Longe do estereótipo de coadjuvante, papel fundamental da população negra na formação de São Paulo, nas relações sociais e no ativismo político é retratado em livro
Por Gustavo Ranieri*
Durante os três séculos de escravidão no Brasil, o negro acabou por ser retratado apenas no âmbito do cativeiro, excluindo das narrativas qualquer possibilidade de mostrá-lo também como sujeito capaz de estabelecer vínculos afetivos, sociais ou políticos. E mesmo após a Lei Áurea ser sancionada, em 1888, a posição das pessoas pretas permaneceu reduzida a um papel simbólico, coadjuvante, associado à criminalidade, além de praticamente desaparecer de livros e pesquisas. Claro que determinados – e poucos – cronistas, sociólogos e antropólogos continuaram interessados em escrever sobre o assunto após a abolição; contudo, eram pesquisas e histórias que, embora importantes, foram narradas por pessoas brancas e, em muitos casos, com visões unilaterais.
Justamente por isso que se tornam fundamentais os estudos contemporâneos de autores preocupados em estabelecer o resgate de verdades históricas. É o caso do professor e doutor em história Petrônio Domingues, que lança agora pelas Edições Sesc o livro Protagonismo negro em São Paulo: história e historiografia – ele é autor de outros títulos, como Uma história não contada: negro, racismo e branqueamento em São Paulo no pós-abolição e Experiências da emancipação: biografias, instituições e movimentos sociais no pós-abolição (1890-1980).
Na publicação, Domingues narra a experiência negra em São Paulo no decurso pós-abolicionista, quando as relações hierárquicas entre senhores e escravos deixa de existir. Assim, é investigada a “historiografia que cada vez mais se debruça sobre o protagonismo negro, a partir de sujeitos (homens e mulheres), fatos, cenários, agências, conexões, movimentos sociais, políticas raciais, fluxos culturais e narrativas identitárias”.
Trecho do livro
Confira a seguir uma entrevista com Petrônio Domingues sobre o trabalho que desenvolve em Protagonismo negro em São Paulo, assim como educação e multiculturalismo.
Em sua opinião, o mito da “democracia racial” continua a ser de alguma forma um entrave para a ampla compreensão do papel social real e do ativismo negro no Brasil pós-abolição da escravatura?
Durante décadas, o chamado “mito da democracia racial” sustentou a narrativa de que, no Brasil, não havia um problema racial ou que o problema racial aqui era irrelevante – episódico, excepcional, quando não relacionado a uma ação individual isolada –, mas não constituía um problema sistêmico, estrutural ou cultural, já que supostamente não fazia parte do nosso DNA, ou seja, da nossa formação histórica-nacional, da nossa identidade, do nosso ethos civilizacional. Como o problema racial era escamoteado, não constituía uma tarefa fácil sensibilizar a população brasileira para o problema do racismo, assim como convencer o negro da necessidade de se mobilizar e lutar por inserção social, igualdade de direitos e plena cidadania. No último quartel, entretanto, o “mito da democracia racial” foi colocado em xeque, na medida em que diversos segmentos da sociedade civil e do Estado reconheceram a existência do problema do racismo na sociedade brasileira. Com efeito, ainda é possível perceber resquício daquele mito incrustado no imaginário da população, alimentando o discurso de que o problema aqui é tão somente social e não racial. Por essa concepção, o racismo no Brasil não constituiria uma questão específica, devendo ser explicado (e solucionado) nos marcos da questão social.
A deficiência educacional no país, a qual se estende a pessoas de todas as cores, é um dos principais dificultadores da construção em cada indivíduo de uma visão ampla sobre a diversidade racial e o multiculturalismo?
De uma perspectiva iluminista, a educação e o saber escolar têm a capacidade de abrir a mente das pessoas, no sentido de ampliar seus horizontes e permitir que conheçam outros lugares, povos, histórias, civilizações e tradições culturais. Portanto, o nível educacional de uma nação influencia a formação de seus cidadãos no que se refere ao aprendizado dos valores democráticos, da cultura da tolerância, do respeito ao “outro” e do reconhecimento da diversidade étnico-cultural. Mas não devemos idealizar essa premissa. Afinal, nações consideradas cultas e com alto índice de desenvolvimento educacional, como Estados Unidos, França e Inglaterra, até hoje não conseguiram equacionar os desafios da alteridade e tampouco eliminar o problema da intolerância e do racismo.
Entrevista com Petrônio Domingues
Além da educação, que outras ações seriam necessárias para que a sociedade brasileira, independentemente da cor, compreenda – como diz o título de seu livro – o protagonismo negro não somente em São Paulo, mas em todo o país, indo além daquilo que foi fabricado e disseminado como sendo a realidade?
Na formação de São Paulo e do Brasil, como um todo, o negro não cumpriu um papel simbólico, nem coadjuvante. Antes assumiu protagonismo no processo de produção da riqueza material e no estabelecimento das bases da vida social, cultural e espiritual. Assim, afora a educação, considero que outros segmentos da sociedade civil organizada (mídia, sindicatos, ONGs, organizações religiosas, classe artística etc) e do Estado (governos federal, estaduais e municipais) precisam se sensibilizar e se mobilizar em torno de um projeto de nação democrática, inclusiva e multicultural, que reconheça o protagonismo negro na formação do nosso patrimônio de bens materiais e imateriais (história, identidade e mentalidade). Para tanto, faz-se necessária a adoção ou ampliação de políticas públicas e privadas; simultaneamente, implementar ou expandir programas universais (ou universalistas) e específicos.
São muitos os novos livros que buscam contar a história do negro no Brasil para além daquela narrada ao longo de tantas e tantas décadas por pessoas brancas e com visões unilaterais. Essas pesquisas, esse tipo de produção textual é um dos tipos de ativismo mais importante deste século em sua opinião?
As pesquisas acadêmicas de outrora, realizadas sobretudo por pessoas brancas, foram de fundamental importância para conhecermos capítulos importantes da história da população afro-brasileira, tanto do período da escravidão quanto do posterior, do pós-abolição, mas, por diversas motivações, algumas daquelas pesquisas, ainda que involuntariamente, contribuíram para reificar estereótipos, imagens e representações pouco abonadoras daquele segmento populacional. A partir de outros vieses, autores negros e brancos, da historiografia brasileira contemporânea, têm demonstrado como as pessoas afrodescendentes foram protagonistas do seu devir. Nos limites do possível, elas desenvolveram uma visão crítica, de sua vida e do mundo ao seu redor; forjaram projetos de liberdade e inserção social, negociaram identidades fluidas e descentradas, batalharam por reconhecimento, igualdade e cidadania. Suas experiências históricas – ambíguas, plurais e multifacetadas – ganham cada vez mais densidade e visibilidade.
*Gustavo Ranieri é escritor e jornalista.
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Lançamento do livro Protagonismo negro em São Paulo Bate-papo com o autor Petrônio Domingues, seguido de sessão de autógrafos. |
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