Sesc SP

postado em 01/04/2015

Em nome de outros amanhãs

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Cadernos Sesc_Videobrasil compõem uma coleção que mapeia a contemporaneidade a partir de eixos geopolíticos e territórios simbólicos que subvertem tradições editoriais e estéticas

Por Giselle Beiguelman*

 

Cadernos são instrumentos diretamente relacionados aos processos investigativos. De natureza híbrida, remetem ao imaginário afetivo e às anotações de cunho documental. Ao optar por esse formato e nomenclatura, o Videobrasil, que acaba de lançar seu 10º Caderno, dá a chave de leitura de sua proposta editorial. Em outras palavras, cadernos são “lugares em que esboços de ideias e impressões sobre o mundo são anotados e para onde fluem as inquietações que movem qualquer pessoa que faça deles uso”, como afirmou Moacir dos Anjos, curador do Caderno 08 – Pertença (2012).

Publicados desde 2005, os Cadernos não são substitutos dos catálogos do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, nem dos livros de exposição e de ensaios publicados por meio da parceria entre as Edições Sesc e a Associação Cultural Videobrasil. São dispositivos de leitura, registros de pesquisa, anotações teórico-reflexivas de curadores convidados que tensionam, aprofundam e alargam o posicionamento estético e político do Videobrasil.

Desde o seu primeiro número nota-se uma ênfase em apresentar visões historiográficas que apontem leituras alternativas às abordagens tradicionais sobre os temas colocados em discussão. A performance por exemplo, centro da edição inaugural, foi trabalhada em perspectiva temporal e geográfica bastante distintas das convencionais reflexões que têm os anos 1960/1970 e a Europa e os EUA como referência. Chamava a atenção para o contexto do modernismo brasileiro, situando a obra inaugural de Flavio de Carvalho e, editado por José Augusto Ribeiro, anunciava algumas características que se mantiveram nos nove anos e nove edições que se seguiram. Entre essas características, destacam-se o eixo geopolítico ancorado em um Sul expandido que engloba a América Latina, a África, a Oceania, o Oriente Médio, e alguns países da Europa e Ásia, e a ruptura com os clichês que interpretam a arte e cultura a partir das noções de novas e velhas mídias.

Bons exemplos desse viés são os números relacionados ao tema da mobilidade – âncoras dos Cadernos 02, 06 e 09, que trataram respectivamente de Mobilidade sustentabilidade, Turista/motorista e Geografias em movimento, com curadoria de Helio Hara, Fernando Oliva e Maria Ange Bordas. Ao invés de deterem-se sobre as tecnologias que produzem esses cenários e nos temas mais corriqueiros que cercam essas discussões – novos aplicativos, plataformas, interfaces – concentram-se sobre os agenciamentos e as cadeias de sentidos e conflitos que essas emergências trazem aos fluxos sociais.

Isso, contudo, é bastante distinto de fazer eco ao discurso conservador e “tecnofóbico” que teme as artes com capacidade de desenvolver-se para além dos circuitos institucionais consagrados e do mercado. Pelo contrário. A opção a que se adere nos Cadernos Sesc_Videobrasil, ao romper com o desgastado binômio arte e tecnologia e com o vazio conceitual das “novas” mídias, é de discutir os vetores da criação atual, suas linhas de força e as formas pelas quais questionam a contemporaneidade. Atenção particular, por isso, é sempre dada à maneira como os artistas vêm politizando os usos dos meios tecnológicos e criando novos circuitos estéticos a partir das redes de criação (sejam elas on-line ou off-line). Isso aparece com nitidez nos Cadernos 03 e 07, respectivamente Limite, Movimentação de imagem e Muita estranheza, com curadoria de Paula Alzugaray, e A Revista, cujo curador foi Rodrigo Moura, com design da artista Marilá Dardot.

No volume dedicado ao audiovisual – Caderno 03 – esse enfoque assume sua plenitude. De Peter Greenaway a Mario Peixoto, passando por Helio Oiticica e Cao Guimarães, um conjunto de autores, que inclui o próprio Greenaway, o artista norte-americano Robert Smithson (1948-73) e os críticos Jorge La Ferla (argentino), Lisette Lagnado e Esther Hamburger, radicalizam-se as abordagens possíveis sobre uma das questões centrais da atualidade: as imbricações entre o cinema, o vídeo, a tevê e a fotografia no contexto da imagem em movimento.

No outro volume, integralmente relacionado a um tema midiático – o Caderno 07 dedicado às revistas de arte e cultura brasileiras –, acentua-se um outro elemento que é comum a todos os Cadernos mas que nesse teve predominância: a quebra de fronteiras entre as linguagens visuais e textuais e a hibridação entre os contextos gráficos e artísticos. O remix e a sampleagem ganhavam foros de mídia impressa e dinâmicas próprias das artes plásticas, em uma edição que apesar de não pretender ser uma antologia de revistas, tornou-se antológica na história das revistas nacionais.

Há ainda que se destacar a variedade dos temas e sua relevância para a compreensão da atualidade, combinando campos de saber, como a arte, o design, a arquitetura e a política. O Caderno 04 – Ocupação do Espaço, com curadoria de Marcelo Rezende, explicita essas relações, evidenciando que a dimensão do território, hoje, é aquela que se mede não pelos limites das fronteiras físicas, mas pela capacidade dos poderes de criar compartimentos controlados.

A diversidade temática é tão importante, contudo, quanto a experimentação de formatos. Os cadernos exigem para sua leitura um olhar expandido que é trabalhado desde a concepção editorial. Nada mais esclarecedor que um e-mail de Lisette Lagnado, curadora do Caderno 05 – Clio, Pátria, sobre o estatuto contemporâneo do feminino, em que falava com uma das colaboradoras sobre as imagens da edição:

“Recebi seu pedido a respeito das imagens e entendo perfeitamente o que você e a artista estão solicitando. Ocorre, entretanto, que a concepção editorial e gráfica do presente caderno trabalha com várias publicações em um único objeto. Há uma leitura possível só com as páginas da direita e outra, irredutivelmente outra, com as páginas da esquerda. As imagens não são usadas no sentido de espelhar/ilustrar um texto; são dois discursos distintos, linguístico e iconográfico, na horizontal, e, igualmente, na vertical. A ideia é criar também tensões dentro da página aberta, entre história e ficção, feminino e masculino, vida e morte, pátria e colonização — enfim, mostrar que não há tradução que não acabe reduzindo a alteridade ao mesmo. O designer Rodrigo Cerviño fez o projeto pautado por essas necessidades.”

O coerente trabalho de coordenação editorial de Teté Martinho, de ponta a ponta, garante a invisível amarração entre os dez volumes até o momento publicados. Na sua pluralidade, o leitor encontra uma metodologia de corte, legendagem e chamadas de destaque que assegura ao conjunto o rigor necessário a uma coleção.

A coleção chega agora ao número 10, com um volume inteiramente dedicado à memória, combinando trabalhos de sete artistas e pesquisadores africanos. Com curadoria da espanhola-guineense Elvira Dyangani Ose, a primeira curadora estrangeira convidada, o Caderno apresenta autores/artistas/pesquisadores para quem o arquivo e a história não são meros subprodutos estetizantes de suas práticas. Ao contrário, são o meio em que se tecem as narrativas e se tensionam as forças simbólicas e políticas. Afinal, há uma correlação direta entre as estratégias de exclusão social e as dinâmicas de criação de invisibilidade. O sociólogo Jacques Rancière dedicou um de seus ensaios mais conhecidos a esse tema – A partilha do sensível – demonstrando como a conquista dos territórios simbólicos passa cada vez mais pela capacidade de tornar-se visível. Essa disputa pela visibilidade é um dos campos mais tensos da contemporaneidade e é a partir dela também que se compreende a contundência de obras como Getty vs. Ghana, Corbis vs. Mozambique, Getty vs. Kenya vs. Corbis (2012) em que a artista Maryam Jafri confronta as fotos de arquivos públicos de Gana, Moçambique e do Quênia e sua presença em megabancos de imagens corporativos, por onde passa boa parte da mediação do futuro de nossa memória. Ela nos mostra, por meio dos equívocos de créditos, identificações e apropriações grosseiras que encontra nas fotos comercializadas, o emergencial da discussão proposta por Rancière.

Em nome de outros amanhãs, esses primeiros dez Cadernos já se posicionaram. Que venha o número 100!

 


* Giselle Beiguelman é artista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) e autora de Nomadismos tecnológicos (Senac, 2011) e Futuros possíveis: arte, museus e arquivos digitais (Peirópolis/Edusp, 2014). 

 

Veja também:

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