Sesc SP

postado em 06/02/2015

Relações entre arte e história

Destaque caderno10

      


Com colaborações de artistas e pesquisadores de países africanos ou da diáspora, revista trata da arte que envolve memória, história e arquivo na criação de novas narrativas


O Caderno Sesc_Videobrasil é uma revista anual que desde 2005 transpõe para o meio impresso as possibilidades curatoriais contemporâneas. Cada uma de suas edições é criada por um editor convidado, que atua como um curador, construindo com autonomia um projeto editorial a partir das contribuições de artistas e teóricos, resultando em uma reflexão multifacetada, ao mesmo tempo plural e coesa, sobre um tema de relevo na atualidade. Para assinar a décima edição do Caderno foi convidada a espanhola-guineense residente em Londres Elvira Dyangani Ose, primeira curadora estrangeira responsável pela edição da publicação.

Elvira Dyangani Ose também é curadora da próxima edição da Bienal Internacional de Arte Contemporânea de Gotemburgo (2015), na Suécia, e ex-curadora de arte internacional da Tate Modern, em Londres (2011-2014). Para o Caderno Sesc_Videobrasil 10: usos da memória, ela reuniu sete ensaios e proposições artísticas de alguns dos mais importantes artistas e pesquisadores de países africanos ou da diáspora. Suas colaborações lidam com o contexto da massiva descolonização da África, ocorrida entre as décadas de 1950 e 1970, gerando reflexões sobre o arquivo e a história como foco da arte e da sua relação com a construção ou resgate da memória, a fim de reformular as representações históricas. “Muitos artistas contemporâneos contestam a pretensão de fidedignidade e totalidade da história, e fazem da arte um exercício de construção e/ou resgate da memória que almeja reformular a narrativa histórica. Os artistas e acadêmicos convidados para esta edição do Caderno Sesc_Videobrasil seguem essa corrente específica”, relata Elvira. Sua pesquisa se alinha e reforça a concepção de um Sul geopolítico com aporte cultural de potências particulares. “Para os colaboradores convidados para esta publicação, a arte é um álibi para reivindicar para a perspectiva individual a narrativa de uma memória coletiva”, escreve a editora no texto que apresenta e dá título ao Caderno, "Usos da memória". 

Na noite de lançamento da publicação, ocorrida em São Paulo no dia 05 de fevereiro de 2015, ela conversou com o artista Theo Eshetu, que contribuiu com o Caderno com uma proposição artística de narrativa fragmentada, criada a partir do registro em vídeo de sua viagem à Etiópia como homenagem a seu avô, que pertenceu à corte do imperador Haile Selassie (1892-1975). Em Sangue, da luz e semelhança, Eshetu parte de relatos pessoais que referenciam a história política, a cultura e a religiosidade etíopes. Trabalhando com arte e mídia desde 1982, Eshetu produz obras que revelam clara fascinação pela relação entre as culturas do mundo e pela natureza da imagem eletrônica. Sua obra já foi exposta na 54ª Bienal de Veneza (2011), na Tate Modern (Londres, Reino Unido), no Stedelijk Museum (Amsterdã, Holanda) e no New Museum (Nova York, Estados Unidos). Antes de se dedicar à produção artística em vídeo, na década de 1970 Eshetu foi fotógrafo reconhecido na cena do rock internacional, colaborando com artistas como David Bowie, Andy Warhol e The Velvet Underground.

A participação de Eshetu no Caderno Sesc_Videobrasil 10: usos da memória se une a de outros artistas e pesquisadores que se dedicam a produzir ou refletir sobre práticas artísticas que envolvem arquivo, memória e história em tentativas de ampliar, problematizar ou lançar novos significados sobre narrativas hegemônicas.

Outro destaque da publicação é a contribuição do The Otolith Group, duo formado por Anjalika Sagar e Kodwo Eshun, e indicado, em 2010, ao Turner Prize, maior prêmio britânico voltado às artes visuais. Explorando os legados e os potenciais das lutas pela libertação, o tricontinentalismo, os futuros especulativos e a ficção científica, The Otolith Group já exibiu seu trabalho na dOCUMENTA (13) (Kassel, Alemanha), na 29ª Bienal de São Paulo (Brasil), na Tate Britain e na Tate Modern (ambas em Londres, Reino Unido,) e no Stedelijk Museum (Amsterdã, Holanda). Em "Narciso de uniforme", o grupo analisa os selos postais lançados na África na década de 1960 e afirma que tais selos “ignoravam a instabilidade dos novos estados independentes da África”. A ampla pesquisa culminou na instalação Statecraft (2014), exibida recentemente no Bergen Kunsthall (Noruega), na qual o processo de descolonização podia ser visualizado como um calendário político criado a partir de selos postais.

A artista Maryam Jafri apresenta no Caderno os ensaios visuais Getty vs. Ghana, Corbis vs. Mozambique e Getty vs. Kenya vs. Corbis, todos de 2012, nos quais contrapõe fotografias históricas idênticas encontradas nos arquivos oficiais destes países e nos acervos de agências fotográficas comerciais. “A obra examina alguns dos mais poderosos bancos de imagens do Ocidente, denunciando a forma negligente como compilam dados e manipulam fotografias, mas, sobretudo, destacando as disputas sobre propriedade entre instituições públicas e empresas privadas”, escreve Elvira na publicação.

É também sobre um acervo fotográfico que trata "Um tempo bom", da artista e pesquisadora Emma Wolukau-Wanambwa: no trabalho, ela se debruça sobre os raros exemplares de uma série de fotografias das prisões do Protetorado de Uganda, produzida nos anos 1950 pelo governo britânico. Os arquivos haviam sido contrabandeados das colônias, prestes a se tornarem independentes, para o Reino Unido a fim de garantir que, após a independência, as ex-colônias não tivessem acesso a informações que pudessem constranger o governo do país ou motivar disputas judiciais. Nesta proposição, segundo Elvira, é aparente a “tensão que persiste na narrativa colonizador-colonizado”.

O Chimurenga é um coletivo pan-africano que se autodenomina “um objeto que muda conforme o projeto: uma revista impressa ocasional, um espaço de trabalho e uma plataforma para atividades editoriais”. Seus projetos atuais incluem o jornal trimestral Chronic; a Chimurenga Library, instalação eventual de projetos de pesquisa e arquivo on-line de iniciativas editoriais; e a Pan African Space Station, plataforma de música abrigada na internet. O Chimurenga colabora com o Caderno 10 com "FESTAC ’77: um projeto de pesquisa", mapeamento do legado do 2º Festival Negro Mundial de Arte e Cultura Africana realizado em Lagos, maior cidade da Nigéria, no ano de 1977.

Dois ensaios reflexivos ampliam as questões suscitadas pela editora e pelas colaborações artísticas presentes no Caderno 10. Em Arquivando para o esquecimento, Yaiza Hernández Velázquez, professora de estudos de exposição e de filosofia e teoria da arte na Central Saint Martins (Londres, Reino Unido), reflete sobre os motivos que fizeram do arquivo “uma questão para a arte contemporânea” na década de 1990. “Talvez seja melhor entendê-lo não como gênero, meio, tema ou precondição, mas como uma tentativa da obra de arte de escapar do lugar a-histórico para o qual havia sido tradicionalmente designada”, escreve. “O ato de arquivar não é mais o que costumava ser, tampouco a memória; aliás, nem mesmo o museu. Os arquivos antigos se erigiam como edifícios cuidadosamente protegidos, ligados à administração do poder. (...) Hoje, foram amplamente substituídos por uma massa de dados não processáveis em contínua expansão”.

Em "Uma direção diferente: escrevendo a história com a engenhosidade de uma obra de arte", a crítica, curadora, editora e pesquisadora Tracy Murinik, especializada na produção artística contemporânea do continente africano, entrevista Premesh Lalu, professor de história e diretor do Centro de Pesquisas em Humanidades da Universidade do Cabo Ocidental na África do Sul, sobre as relações entre arte e história naquele país e no continente africano. “Acho que muitos artistas estão, de fato, mostrando como é difícil estabelecer uma conexão entre história e arte. A disciplina de história da arte é uma disciplina que batalha muito no continente africano; batalha para manter algum grau de semelhança e coerência entre essas duas configurações. Isso é tão perturbador que me parece que temos, aqui, o potencial e a possibilidade de mudar de rumo; justamente ao questionar, de uma forma diferente, a relação entre história e arte”, sugere Lalu.

O caráter pan-africano desta edição e a internacionalidade das colaborações e dos participantes convidados expandem temas abordados nas recentes edições do Caderno Sesc_Videobrasil: o Caderno 9 (Geografias em movimento) com curadoria de Marie Ange Bordas, explorou a territorialização e as cartografias afetivas, enquanto que o Caderno 8  (Pertença), curado por Moacir dos Anjos, interrogou e ressignificou ideias de pertencimento, tratando do impasse entre a diluição de fronteiras de identidade nacional e a afirmação de especificidades culturais regionais. Questões fundamentais à Associação Cultural Videobrasil que, especialmente dedicada ao fomento, difusão e mapeamento da arte contemporânea do circuito geopolítico Sul, atua em prol de um campo artístico e cultural de regiões que precisam de novas formas de circulação e visibilidade de sua produção.

O Caderno Sesc_Videobrasil 10: usos da memória - publicação bilíngue (português/inglês) - tem edição de Elvira Dyangani Ose, coordenação editorial de Teté Martinho e projeto gráfico de Daniel Trench e Celso Longo.

 

Veja também:

:: Artigo | Em nome de outros amanhãs - Por Giselle Beiguelman

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