A música tem disso, ela nos leva a lugares de todos os jeitos, mental e fisicamente. Eu vejo isso direto. Outro dia, conversava com um camarada da banda que chegou no ensaio boladão, porque o pai estava com problemas de saúde. Depois de uma hora tocando, ele já estava bem. A música tem esse poder. Ela tem essa parada clássica mesmo de ser trilha sonora da minha vida porque eu amo música de qualquer jeito.

 

Existe função política na música e na arte?
A arte tem que ser livre. Sou a favor da liberdade geral. Se a pessoa que falar de um barquinho, de um pato, que fale. Eu entrei na música por causa disso, por causa da letra, para me expressar. A liberdade tem que ser real. Vejo muito uma galera propondo liberdade, mas dizendo que isso ou aquilo não pode. Cada um decide o quer fazer, a expressão é da pessoa e ninguém pode ditar regra. Minha primeira letra foi sobre a polícia, a segunda sobre prostituição falida. Venho de uma família de luta política, de ativistas contra a ditatura militar. Nasci neste circuito. Então, pra mim, é natural querer falar a real. Na época, tudo se falava na base da metáfora. Por isso, sinto necessidade dessa parada de dizer é isso, é aquilo.

 

Nosso seu trabalho, você mistura diversos elementos, como o funk, o rap, e o punk, com as batidas da música negra. Qual a importância da música negra na cultura brasileira?
O Brasil se formou através de uma mistura de povos: os nativos originais, que nós chamamos de índio, os africanos e os europeus. É um blend maluco, onde todos têm importância. Nessa mistura, a cultura negra é fundamental, não só aqui, mas em toda América. A música negra é universal, é a base que está em todo canto.

 

Você acompanha a nova safra de artistas negros?
Para mim a maior banda brasileira atualmente é a Baiana System, de Salvador. Eles estão fazem um som único, que é som só deles. Dou muito valor a isso, aos inventores. Eu ouço Tom Zé, por exemplo, e sei que é Tom Zé. Ouço os Baiana, e sei que são eles. Gosto bastante também da Tássia Reis, que arrebentou no último disco. Gosto do Síntese, que vem lá do interior de São Paulo e é um dos caras mais importantes do rap brasileiro, com as letras mais fortes do rap atual - ele gravou com o Criolo neste último álbum.

 

Quais são suas influências musicais atuais?
Minhas influências hoje estão na cena de som digital com batuque e no afrofuturismo, porque ele aponta para o presente, o passado e o futuro, o que acho fundamental.

 

Ouvi dizer que você é cinéfilo. Qual sua relação com o cinema?
Minha relação com o cinema é brutal e fez toda a diferença pra mim. Assisto a filmes desde moleque. Aproveitava que, com 15 anos, eu já tinha um bigodinho safado e conseguia entrar nos filmes para maiores de 18 anos. Assistia e contava depois pra galera como era. Quando vi O Exterminador do Futuro, foi assim. Entrei no cinema com cara de mau.

 

O que você assiste no cinema?
Gosto de tudo. Vejo desde cinema arte, até cinema pipoca. Não tenho preconceitos. Um dos filmes que mais me amarro e me emociono é Kiriku. Tenho em casa a fita VHS desse desenho e vi quando estreou no cinema no Brasil. Assistia muito a filmes na Estação Botafogo, que era o lugar de encontro da galera. Na minha turma, grande parte se encontrava na frente desse cinema, que era referência cultural, e eu já estava ali com 13 anos de idade, 100% envolvido. Sempre gostei de ir ao cinema, mas quando pude ir sozinho, fui selecionando melhor o que assistir.

 

De lazer, a trabalho. Como é produzir trilha sonora para cinema?
É demais. Para mim, a música funciona como a trilha sonora da vida. Quando estou andando em algum lugar, naturalmente a música se pede, fico imaginando ela. Então, levei isso para alguns trabalhos que fiz. Comecei com a trilha de um média-metragem dirigido pelo Silas Andrade, a primeira filmagem dos moleques lá no morro, antes de fazerem o filme Cidade Deus, da Katia Lund e do Fernando Meirelles. Fiz também a trilha do documentário Rio 50° Graus, do Julien Temple, que é mestre e gosto para caramba. Agora, estou felizão, porque estou fazendo a trilha sonora para um filme do Jeferson De, que se chama Correndo Atrás, com o roteiro baseado no livro do Hélio de la Peña. Quero produzir uma trilha para marcar tanto quanto o filme, e independente do filme. O Jeferson é um cara musical e dá trocar experiências legais. Já tínhamos tentando fazer um trabalho antes, que não rolou por causa das agendas e aí, ele me convidou para esse. Está com cara de que vai ser bem maneiro. Estreia no ano que vem.

 

Você já pensou em atuar ou dirigir?
Já me chamaram para atuar, mas recusei. Participei como coautor de roteiros e codireção. Qualquer hora pode rolar uma direção só minha. Eu penso muito na vida com esse olhar. Mas pra mim seria mais fácil dirigir um clipe.

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