Quando uma equipe de dois viaja da Quarta Parada, zona leste de São Paulo, para Salvador, cobrir a gravação de um grande corpo musical - você pode chamar de big band se quiser - qualquer relato sobre a obra, seja sua gravação ou sua escuta, será impregnado das impressões que esse deslocamento causou: A Saga da Travessia, de Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz nos transportou.
Na capital baiana, o caminho do aeroporto até o Campo Grande, onde fica o Teatro Castro Alves, utilizado nas gravações do disco, apresenta um apanhado de clichês citadinos entre obras de mobilidade urbana, resquícios de Copa do Mundo e da vida agitada de qualquer grande cidade do país: não é difícil pensar em Caetano Veloso, "aqui tudo parece / que era ainda construção / e já é ruína". E não é difícil pensar em "Fora de Ordem" neste Brasil, neste 2016. Salvador, porém, é mais profunda.
Com 50,8% da sua população de 3 milhões de habitantes apresentando ancestralidade africana, Salvador é considerada a cidade mais negra fora do continente africano. Esta história não pode ser contada sem mencionar o sangue africano arrancado de sua terra e sem tocar no racismo que se seguiu ao fato do Brasil ser um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão.
Ainda que a maioria da população soteropolitana possua ascendência africana, é recente o olhar despido da estupidez contra o negro. A reafricanização da Bahia, como cunhou Armando Almeida, em artigo que amarra a contracultura no mundo e onde o Brasil começou, só vai acontecer na década de 70. A internacionalização do capital e a industrialização da Bahia, contribuem para a emancipação de parcela da juventude negromestiça de Salvador (vide Camaçari, Petrobrás). O ponto de mudança, porém, se dá noutro terreno: em 1974, é criado o bloco afro Ilê Aiyê. Eminentemente negro - o Ilê não aceita brancos em seus quadros - o bloco opera uma mudança da postura fundada em modelos eurocêntricos para uma estética que valoriza as origens africanas e diaspóricas. Alteram-se hábitos e valores, alteram-se as práticas culturais e, quando isso ocorre, está posta uma nova forma de estar no mundo, de existir enquanto ser político: negro é lindo.
Partindo do universo percussivo baiano, termo que circunda a música de matriz africana na Bahia e dá nome ao método desenvolvido por Letieres para transmitir os desenhos rítmicos e claves da música africana para instrumentos como sax, flauta, baixo e bateria, relacionando a tradição oral e a tradição da escrita musical europeia - uma outra forma de aprender/ensinar música, portanto -, Leite se utiliza de um verdadeiro exército de músicos para por suas ideias, há muito elaboradas, em prática. "O conceito estético da Rumpilezz surgiu bem antes deste trabalho ser lançado, ainda na década de 1980 quando comecei a compor com estes elementos. Todo o repertório é autoral, composto por mim, exclusivamente para este formato tradicional do jazz".
De volta a São Paulo, a caminhada até a Quarta Parada foi ansiosa por querer ouvir o disco pronto. Depois da bolacha em mãos, a felicidade de contar que Letieres Leite e a Orkestra Rumpilezz levaram o evento que é a Saga da Travessia ao vivo para cidades como Jundiaí, Piracicaba, Bauru, finalmente aportando em São Paulo para a apoteose no Sesc Pompeia. Segue travessia, desbrava!