Geraldo de Barros: isso homenageia o artista em cuja obra pulsa a energia de uma criação contínua
Geraldo não era um pintor, fotógrafo ou designer,
ele era um artista que fazia pinturas, fotografias e móveis.
Fabiana de Barros
Fotógrafo, pintor, gravador, artista gráfico, designer de móveis e desenhista, Geraldo de Barros foi um dos artistas brasileiros mais ecléticos de sua geração. Nascido em 1923, na cidade de Xavantes, no Estado de São Paulo, ele se mudou aos 23 anos de idade para a capital paulista, onde começou a estudar desenho e pintura, frequentando o ateliê do pintor Clóvis Graciano e a Associação Paulista de Belas Artes. Em 1948, integrou o Grupo XV, no qual exercitou a pintura de influência expressionista. Dois anos antes, adquirira uma câmera Rolleiflex 1939 com a qual se interessou pelas possibilidades expressivas da fotografia, o que o levou a ingressar, em 1949, no Foto Cine Clube Bandeirantes. No mesmo ano, foi convidado por Pietro Maria Bardi a organizar o laboratório fotográfico do recém-inaugurado Museu de Arte de São Paulo. No MASP, um ano depois, expôs a série Fotoformas, cuja repercussão o fez ganhar uma bolsa para estudar na Europa, onde decidiu retomar suas pesquisas com o desenho e a pintura, deixando a fotografia de lado. De volta ao Brasil, em 1952, ele participou da criação do movimento Ruptura, marco inicial da arte concreta no Brasil. A aplicação de seus estudos da forma em novas estruturas o fez inaugurar em 1964 a loja de móveis Hobjeto, cujo trabalho lhe rendeu vários prêmios como designer. Apenas em 1979 o artista retomou o contato com a fotografia. Nos últimos anos de vida, já doente, ele reencontrou fotografias suas feitas nas décadas de 1940 e 1950 e passou a realizar a série Sobras, intervindo sobre as cópias com recortes para criar diversos tipos de colagens. Tal trabalho o manteve estimulado até sua morte, ocorrida em São Paulo, em abril de 1998.
Organizado por Fabiana de Barros, filha do artista, o livro Geraldo de Barros: isso, das Edições Sesc São Paulo, reúne pinturas, fotografias, serigrafias e outras produções retiradas de diversos arquivos, de onde pulsa a energia de uma criação contínua em que vários meios e suportes se cruzam.
O primeiro momento registrado no livro vai de 1944 a 1952, quando Geraldo desenvolveu uma pintura figurativa, expressionista e de observação, paralelamente às experimentações que fazia com a fotografia. Entre 1946 e 1951, ele pintava, desenhava, fotografava e fazia gravuras – tudo ao mesmo tempo. Era um gravurista-fotógrafo que riscava e recortava o negativo, produzindo imagens abstratas, construtivistas, extraídas da realidade. Porque era pintor, gravurista e desenhista, ele conseguia, por intermédio do manuseio da câmera, intervir nos negativos de onde resultaram fotografias memoráveis como as da série Fotoformas.
A segunda fase recobre o período de 1953 a 1977. Nela Geraldo participou do projeto social desenvolvido pela fábrica de móveis Unilabor, que funcionou na cidade de São Paulo de 1954 a 1967, segundo um modelo de autogestão operária. A experiência do artista seguia o ideal de integrar a arte na vida cotidiana, disseminada, sobretudo, por professores da escola alemã Bauhaus. Na Unilabor, Geraldo desenhou móveis com formas geométricas simples, poucos materiais (madeira, ferro e revestimentos) e um conjunto reduzido de peças modulares. Em 1964, ele idealizou sua própria fábrica de móveis, a Hobjeto, baseada em um sistema de vendas personalizado, segundo o qual o consumidor poderia adquirir móveis industrializados de acordo com suas próprias necessidades e desejos, e não segundo o padrão imposto pelo mercado.
O destaque da fase seguinte (1978-1985) é a série Jogo de dados, feita em homenagem ao poeta francês Stéphane Mallarmé. A obra é composta por sessenta e seis quadros de tamanhos variados, em pequenos e grandes formatos que, conforme indicações do próprio artista, nunca poderiam ser expostos separadamente – com exceção de um, intitulado "Pai de todos". Doada ao Instituto de Arte da Unicamp, Jogo de dados concentra a essência da trajetória biográfico-artística de Geraldo de Barros. Nela, ele joga dados com o acaso, com as isquemias que o fizeram perder a fala e parte dos movimentos, com seus próprios conceitos de arte e, sobretudo, com seu projeto de mundo utópico.
De 1986 a 1995, o artista desenvolveu peças em fórmica em branco e preto, prenunciando a fase de Sobras (1996-1998), sua última série fotográfica e seu derradeiro trabalho, com o qual ele voltou à fotografia, inventando uma nova técnica: recortar e remontar negativos de fotos corriqueiras de família.
Além da vastíssima iconografia realçada por um projeto gráfico de extraordinária beleza, Geraldo de Barros: isso reúne textos preciosos por meio dos quais o leitor poderá refletir também sobre a importância da obra do artista. O pesquisador colombiano Andrés Burbano assina o artigo “Foto(info)grafia: Geraldo de Barros e as novas mídias”, no qual apresenta a jornada criativa do artista, o modo como ele descobriu a fotografia e seu trabalho artístico e como, a certa altura de sua jornada, tomou decisões que o levariam a formas singulares de praticar a fotografia. Em “A linguagem secreta dos objetos: o desenho industrial de Geraldo de Barros”, o designer italiano Gabriele Oropallo analisa os trabalhos feitos para a Unilabor e a Hobjeto, relacionando design a compromisso social. O cineasta suíço Michel Favre relata em “O roteiro de Sobras”, a experiência de ter dirigido, em 1999, o documentário Geraldo de Barros: sobras em obras.
Deste mesmo documentário, inclusive, foram retiradas as entrevistas realizadas com Thomas Farkas, Hermelindo Fiaminghi, Augusto de Campos e Paulo Herkenhoff, publicadas no livro como um capítulo especial. Especial também é a autoapresentação do artista, “Geraldo por Geraldo”, na qual o criador, dono de um discurso articulado e envolvente, discorre sobre os conceitos e as práticas que nortearam sua trajetória. Sobre a arte concreta, por exemplo, a declaração de Geraldo não poderia soar mais poética:
um quadro que fosse seu próprio objeto
um quadro que fosse seu próprio objeto de ser
um quadro que fosse seu próprio objeto de ser
pintura
Em seu processo criativo, quando a obra atingia certo ponto, Geraldo costumava exclamar “Isso!” para expressar que a coisa estava indo muito bem. Geraldo de Barros: isso surge para que o leitor, além de (re)descobrir o artista, possa também se apossar do “é” da coisa.