Postado em 08/03/2016
Por: CECILIA PRADA
As manifestações contra os atentados terroristas em Paris no ano passado fizeram ressoar os acordes inconfundíveis da Marselhesa por todos os cantos do mundo, em um protesto coordenado que visava lembrar as grandes glórias do espírito e da liberdade que caracterizaram a civilização francesa e deram à sua capital uma indiscutível hegemonia intelectual, até a Segunda Guerra Mundial. Tempo, portanto, para rememorar também alguns históricos aspectos do nosso Movimento Modernista da década de 1920 – que aconteceu sob a direta influência da França –, abordando alguns pontos da vida e da carreira de um de seus maiores expoentes: a pintora Tarsila do Amaral, que, neste ano de 2016, completaria 130 anos de vida.
Neta e filha de riquíssimos fazendeiros de café – a família chegou a ter 22 fazendas – Tarsila nasceu em 1º de setembro de 1886 em Capivari, no interior de São Paulo, e foi criada até os 12 anos nas propriedades rurais de São Bernardo e Santa Teresa do Alto, cujas casas senhoriais adotavam padrões de mobiliário e de decoração inteiramente importados da França, aos quais se somavam o próprio comportamento e os hábitos de um cotidiano europeu, refletido nas toaletes e acessórios, na culinária, nos divertimentos e na educação das crianças por preceptoras francesas que ensinavam sua língua aos petizes. Diria a pintora: “Mais tarde, essa França que viveu embrionária na minha imaginação infantil, desabrochou em realidade deslumbrante nos muitos anos que vivi em Paris”.
Apesar de todo esse refinamento, ou talvez até devido a ele, a patrícia paulista se manteria até o princípio da maturidade – aos 36 anos – quase totalmente inserida no conservadorismo tradicionalista de seu meio social, fechado, católico, moralista e intolerante, avesso às grandes mudanças que já se processavam nos países europeus e nos Estados Unidos, no pensamento, nos costumes, na política e nas artes. Como todas as mocinhas casadouras, foi aluna interna dos Colégios de Santana e Sion, e dos 16 aos 18 anos, do Sacre Coeur, em Barcelona – onde levou seis esforçados meses para produzir sua primeira “obra de arte”, uma cópia da chapada estampa do padroeiro da instituição.
No Brasil, o período era de estagnação cultural quase completa. Como diz o crítico Mário da Silva Brito: “Na literatura, éramos parnasianos na forma e no verso. Criaturas helênicas, de monóculo e fraque, bebendo chope e cachaça na parisiense Rua do Ouvidor”. Das artes plásticas, diria o crítico Lourival Gomes Machado que “o Brasil parecia ter emperrado e vegetava num academicismo amorfo, sem parecer ter tomado conhecimento sequer do impressionismo e da sistemática remodelação artística levada a efeito pelo pintor pós-impressionista francês Paul Cézanne e todos os que haviam vindo depois dele”.
Casada aos 18 anos com André Teixeira Pinto, primo de sua mãe, resolve Tarsila, poucos anos depois e para grande escândalo da família, separar-se dele. Um lampejo de rebeldia na mimada paulista quatrocentona. Mas, para casar-se novamente, em 1926, com Oswald de Andrade, esperaria com paciência a anulação eclesiástica da primeira união, impondo durante alguns anos ao amante e pretendente o rigor das aparências mantidas e dos disfarces ridículos, inclusive na correspondência.
Em 1913 – aos 27 anos, portanto – emerge da reclusão rural para a vida da capital. Hesita ainda entre a carreira de pintora e a de musicista, pois é exímia pianista. Manda construir na Rua Vitória, hoje centro velho da cidade de São Paulo, um ateliê espaçoso, sofisticado, que se tornaria ponto de reunião para artistas de várias tendências. Estudou escultura com o mestre sueco William Zadig e com o italiano Mantovani, limitando-se a fazer algumas cópias em barro ou em gesso. Para desenho e pintura, escolheu como mestre o velho acadêmico Pedro Alexandrino, conhecido como “o pintor dos tachos de cobre e naturezas-mortas”, permitindo até que ele usasse seu ateliê para dar cursos. Em 1918, produziu seu primeiro quadro a óleo, sob orientação do pintor alemão Georg Elpons, tido por “impressionista”.
Estrela do modernismo
Ninguém poderia, na época, sequer prever que alguns anos mais tarde aquela moça paulista, tímida e bastante convencional, se revelaria subitamente na Europa e no Brasil como a grande e ousada estrela do modernismo. Alimentava sonhos de estudar em Paris, mas parecia insistir em ignorar todos os aportes e mensagens de vanguarda que já despontavam entre nós, trazidas por alguns pioneiros como Anita Malfatti, Lasar Segall e Oswald de Andrade, em São Paulo; Di Cavalcanti e Ismael Nery, no Rio de Janeiro.
Anita Malfatti (1889-1964) é unanimemente reconhecida como “o estopim do movimento modernista” no Brasil, pela “escandalosa” exposição que realizou em 1917, em São Paulo. Devido a uma atrofia congênita do braço e da mão direita, usava a esquerda para pintar. Beneficiada pela generosidade de um tio materno, George Krug, foi estudar pintura no exterior, primeiro na Alemanha (1910-1914), depois nos Estados Unidos (1915-1916). Voltando da Europa, em 1914, realizou uma primeira exibição com quadros que já mostravam técnicas vanguardistas, mas não chegou a despertar a atenção dos críticos. Em 1917, sua segunda mostra, de 53 quadros – muitos dos quais ficaram famosos – provocou uma reação violenta do crítico Monteiro Lobato pelo expressionismo trágico de seus temas, classificado por ele como “másculo”, e como “arte amoral e teratológica, comparável aos desenhos dos internos dos manicômios”. O artigo de Lobato, “Paranoia ou Mistificação?” conclamava o público a rir e provocou acirrada polêmica com os poucos arautos da modernidade, em São Paulo – o principal deles, desde 1915, era o jornalista e escritor Oswald de Andrade, que poucos anos mais tarde assumiria papel relevante na vida de Tarsila, mas os dois só se conheceriam em 1922, apresentados por Anita.
As duas artistas tornaram-se amigas, pois Anita, após sua exposição, por falta de opções, resolvera também estudar desenho com Pedro Alexandrino, no ateliê da Rua Vitória. Mas Tarsila não aceitava bem seus quadros, que lhe “davam uma sensação desagradável”. Os destinos das duas pintoras se cruzaram de maneira curiosa, em 1917: Anita atingira precocemente o auge de sua criatividade mas, desorientada pela campanha sofrida, hesitava já nos propósitos vanguardistas e de certo modo iniciava sua acomodação social, sua decadência artística; ao passo que Tarsila despertava e caminhava na direção oposta, em uma trajetória ascendente, consciente, para a plena expressão de seu talento. Uma circunstância definida por Mário da Silva Brito, em artigo de 1969: “Pode-se dizer que a pintura de vanguarda, no Brasil, enquanto luta e polêmica, tem o seu ponto de partida numa mulher e o de chegada em outra. [...] Com Anita se arvora a bandeira dos conquistadores. Com Tarsila retira-se do campo a flâmula atrevida: o academicismo fora destruído, e agora outra seria a luta: seria a guerra civil dos vanguardistas”.
Ao receber de Paris um cartão-postal de seu grande amigo Souza Lima, que já estava lá desde 1919 com bolsa de estudos, “Aqui há ARTE de verdade”, Tarsila resolve partir, em junho de 1920, levando a filha, Dulce. Na Academia Julian desenha apenas nus de modelos vivos, o que a entedia e a faz passar à academia de Emile Bernard onde – segundo diz Aracy Amaral, sua melhor biógrafa, que dedicou pelo menos 30 anos de vida à sua obra – começou a trabalhar “com o pincel mais solto, as cores menos terrosas, emergindo não apenas os problemas de composição, como de profundidade e cor, e onde já se observa uma ligeira simplificação de formas em função da luz”.
Era apenas uma atenta observadora, entretanto, dos processos artísticos revolucionários – preparava-se para o encontro e o entrosamento com os modernistas de São Paulo, dos quais falava incessantemente Anita Malfatti em sua correspondência. É a época em que produz muitos retratos, inclusive dela própria, como Chapéu Azul, Retrato de Modelo e Figura (Portrait de Femme, mais tarde rebatizado como Passaporte), que lhe dá uma grande vitória ao ser aceita no Salon de la Societé des Artistes Français, de 1922.
Uma nova mulher
“Eu me tornei modernista no Brasil”, diria sempre Tarsila. Somente após a volta a São Paulo, em junho de 1922 (pós-Semana de Arte) é que Tarsila adere conscientemente ao movimento, formando em seu ateliê o “Grupo dos Cinco” com Anita, Mário e Oswald de Andrade e Menotti del Picchia, principal núcleo da vanguarda modernista. Causa impacto em todos pela sua beleza e pelo seu talento – é o momento da paixão, da sua realização plena como mulher, quando é apresentada a Oswald de Andrade, o início da relação que os transformaria, no dizer do amigo de Mário de Andrade, no casal “Tarsiwald”, líderes absolutos no decorrer da década, social e intelectualmente, no Brasil e em Paris.
Nos cinco meses passados no Brasil, pinta com entusiasmo vários quadros em que suas cores se firmam, abandonando a tranquilidade, a suavidade de seus trabalhos anteriores – em um repente fauvista começa a lançar a tinta diretamente sobre a tela, sem preocupações de desenhista (que sempre fora), deixando extravasar emoção intensa nas pinceladas nervosas, por exemplo, dos retratos dos amigos Oswald e Mário. Ao regressar à França, no final de 1922 – logo seguida por Oswald – era uma nova mulher, e uma nova artista, disposta, desta vez, a procurar em Paris o aperfeiçoamento com os grandes mestres do momento, Fernand Léger, André Lhote e Albert Gleizes. Encaminha-se primeiro para o cubismo, que considerava como “uma espécie de serviço militar da pintura”, uma fase necessária para a eclosão de sua expressividade, para em seguida amadurecer o estilo próprio de um “brasileirismo internacional” repleto de fantasia criadora.
De 1923 a 1929, o casal “Tarsiwald” alternou grandes temporadas na capital francesa, em um apartamento-ateliê alugado na Place de Clichy, onde recebiam em grande luxo tout Paris, com outras de regresso ao Brasil, no palacete de Tarsila ou em uma de suas fazendas. Tornaram-se famosas as reuniões e almoços que promoviam, “um encontro de gentes” que acolhia um grande número de artistas brasileiros – como Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Sérgio Milliet, Souza Lima, Heitor Villa-Lobos e Vicente do Rego Monteiro – e os habitués da alta sociedade, como dona Olívia Guedes Penteado, Paulo Prado e o embaixador Souza Dantas, colocando-os em contato com os maiores expoentes da vanguarda artística, músicos como Claude Debussy, Darius Milhaud e Éric Satie; poetas como Jean Cocteau e Blaise Cendrars; o escultor Constantin Brancusi, e um punhado de escritores como Giraudoux, John dos Passos, Jules Romain, Jules Supervielle.
Naqueles anos de efervescência pós-guerra dizia-se que “todos os intelectuais do mundo encontravam-se em Paris”. Décadas mais tarde, o argentino Julio Cortázar diria, ainda: “Paris é o destino obrigatório de todo escritor latino-americano”. A cultura europeia liquidava seus antigos valores e estava sedenta de “novos”, de exotismos – valorizavam-se a arte primitiva africana e a dança sensual de Josephine Baker, os bailados russos de Serguei Diaghilev, as gravuras japonesas, a literatura de viagens e os amores proibidos. Consciente disso, dizia Tarsila: “Sinto-me cada vez mais brasileira. Quero ser a pintora da minha terra. Quero, na arte, ser a caipirinha de São Bernardo, brincando com suas bonecas de mato, como no último quadro que estou pintando”. Em 1929, diria Candido Portinari, também em Paris: “Daqui fiquei vendo melhor a minha terra – fiquei vendo Brodowski como ela é [...] e quando voltar vou ver se consigo pintar a minha terra”. Oswald de Andrade também diria ter descoberto o Brasil na Place Clichy, reconhecendo, em entrevista de 1944, que “se alguma coisa eu trouxe das minhas viagens à Europa entre as duas guerras, foi o Brasil mesmo”. O compositor Villa-Lobos, ao chegar em Paris, em 1924, foi acerbamente criticado por Cocteau, em um almoço na casa de Tarsila, por pretender deslumbrar o meio musical com suas composições “debussystas”, e conclamado a valorizar os temas brasileiros. Reconhecendo a justeza da crítica, foi o que fez dali por diante, encontrando rapidamente a trilha de seu estrondoso e permanente sucesso.
Trancafiada em São Paulo
Foi em 1923 o ano da revelação da grande pintora. Entregou-se febrilmente ao trabalho e produz quadros como Retrato Azul (de Sérgio Milliet); Pont Neuf e paisagens de estilo cubista como Veneza, Rio de Janeiro. Sua consagração vem com La Nègre (A Negra), que pela primeira vez apresenta com destaque e originalidade esse tema tão brasileiro, em uma grande síntese de formas arrojadas e cores vibrantes. Com cinco anos de antecipação, Tarsila já entrava – como diria mais tarde Oswald –, na temática “antropofágica”, pois o mais famoso quadro da pintora, Abaporu, de 1928, seria somente o desenvolvimento do tema de La Nègre. O estilo de Tarsila, original e totalmente desenvolvido, amalgamava um colorido bem “brasileiro” (notáveis seus tons “caipiras”, rosas, verdes e azuis) a um geometrismo formal de origem cubista mas retrabalhado intimamente para expressar temas capazes de refletir paisagens subconscientes. Uma notável exposição de 35 quadros, bem preparada, realizada de julho a setembro de 1929 no Rio e em São Paulo, conquistou definitivamente para Tarsila o lugar que merecia em seu país, decorrente de seu sucesso anterior em Paris. Foi mesmo chamada, pelos companheiros “antropófagos”, de “o maior pintor do Brasil”, e sagrada unanimemente pela crítica e pelo público por ter sabido, no auge de sua formação artística parisiense, recuperar “o tempo perdido de sua memória”, o acervo de sua infância bem brasileira. Na síntese do próprio Oswald, imortalizada: “Caipirinha enfeitada por Poiret/ A fazenda paulista preguiça nos teus olhos”. Paul Poiret, um dos costureiros que vestiam Tarsila.
O ano de 1929 termina, porém, de maneira trágica: em outubro do mesmo ano, o crack da Bolsa de Nova York atinge a economia mundial e destrói no Brasil o império dos “barões do café”. Tarsila e Oswald enfrentam dificuldades econômicas que se agravam com a chegada de Getúlio Vargas ao poder. A Fazenda Santa Teresa do Alto ficaria duplamente hipotecada até 1937, sob administração do Banco do Estado. E o casal se separa, porque Oswald se apaixonara por uma jornalista de 19 anos, Patrícia Galvão (Pagu).
Mudando radicalmente de vida, Tarsila é obrigada a trabalhar para viver. Nomeada pelo governador de São Paulo, Júlio Prestes, diretora da Pinacoteca do Estado, é demitida poucos meses depois, com a vitória da revolução getulista. No dizer do jornalista Geraldo Ferraz, ela “atravessava uma fase-desolação, e a figura solitária se cobrira de uma leve melancolia lilás no equilíbrio intelectual da animação”. Mas seus quadros, e sua já firmada reputação como artista, correm mundo e tornam possível sua rápida recuperação – em 1931, conhece um jovem médico nordestino, Osório Cesar, comunista, dedicado ao estudo da expressão artística entre os alienados. Juntos empreendem uma viagem à União Soviética, com uma exposição individual de Tarsila em Moscou – onde a sua “arte ocidental decadente” não consegue despertar o entusiasmo dos críticos. Voltando a Paris com o companheiro, a pintora enfrentaria uma vida de pobre, em um modesto hotel, e no fim do ano ambos regressam ao Brasil.
O período de “arte social” de Tarsila é breve, bem como a ligação com Osório Cesar, embora alguns quadros dessa fase tenham ficado famosos, como Operários e Segunda Classe. Em 1932, tida como “comunista”, é presa, ficando encarcerada pelo período de um mês no Presídio Paulista. Em 1933, conhece o jovem jornalista Luís Martins e apesar da diferença de idade, ela com 47 anos e ele com 26, iniciam um relacionamento amoroso que duraria 18 anos. Viaja muito e é reconhecida em vários países latino-americanos onde expõe. Continua a pintar muito, participando de várias Bienais, e escreve artigos sobre artes plásticas para os jornais. Em seus últimos anos, o conjunto de sua obra é valorizado e revivido, com quadros adquiridos nos Estados Unidos e uma grande exposição retrospectiva organizada no Rio de Janeiro e em São Paulo, premiada com o Golfinho de Ouro. No catálogo, Haroldo de Campos dava sua chancela à “pintura estrutural de Tarsila”, que dizia ser “a ponta da meada para aqueles que repensam a pintura brasileira em termos de uma ‘picturalidade’ universal e nossa, assim como Oswald é a raiz para os que repensam nossa literatura em termos de escritura e de texto”. Tarsila do Amaral faleceu em São Paulo, em 17 de janeiro de 1973, aos 86 anos.