Livro adentra um dos temas mais instigantes – e importantes – da contemporaneidade: a questão da alteridade/identidade.
Desde 2002, o Sesc São Paulo tem a satisfação de compartilhar com o público brasileiro a sensível visão de mundo do psiquiatra italiano Mauro Maldonato, seja nas palestras e cursos que ele ministra, seja nas reflexões propostas em seus livros. Em Passagens de tempo, o autor partiu em busca de um humanismo incondicional, disposto a afirmar a superioridade do espírito humano para além de toda finitude cronológica. Já em Raízes errantes, ele procurou investigar as errâncias, as fronteiras e as incertezas que se relacionam com suas próprias origens mediterrâneas, em sentido estrito, e com a progênie do homem ocidental, em caráter mais amplo. Agora, é a vez de um importante título de Maldonato voltar ao mercado editorial brasileiro. Passando a editar com exclusividade as obras do autor no Brasil, as Edições Sesc São Paulo colocam à disposição do leitor de língua portuguesa uma nova edição de A subversão do ser: identidade, mundo, tempo e espaço: fenomenologia de uma mutação – uma viagem de exploração filosófica e cultural do que seja o ser humano: o mais instigante e intangível dos enigmas.
Fruto de uma densa pesquisa e da própria vivência do autor como médico psicopatologista, professor de psicologia e filósofo, o livro reúne textos nos quais as ciências, a filosofia e a literatura dialogam com inúmeros outros campos do saber. Com estilo vazado em sensível prosa poética, Maldonato tece valiosíssimas considerações sobre os conceitos de identidade, mundo, tempo e espaço, apresentando ao leitor no fim do percurso uma rica e caudalosa bibliografia sobre tais temas.
Em A subversão do ser, Mauro Maldonato propõe-se a falar de uma das questões filosóficas e psicológicas mais fascinantes e complexas sobre as quais se debruça o homem ocidental desde a aurora da civilização grega: o binômio identidade/alteridade. Conforme a leitura vai transcorrendo, o leitor começa a perceber que conceitos como “consciência”, “eu” e “subjetividade” são construções metafóricas com as quais a filosofia, as artes e as mais variadas ciências vêm designando há muito o ser humano a fim de procurarem compreender um ente cuja busca constante é atribuir sentido a si mesmo e ao outro.
Cultivando uma sensibilidade e uma erudição cada vez mais raras nos dias de hoje, Maldonato identifica nos versos do poeta português Fernando Pessoa a ideia moderna de decomposição da identidade: “Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. [...] Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada um, por uma suma de não eus sintetizados num eu postiço”.
Denso em suas reflexões, caudaloso nas articulações interdisciplinares que propõe, A subversão do ser está dividido em quatro partes. Na primeira delas – "Identidade e liberdade" – o autor procura retirar a noção de identidade do campo teórico e fazer suas manifestações profundas aflorarem, indo ao encontro do limite do sujeito: “Preocupo-me com a existência do outro por meio da minha própria existência. O encontro, esse encontro, o nosso encontro, é a aproximação de duas existências. Origina-se aqui o gesto entre nós, a proximidade anárquica de um encontro não mediado por nenhuma idealização, por nenhum princípio. (...) Apenas aquele que entre nós estiver disposto a apostar a própria vida, a cada vez e a cada novo encontro, pode encontrar outro que esteja disposto a apostar mais uma vez. Isso também pode significar nunca vencer, apenas pelo risco de apostar alguma coisa juntos. É nessa aposta que, como queria Pascal, tudo é decidido: o encontro com o outro e a minha responsabilidade para com ele. Nessas condições, sem as falsas inocências do nós, eu poderei continuar sendo eu, e o outro, ainda outro.”
Na segunda parte – "O não lugar do mundo" –, Maldonato discute a relação da psicopatologia clínica com a fenomenologia, defendendo a ideia de que uma maior impregnação fenomenológica tornaria talvez os psiquiatras menos temerosos e hesitantes ao se confrontarem com as prementes temáticas humanas e científicas da modernidade e da pós-modernidade, de quem, no fundo, segundo ele, a psiquiatria é filha: “Esse é o caminho indicado por Bruno Callieri, a aposta como conotação de risco do encontro com o outro, clínica de um acontecimento que é graça e mistério, espanto, tragédia e poesia, doença e incandescência”.
Na terceira parte – "Metamorfoses do tempo" – o autor se debruça sobre um dos temas que lhe são mais caros e que já lhe conferiu alguns importantes prêmios internacionais. A partir de uma cena do filme Wall Street, de Oliver Stone, Maldonato tece penetrantes considerações a respeito da evolução histórica da categoria do tempo, postulando que “os lugares sem lugar e os tempos sem tempo da contemporaneidade são a ordem do mundo, a moldura dentro da qual nossa existência flui".
Na última parte – "A parábola de Euclides e o nomos do espaço" – o autor trata do crescimento vertiginoso das grandes cidades ao redor do mundo e o relaciona de modo muito perspicaz ao problema da identidade. Para ele, “as metrópoles apresentam-se cada vez mais como espaços estratificados, que apagam e redefinem o território num processo ininterrupto de desmaterialização. Mas o que se desmaterializa não é a realidade. É aquele conceito residual que teimamos em chamar sujeito a não ter mais relação com o corpo, com sua sensorialidade, com os próprios objetos”.
Após reconhecer cada fio da sofisticada trama que sustenta o ensaísmo poético de A subversão do ser, o leitor há de viver a experiência da fraternidade silenciosa, mas pulsante que um bom livro é capaz de proporcionar, com suas informações surpreendentes, com seus argumentos inusitados. E há de compreender também o objetivo dessas “inquietas pesquisas”, imagem reiterada pelo autor no texto de apresentação da obra, que apontam em direção a uma “palavra aberta”, isto é, para uma tentativa de dizer as coisas pela desestabilização dos discursos, sejam eles competentes ou autorizados. É essa insubordinação que faz do indivíduo um ser errático, desviante, inconformado – um ser subversivo, enfim.
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