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Entre temperos e essências
Desde menino, Marcelo Machado se interessava pela música, mas sua primeira forma de expressão foi o desenho, que o acabou levando a estudar arquitetura. Na faculdade, participou de um grupo que se interessava por cinema e fazia experiências em curta-metragem e animação. Entre os amigos do grupo, que se reuniam no cineclube da FAU-USP, estavam Fernando Meirelles, Paulo Morelli, José Roberto Salattine, colegas de classe com quem acabou montando a produtora Olhar Eletrônico, em 1981, assim que se formou. Como os outros, nunca atuou como arquiteto, optou pelo vídeo e foi, com seus colegas, pioneiro na compra e uso de equipamentos portáteis de broadcasting. Ganhou prêmios e espaço na televisão, com produções independentes marcadas pela ousadia de linguagem. Criou programas experimentais e até subversivos, em um momento que a televisão permitia mais liberdade estética e política. Foi responsável pela primeira geração de vídeo-repórteres brasileiros, diretor de programação da TV Gazeta e da MTV Brasil. Produziu e dirigiu videoclipes, vídeos publicitários, programas de TV e documentários, entre eles Tropicália, em 2012, e A Democracia das Madeiras, realizado pelo Selo Sesc, em 2016.
O que é o vídeo?
O vídeo é um avanço tecnológico facilitador para a entrada no meio audiovisual, por sua flexibilidade e baixo custo. Ele foi, para mim e para muitos, a porta de entrada nesse meio. Na época da faculdade, o Fernando (Meirelles) quis fazer um média-metragem em 16mm. No entanto, a gente percebeu que com o custo dessa produção, ele compraria dois equipamentos de vídeo. A tecnologia do vídeo apresentava maleabilidade, possibilitava regravar as fitas, assistir o que se gravava. Havia uma baixa de qualidade técnica, mas tinha muita flexibilidade nesse recurso.
Como o vídeo foi recebido pelo mercado audiovisual?
Na década de 1980, havia muito preconceito com as pessoas que trabalhavam com vídeo, principalmente por parte dos profissionais de cinema. Eu entendo esse preconceito hoje, porque nós tínhamos outra dinâmica de gravação, mais ágil e talvez até tecnicamente descuidada. O vídeo tinha uma dinâmica completamente diferente do cinema e sua sala escura, seu rigor e apuro técnico e todo seu ritual de assistir a um filme. Ele dava uma espécie de vulgarizada, de banalizada nesse processo, o que nos fez nos aproximarmos da televisão, que é um veículo de massa e, na época, nos permitia experimentar mais. Muito de nós foram depois fazer cinema, mas levando na bagagem esse outro jeito de pensar o audiovisual.
Hoje, a relação do vídeo com o cinema e a televisão mudou?
Com o avanço das tecnologias audiovisuais, essa relação se expandiu. Os recursos foram ficando cada vez mais portáteis, mais flexíveis, mais baratos e acessíveis, permitindo a inclusão de milhões de pessoas em todo mundo no universo audiovisual. Hoje, todos podem fazer seus vídeos com celular. Eles podem não ter pesquisa, pensamento, roteiro ou apuro técnico, mas, se você olhar na origem do cinema, os primeiros a fazer filmes, usavam a câmera para mostrar um trem ou um homem andando a cavalo. É o que meu amigo Raimo Benedetti chama de Cinema das Atrações: produções livres feitas a partir de uma câmera apontando para um evento, um objeto ou uma pessoa. Portanto, a relação entre o vídeo e os outros suportes se expandiu e se tornou mais inclusiva, sobretudo na produção. É claro que há muita coisa banal, mas, com essa expansão você vai conquistando novos adeptos para o meio audiovisual.
De onde surgiu seu interesse pela música?
Cresci contaminado por diferentes formas de música e muito interessado por elas. Na minha adolescência, frequentava o circuito universitário, que trazia grandes músicos para circular pelas cidades que tinham universidades. Sem sair de Araraquara, vi shows de Caetano, Gil, Vinícius, Toquinho, Gal Costa, Bethânia, Chico Buarque e Elis Regina. Tive muito acesso à música que estava se fazendo naquele período, sem ter que morar na capital. Através de discos, descobri o rock and roll. A partir daí, resolvi estudar música. Aprendi violão e flauta. A única professora na cidade era uma senhora alemã que ensinava música barroca de Händel Telemann e Bach. Então, eu ouvia mpb ao vivo, ouvia rock gravado e tocava música da renascença e da idade média.
Como a música refletiu no seu trabalho?
Na faculdade, o desenho que era a minha linguagem original virou a coisa principal e fui abandonando a música como artista, mas não como público. Quando comecei a trabalhar com vídeo e cheguei à televisão, passei a buscar naturalmente uma aproximação da música através dos meus trabalhos.
Qual a importância da música no Brasil?
A música é a maior expressão artística do Brasil, que tem uma diversidade de estilos reconhecida mundialmente. Somos muito bem representados por nossa música. Acredito que não só devemos nos orgulhar, mas também trabalhar esse conteúdo, pelo qual nos destacamos. Essa constatação para mim é óbvia. Os ingleses falam de soft power, que é todo o serviço que pode ser feito por áreas não industriais ou tecnológicas pela arte e pela cultura, por exemplo, para afirmação da identidade e soberania de um país perante os outros e na conquista de espaço no mercado, inclusive de trabalho. Então, se o Brasil souber lidar com isso, ele se afirma e conquista seu papel no mundo, através da música.
O Brasil aproveita seu potencial musical?
Acho que fazemos isso, mas poderíamos fazer melhor. Não temos um único artista de reconhecimento internacional, mas vários. Quando fiz Tropicália, rodei com o documentário por vários países cujas pessoas reconheciam a importância de Gil, Caetano, Gal, Tom Zé e tantos outros, como Milton Nascimento e Mutantes. Na música erudita, temos Nelson Freire que hoje é bastante forte na cena pianística mundial. Talvez não tenhamos ninguém com o porte da Beyoncé, com grande expressão no showbiz em termos de faturamento. Mas sempre estivemos presentes em todas as vertentes da música. Estamos no topo da cadeia musical e não devemos ter dúvida disso.
Existe receita ideal para se filmar a música?
Cada música pede um jeito de filmar. Cada situação musical pede uma abordagem diferente. Algumas abordagens viraram receitas, modelos que eu tento evitar. O uso do recurso multi-câmera no palco – com várias câmeras ligadas a uma mesa de corte –, seja na música erudita ou popular, se tornou quase um padrão. No meu trabalho, tento não ceder facilmente a esses padrões e buscar sempre outras maneiras de fazer, em síntese, a mesma coisa. Dá para mostrar outros aspectos da música que as gravações tradicionais não consideram, mas que podem ser muito interessantes para o público. Entender a essência e buscar certa simplicidade na abordagem são coisas muito importantes no documentário musical.
Como falar de música erudita em um documentário?
Busco sempre abordagens simples. Tento não hermetizar, não intelectualizar e, com isso, não afastar a música do público. Na tentativa de valorizar a música, muitos diretores acabam rebuscando demais e tirando a essência daquilo que deveria registrar. Então, quais são os ingredientes que você vai usar no documentário para não estragar, sabendo do limite do registro? No registro não há como guardar 100% do sabor de uma música, guarda-se apenas parcialmente. Por isso, se você rebuscar demais, tende a estragar. É como fazer uma comida muito temperada.
Qual o tempero do documentário A Democracia das Madeiras?
Na série de documentários sobre as sessões da orquestra que fiz para o Selo Sesc, aproveitei muito os ensaios, porque neles consigo me aproximar mais dos músicos que trazem sempre um conteúdo a mais, seja na forma de entrevista, seja na demonstração de como tocam, até na própria formação física do instrumento, sua construção e desenvolvimento através da história. Se o documentário se limitasse apenas no posicionamento de câmeras para gravar o concerto, ele levaria para o público o que ele está acostumado.
Qual a potencialidade do documentário musical na divulgação da música?
Nos últimos anos, houve um boom de documentários musicais no mundo. Aqui no Brasil também. Temos até festival sobre o gênero e um público sendo formado por esse tipo de produção. É um formato que esta em alta. A gente já teve outros, como o videoclipe na década de 1990, que tinha como suporte a TV e que foi um formato que serviu à indústria do disco e a canais como a MTV. Mas o documentário musical antecede o videoclipe, inclusive com produções brilhantes. Hoje, há uma nova fase de documentários que se tornam mais importantes que os videoclipes. É o que mais assisto, seja no cinema, na TV ou na internet. Mas me interessam outras formas de abordar a música que são igualmente interessantes e têm um potencial muito grande.
Falta criatividade para abordar a música na televisão?
Falta. Muitas vezes, isso acontece por uma questão orçamentária, de viabilidade. Eu pago um preço alto por ficar inventando o tempo todo. Se eu trabalhasse com multi-câmera, cobrindo eventos, talvez trabalhasse mais. Como fico tentando buscar a tal da criatividade, aceito meus riscos. Essa história de andar na contramão tem o seu preço, porém, na minha trajetória isso se tornou uma constante e talvez eu nem saiba mais sair desse lugar onde eu me coloquei. Virou uma sina essa coisa de inventar.