Postado em 01/04/2016
Evaldo Mocarzel se formou em cinema na Universidade Federal Fluminense, mas foi se aventurar pelo jornalismo ainda jovem, ao escrever críticas de filmes. A aventura durou e o trouxe a São Paulo, onde se tornou editor do caderno de cultura do jornal O Estado de S. Paulo, o Caderno 2 – cargo que ocupou por oito anos, quando decidiu retomar suas grandes paixões: o cinema e, posteriormente, o teatro. Dirigiu documentários como À Margem da Imagem e Do Luto à Luta, além de importantes registros sobre várias das principais companhias de teatro da cidade de São Paulo. Hoje, diretor e professor de cinema da Universidade Estadual do Paraná, Evaldo também encontra na dramaturgia uma maneira de se expressar.
Você começou sua carreira no jornalismo, como foi migrar para o cinema?
O jornalismo me formou como uma escola de produção. Mas eu não era feliz. Ele me deu muita coisa, mas sempre quis fazer filmes. Na época do Caderno 2, ganhei um curso do Estadão e fui estudar cinema em Nova Iorque. Como era um curso prático, tinha de fazer algo, mas não sabia o que filmar. Então, um dia, estava na Washington Square e vi um turista japonês tirar uma foto de um morador de rua. Ele acordou o homem que ficou enlouquecido e correu atrás dele – pensei que fosse matá-lo. Para mim, aquela imagem foi muito forte e deu origem ao meu curta Pictures in the Park. Quando voltei ao Brasil, pensei que esse tema do roubo da imagem de quem está na exclusão mais absoluta seria bom para um documentário. Pesquisei as ruas de São Paulo e fiz o À Margem da Imagem. Filmei durante as férias e as folgas. No início, conseguia conciliar, mas acabei saindo do jornalismo e fui engolido pelos documentários.
Foi uma mudança mais natural do que radical?
Fazer jornalismo e fazer documentário são coisas diferentes. Por mais que em alguns momentos eles dialoguem, no primeiro, você tem a obrigatoriedade de ouvir todos os lados envolvidos, o que não acontece no segundo. O documentário é um recorte profundo sobre um tema, uma inquietação, sobre alguma coisa que te move. Ele trabalha com a problematização da representação do real – prato cheio para nossa sociedade do espetáculo, que tem obsessão pelo real. Ele traz isso desde sua protogênese. O cinema sempre dialogou sobre essa problematização, desde os irmãos Lumière, até o Neorrealismo Italiano, a Nouvelle Vague, o Cinema Novo, o Dogma 95 e o cinema contemporâneo.
O cinema, seja com documentários ou ficções, pode funcionar como plataforma de ativismo?
Eu não sei se o cinema muda alguma coisa, o que ele faz é semear novos olhares. Ele sensibiliza, levanta questões de forma humanizada. Mas não acho que a arte seja revolucionária. Nem (Bertold) Brecht achava isso. Ele queria mudar a cabeça das pessoas para que elas fizessem a revolução. Porque com a arte você desperta sensibilidades e cria novas possibilidades de atuação. Agora, a arte obviamente vai mimetizar o momento histórico que estamos vivendo. Eu, por exemplo, fiz filmes políticos, como À Margem do Concreto, em que utilizei imagens da própria mídia, que demoniza as lideranças do movimento sem-teto, e criei um bloco de reflexividade para que os sem-teto se defendessem dessa demonização. Isso é uma estratégia política. A arte em si não muda nada, o que muda são as pessoas.
Mas você acredita que os documentários tenham um papel social?
Acredito que o documentário seja mais uma questão de foro íntimo, porque ele nasce da gente, de uma inquietação, de uma vontade de conhecer o mundo. Durante a produção dos meus filmes, aprendi muito sobre população de rua, sobre sem-teto, sobre catadores etc. Mas, como disse, trata-se de uma semeadura de ideias. Talvez esse seja o papel social do audiovisual, não o de mudar, mas o de formar opiniões. O documentário age como um espaço de resistência, para uma informação que não é informação-mercadoria da mídia. Jean-Louis Comolli, teórico francês do qual gosto muito, escreve sobre o cinema em seu livro Ver e Poder. Ele defende a linguagem do documentário e a ideia de que ele é capaz de produzir fraturas na roteirização publicitária da mídia, criando brechas para trazer o real.
Como escolher temas e personagens para um documentário?
Não há uma receita, porque você lida com acasos e predestinações, como no meu caso. Para mim, o documentário é uma obra deliberadamente construída com uma janela aberta para o inesperado. E nesse processo, há a questão da alteridade. Eu não sou morador de rua, não sou parteira, não sou sem-terra – personagens dos meus filmes. É necessário também um exercício permanente de distanciamento, mesmo quando você está fazendo um filme performático ou pessoal, pois quando você se coloca no filme, já não é mais você mesmo. Você cria ali um personagem. O documentário é a cultura do outro que não é você e que nunca vai caber num filme, problematizando a situação do real no cinema.
O documentário Do Luto à Luta surgiu de uma inquietação pessoal?
Ele surgiu de uma necessidade. Fiz o documentário que eu gostaria de ter assistido na maternidade. Quando você vai para a maternidade, vai imbuído de todos os seus ideais de perfeição, mas chega lá e descobre que seu filho tem um tipo de má-formação genética. Eu quase enlouqueci. Joana nasceu com Síndrome de Down e com uma cardiopatia muito grave. Aos quatro meses, ela teve que ir para o centro cirúrgico reconstruir o coração. Foi difícil. Eu estava passando por um processo de rejeição. A cirurgia foi boa porque percebi que eu queria que ela sobrevivesse. Essa experiência foi o exorcismo da rejeição. Então, quis fazer um filme sobre isso, que fosse de utilidade pública, e tivesse como público-alvo os pais fragilizados, vulneráveis nas suas feridas narcísicas ao receberem uma notícia que ninguém quer. Queria levar informação de forma humanizada e construí uma narrativa que aborda um ciclo de vida: do bebê, da criança e do adolescente, ao casal e ao idoso com Down.
O cinema tem caráter de utilidade pública?
O poder do discurso audiovisual não pertence mais ao cineasta. Hoje, todo mundo se filma. Eu passei num bar esses dias e vi as pessoas discutindo o enquadramento de uma selfie. As pessoas se apropriaram do audiovisual: elas se filmam, colorizam suas fotos com diferentes aplicativos, postam no Youtube. Hoje, o digital é uma revolução de costumes. O cineasta tem que dialogar com essa nova concepção do real e o cinema tem que debater isso, afinal, o audiovisual é um instrumento didático, político.
Como você vê a produção audiovisual na era digital?
Eu sou cria da democratização do digital. O digital foi uma revolução no cinema, na estética, no cotidiano. Com ele, você tem a oportunidade de filmar bem e barato, consegue produzir muita coisa com qualidade e disponibilizar diretamente na internet. Ele é um oráculo contemporâneo em todos os níveis, para o bem e para o mal. Ele trouxe a possibilidade de minorias ou jovens das periferias produzirem uma autoetnografia. Ao contrário do cinema – uma arte cara, que sempre foi feita por realizadores de classe média e alta – o digital possibilita novos criadores, e os documentaristas têm de saber lidar com isso, eles têm de interagir com o momento histórico.
Nos últimos anos você passou a trabalhar com teatro. O que o levou a mergulhar nas artes cênicas?
O que me motivou foi minha vontade de aprender como dramaturgo e minha paixão pelo teatro. Cada vez mais, experimento a ficção nos documentários. No fundo, sou um ficcionista. Então, para desenvolver minha dramaturgia, fui atrás de algumas companhias, como Vertigem, Os Satyros, Grupo XIX. Sonho com a ampliação do espaço do teatro na televisão e no cinema. Fiz vários documentários processuais. Neles, acompanho todas as etapas de uma montagem, até um pouco depois da estreia, depois desconstruo todo o espetáculo a partir do processo. Esses filmes mais cênicos são difíceis de emplacar no circuito comercial. O mundo contemporâneo vive sobre a marca da hibridização de linguagens e eu procuro criar um diálogo entre as elas, sem que uma seja subserviente a outra.