Postado em 31/03/2016
Mais do que cenário, as cidades se revelam personagens em constante diálogo com a produção cinematográfica e os espectadores
Que tal refrescar-se na Fontana de Trevi (Roma, Itália), imortalizada em A Doce Vida (1960), de Federico Fellini? Ou conhecer Nova York por meio da lente de Woody Allen? Ou ainda refletir sobre a capital paulista, ao rever o filme São Paulo S/A, lançado em 1965 pelo cineasta Luís Sérgio Person? São inúmeras as passagens clássicas do audiovisual que ilustram e potencializam o estatuto da cidade no cinema, no qual ela deixa de ser apenas cenário para alçar a posição de personagem – por vezes de protagonista. Nessa nova condição, passa a ser reverenciada pelo modo que conduz o diálogo moderno entre o audiovisual, o espaço urbano e quem vive nele.
De acordo com a professora do Departamento de Cinema, Rádio e TV da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) Cecília Mello, o cinema se relaciona com a metrópole de duas formas. “Há a tendência de trazer a cidade para dentro dos estúdios, que são ambientes controlados nos quais é possível filmar sem a intervenção de toda sorte de variáveis. Isso ganhou força com a introdução do som nos filmes, já que se tornava difícil captar som direto em locações reais devido aos ruídos das cidades. Cineastas podiam desenvolver um conceito de cidade nos estúdios, e ao mesmo tempo criar cidades imaginadas”, explica. “Por outro lado, sempre existiu a filmagem em locações reais. A grande mudança de paradigma na história do cinema ocorre com o neorrealismo italiano, que colocou a cidade real no centro dos filmes.” Para a professora, o cinema sempre esteve em sintonia com o urbano, desde sua origem até a produção atual.
Usados como demarcadores da cena no cinema clássico, unidades de tempo, espaço e ação foram se redimensionando, abordadas e intercaladas de formas diferentes por diretores, tanto na ficção quanto no documentário, sendo fundamentais para a construção da história que se pretende compartilhar.
Ao pensar no ambiente de realização da cena, onde filmar e suas possibilidades, cabe ao diretor escolher seu foco.
Novos centros e olhares
No cinema brasileiro, essa temática se expandiu a outros centros além de São Paulo e Rio de Janeiro, como Recife (O Som ao Redor, Kleber Mendonça, 2013), Depois da Chuva (2015), dos cineastas baianos Cláudio Marques e Marília Hughes, e Branco Sai, Preto Fica (2014), no qual Adirley Queirós expõe os contrastes da capital do país.
Na opinião da doutora em cinema e pós-doutoranda na ECA-USP Lúcia Monteiro, é importante a “descentralização” promovida pela geração contemporânea de cineastas, que se identificam com seus locais de origem. “É fundamental na experiência do cinema, ou seja, na experiência de ser espectador de cinema, a oportunidade de se reconhecer na tela, e esse reconhecimento passa por reconhecer sua cidade, seu bairro, seu estilo de vida”, afirma. “O caso da Brasília de Adirley Queirós é talvez o mais interessante de todos: ele mostra uma Brasília do avesso, do ponto de vista da periferia, e isso já em A Cidade É uma Só (2012). A questão, aí, vai além da imagem da cidade, e chega às relações de classe e de poder que estão nas bases da urbe, nos fundamentos da cidade modernista.”
A especialista observa ainda que a Recife de O Som ao Redor começa filmada do alto, o que de cara evidencia uma separação, uma distância de classe que os espigões demarcam e que vai se aprofundar ao longo do filme. “Esses cineastas têm para suas cidades um olhar de crítica dura, com fundamento histórico e político, mas ao mesmo tempo um olhar de afeto”, acrescenta Lúcia, que pesquisou filmes feitos em cidades que depois desapareceram – é o caso de Still Life (Jia Zhang-ke, 2006), rodado na cidade chinesa de Fengjie, que foi inundada pela construção da represa das Três Gargantas. “O filme guarda assim as últimas imagens de um lugar que não existe mais. A cidade era uma cidade real e agora só existe no cinema”, declara.
Transformação e memória
As pesquisadoras concordam que a presença frequente de cidades nos filmes – como Nova York e Paris – contribui para que os cinéfilos projetem na memória uma cidade imaginária, uma impressão que se forma na mistura entre o real e o transposto para a tela. “Alguém que nunca foi a Paris pode ter a impressão de conhecer a cidade depois de ver e rever filmes. Um exemplo histórico é o entorno de Montparnasse, que aparece em cenas emblemáticas de Acossado (1960), de Jean-Luc Godard”, cita Lúcia.
Munidos da experiência e da imaginação, os cineastas decidem de qual forma irão transpor os conflitos urbanos para sua obra. O processo se evidencia pela construção e desconstrução da memória, numa velocidade acelerada e num fôlego apressado, retratando as transformações sociais, culturais e econômicas.
Cecília comenta a obra de Jia Zhang-ke, identificado como expoente da “geração urbana” do cinema chinês, que se tornou referência ao explorar esse tema em sua filmografia. “O diretor, que ficara ausente por alguns anos estudando cinema em Pequim, conta ter se chocado ao voltar para casa para visitar os pais, tendo assim decidido realizar seu primeiro filme, Xiao Wu (1997), nesse lugar em transformação. Seu gesto pode ser visto como um ato de resistência à perda da memória que advém justamente das transformações urbanas, já que a memória – tanto individual quanto coletiva – está também contida no espaço”, diz.
Filmes renovam o olhar do espectador sobre Berlim, Mumbai e Recife
Durante o mês de março, o Sesc Ipiranga recebeu a mostra Cidades no Cinema. Na programação, foram exibidos os filmes: Berlin is in Germany (Hannes Stohr, 2001), Lunchbox (Ritesh Batra, 2013) e O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2012). De acordo com o técnico de programação da unidade, Fernando Lima, a ideia foi provocar o espectador a lançar um olhar diferente sobre um determinado conjunto de filmes. “Pretendemos evidenciar ao público o processo de globalização que vivemos nas últimas décadas e como as culturas locais resistem, de forma consciente ou não, a tal processo”, diz.
De origens diferentes, os filmes escolhidos têm muito em comum. Para Fernando, as três cidades que servem de cenário para as obras – Berlim (Alemanha), Mumbai (Índia) e Recife (Brasil) – podem revelar ao espectador o estilo de vida que se impõe nas grandes metrópoles ao redor do mundo. “São histórias bem peculiares, com temperos locais, trazendo uma série de questões à tona, nas quais o ambiente urbano é ao mesmo tempo o ator que une e separa as pessoas, muitas vezes de forma surpreendente”, completa. Ainda no cinema, nos meses de abril e maio a unidade recebe uma mostra que estará incluída na programação do projeto “#ForadaModa”. Serão filmes escolhidos pelos estilistas envolvidos no projeto e que tiveram influência em suas formações e carreiras.