Postado em 08/03/2016
Por: HERBERT CARVALHO
“Este retrato de família/está um tanto empoeirado. Já não se vê no rosto do pai/quanto dinheiro ele ganhou. (...) Os parentes mortos e vivos. Já não distingo os que se foram dos que restaram. Percebo apenas a estranha ideia de família/viajando através da carne”. Assim como o retrato de que fala a poesia de Carlos Drummond de Andrade, a família patriarcal por ele evocada, que imperou no Brasil até a segunda metade do século passado, chegou aos dias de hoje completamente desfocada. Espinha dorsal da sociedade para os positivistas que proclamaram a República, ao ponto de Ruy Barbosa (1849-1923) afirmar que “a pátria é a família amplificada”, a estrutura organizada em torno do indiscutível poder do patriarca foi cedendo lugar, ao longo do tempo, a um modelo mais equilibrado de relacionamento entre o homem e a mulher e de diálogo entre pais e filhos.
Isto ocorreu na medida em que o país deixou de ter uma economia agrária para se industrializar e urbanizar, proporcionando, ao mesmo tempo, um aumento dos índices de escolaridade feminina e a inserção crescente da mulher no mercado de trabalho. Ruiu, desse modo, a divisão que estabelecia ao homem o papel de provedor do grupo familiar, enquanto à mulher cabia cuidar da casa e dos filhos. Economicamente ativa e integrada ao espaço público, além de sexualmente liberada pelos meios anticoncepcionais de que passou a dispor, a esposa deixou de ser a escrava doméstica que, até por disposição do Código Civil, tinha que se curvar diante da vontade do marido, o “chefe” da família.
Embora o desquite existisse desde 1916, a mulher separada judicialmente foi objeto de discriminação e preconceito, por não poder constituir legalmente uma nova família, o que só se tornou possível com a introdução do divórcio, na década de 1970. Requerido na maioria dos casos pelas mulheres, o divórcio provocou irreversíveis mudanças na estrutura familiar, tornando comum a família monoparental, em que os filhos vivem apenas com o pai ou com a mãe. “O número de mulheres sozinhas com filhos para criar aumentou, assim como a gravidez não programada entre as adolescentes. Casar, ter filhos e se separar leva cada vez menos tempo”, afirma a demógrafa Elza Berquó. Mais recentemente, já no século 21, duas alterações legais aprovadas pelo Congresso Nacional e mais uma fruto do “ativismo judicial” – conforme a definição do jurista Ives Gandra da Silva Martins – ampliaram a discussão sobre o tema.
Em 2010, diante de inúmeras reclamações perante as Varas de Família, a Lei da Alienação Parental estipulou punições para quem, detentor da guarda da criança, cause prejuízo à manutenção dos vínculos do menor com o outro genitor. Em 2014, também a Guarda Compartilhada, instituída em 2008, foi objeto de nova legislação para ampliar sua aplicação, modificando o arcaico “pátrio poder” em benefício da manutenção da coparentalidade, prevista na Constituição, para o exercício de autoridade sobre os filhos. Finalmente, em decisão unânime, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, em 2011, a união homoafetiva, posicionamento reforçado em 2013 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que proibiu os cartórios de recusar a realização do casamento civil para pessoas do mesmo sexo. E, em 2015, a ministra Cármen Lúcia, vice-presidente do STF, autorizou a adoção de filhos pelos casais assim constituídos.
Estava consagrado o que a psicanalista e escritora Maria Rita Kehl chama de família tentacular, formada por separações e novas uniões. “O núcleo central da família contemporânea foi implodido, atravessado pelo contato íntimo com adultos, adolescentes e crianças vindas de outras famílias. Na confusa árvore genealógica da família tentacular, irmãos não consanguíneos convivem com ‘padrastos’ ou ‘madrastas’, às vezes já de uma segunda ou terceira união de um de seus pais, acumulando vínculos profundos com pessoas que não fazem parte do núcleo original de suas vidas”, explica a autora no ensaio Em Defesa da Família Tentacular.
Litígio familiar
No momento, porém, em que uma comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 6.583/13, conhecido como Estatuto da Família, a definição de entidade familiar pode voltar a ser apenas “união entre um homem e uma mulher”, ou ainda “comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”. Estas e outras polêmicas que envolvem também a alienação parental e a guarda compartilhada são analisadas a seguir por Problemas Brasileiros.
No livro autobiográfico Código da Vida o jurista Saulo Ramos, ministro da Justiça no governo de José Sarney, relata um “fantástico litígio judicial de uma família”. É um caso real, mas parece enredo de filme de suspense: uma senhora acusa o ex-marido de praticar atos obscenos com os próprios filhos e propõe contra ele ação judicial para extinguir seu direito de ver as crianças. O juiz concede medida liminar e o proíbe de ter qualquer contato com os menores. Desesperado, o pai procura um advogado, que se recusa a defendê-lo. A prova é cruel: uma gravação. Os filhos contam atos terríveis e imorais que teriam sido forçados a praticar. Ameaçando suicidar-se, o cliente pede socorro no escritório de Ramos, que consegue desvendar um caso extremo no qual as crianças haviam sido vítimas da Síndrome de Alienação Parental, conforme a definição do psiquiatra norte-americano Richard Garner: tudo não passara de invenção da mãe, que induzira os filhos a contar mentiras sobre o pai. Frequente em casos de separação conflituosa, quando há disputa de guarda ou pela regulamentação de visitas, a alienação parental deriva de patologias mentais graves, como a que se verifica quando um genitor busca destruir o vínculo da criança com o outro e a manipula afetivamente por motivos escusos.
Associações de Pais e Mães Separados (Apases), presentes em diversos estados brasileiros, estimam que dos 20 milhões de menores afetados por separações, nada menos do que 16 milhões sofram alienação parental em algum grau. Dado o elevado índice de guardas de menores concedidas às mães (que chegou a 98% no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE), são elas que, muitas vezes movidas por ressentimentos causados pelo fim da relação conjugal, mais encarnam a figura do alienador. Mas este pode ser também o pai ou parentes (avós, familiares, padrasto/madrasta) e mesmo amigos que atuem para envolver menores na rejeição a um dos genitores. Mobilizados nas Apases, os pais que por esta razão sofreram abalos nas relações com seus filhos foram – por meio de livros, cartilhas, eventos e denúncias na mídia – os responsáveis pela rapidez na tramitação do projeto que resultou na Lei 12.318/10. “Foram apenas dois anos, o que reflete a urgência que a sociedade tinha em relação a um problema que atingia muita gente. No próprio Poder Judiciário, muitos juízes e promotores viviam situações de alienação parental”, diz a doutora Maria Cristina Barros Maciel Pellini, psicóloga integrante da Comissão de Ética do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP).
As principais vítimas da síndrome, entretanto, são as crianças, de acordo com David de Oliveira Gomes Filho, juiz titular da 1ª Vara de Família de Campo Grande (MS): “Elas herdam os sentimentos negativos da mãe ou do pai separado. Tendem a se reprimir, a se esconder, perdem o foco na escola, se revoltam. Passam a acreditar que o pai (ou mãe) é realmente o vilão que o guardião pintou. Finalmente, ao crescerem, percebem que foram vítimas da alienação e se voltam contra o alienador. O feitiço vira contra o feiticeiro”. Segundo a psicóloga jurídica Denise Maria Perissini da Silva, autora de livros e artigos sobre Psicologia Jurídica de Família, a criança alienada aprende a mentir compulsivamente, a exprimir emoções falsas e a acusar levianamente as pessoas. “Porém, quando ela percebe ter vivenciado uma farsa que interessava ao alienador, a situação se inverte. Ao final, a criança passa anos odiando um dos pais e depois mais anos odiando o outro”.
Poder e dever
Para tentar assegurar o direito dos filhos de convivência equitativa com ambos os pais, independente de quem detenha a guarda do menor, a lei prevê que o juiz, ao detectar indícios de ocorrência de alienação parental, deverá determinar perícia psicológica ou psicossocial por profissional ou equipe multiprofissional, formada por psicólogos e assistentes sociais. São exemplos de conduta de alienação parental, de acordo com a lei: campanha de desqualificação de um dos genitores; impedir o não guardião de obter informações médicas e escolares dos filhos e criar obstáculos para sua convivência com as crianças; apresentar falsa denúncia ou mudar o domicílio para local distante, sem justificativa.
As penas variam de advertência, multa e ampliação de convivência da criança com o genitor afastado até a perda da guarda ou mesmo da autoridade parental. São sanções mais de caráter pedagógico do que punitivo e se aplicam também aos avós e outros eventuais responsáveis pela criação dos menores. Em cinco anos de vigência, a Lei da Alienação Parental tem dado resultados, de acordo com Maria Cristina Pellini. “Houve uma conscientização de que isso atinge a criança e toda a família, com graves consequências. Percebemos uma melhora, inclusive, pela queda na quantidade de reclamações ao Conselho de Ética do CRP-SP, que antes eram inúmeras, porque os psicólogos ficavam no meio do fogo cruzado entre o pai e a mãe”.
Incluída no Código Civil em 2008, e contemplada com uma lei específica em 2014, a guarda compartilhada também tem contribuído para reduzir os sofrimentos que implicam para a criança ser levada, repentinamente, a se separar de alguém tão importante para ela, como o pai, ou a mãe. Estruturado na Inglaterra no final do século passado e já adotado por França, Canadá, Estados Unidos, Argentina e Uruguai, esse procedimento significa “a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns”.
Do ponto de vista jurídico, a advogada Laura Affonso da Costa Levy explica que a tradicional expressão “pátrio poder” foi cedendo lugar a novas dominações, como “poder parental”, do marido e da mulher, igualados em direitos e deveres pelo artigo 226 da Constituição de 1988. “Este poder deve ser exercido, única e exclusivamente, no superior interesse do menor. Por isso, deixa de ser um poder, para se tornar um dever, uma responsabilidade”, explica a especialista em Direito de Família e Sucessões.
Sob o aspecto comportamental, a psicóloga judiciária Juliana dos Santos Ruiz, que atua no Fórum da Lapa, em São Paulo, diz que muitos pais separados passaram a pedir mais espaço na relação com os filhos, além das habituais visitas em finais de semana. “Hoje em dia a figura do pai que assiste ao parto, acorda de madrugada para ajudar a cuidar do bebê, troca fraldas e leva os filhos à escola tornou-se relativamente comum. Da mesma forma, na separação, eles deixaram de aceitar a decisão de confiar os filhos apenas à mãe que, por sua vez, também trabalha fora, tem atividades sociais e profissionais”.
Ela adverte, porém, que a guarda compartilhada não deve ser confundida com guarda alternada, regime no qual a guarda física e legal é atribuída alternadamente a cada um dos pais, com alternância de moradia da criança em períodos que podem ser de dias, semanas, meses ou anos. “Na infância alternar moradia e trocar de escola com frequência é muito prejudicial para as crianças. Filho não é joguete. A guarda compartilhada não implica em alternância de residência, nem tampouco em uma divisão rígida do tempo de convivência da criança entre os pais”, argumenta Juliana. A psicóloga ressalta que é preciso encontrar o melhor regime de acordo com as características de cada família. “Nos casos altamente litigiosos é impossível compartilhar a guarda”.
A guarda compartilhada ainda apresenta, entretanto, baixo nível de adesão no país. Nos últimos 30 anos, evoluiu de 3,5% dos casos, em 1984, para 7,5%, em 2014, de acordo com as Estatísticas do Registro Civil do IBGE. Esse quadro deve mudar nos próximos levantamentos, pois a lei que a tornou regra (e não mais apenas uma opção) foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff em dezembro de 2014 e ainda não é de amplo conhecimento por parte dos juízes.
União homoafetiva
O mesmo não ocorre em relação às uniões homoafetivas, que cresceram 31,2% de 2013 para 2014. Somaram 1.153 no período. A maior concentração é no Sudeste (60,7%). Representam 0,4% do total de 1,1 milhão de casamentos no Brasil em 2014. O censo de 2010 revelou que, até aquele ano, existiam 60 mil famílias formadas por dois homens ou duas mulheres. Se o Estatuto da Família proposto pelo deputado Anderson Ferreira (PR-PE) virar lei, os homossexuais que constituíram família poderão perder direitos hoje garantidos pelas decisões da Justiça, como herança, adoção de crianças, inclusão do cônjuge em benefícios previdenciários ou planos de saúde e a possibilidade de somar rendimentos na análise de financiamentos.
O relatório aprovado na Comissão Especial, de autoria do deputado Diego Garcia (PHS-PR), sustenta que os deveres jurídicos familiares nada têm a ver com afeto e que “a lei não chancela comportamentos decorrentes de afetos contrários aos bons costumes”. O texto causou revolta na comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) ao considerar que “nem a pedofilia ou a zoofilia são protegidas pela lei, apesar de decorrerem de movimentos da sensibilidade que satisfazem a alguém”.
“É criminoso, porque trata de forma preconceituosa e vexatória todas as famílias constituídas por outra razão que não seja a de procriar”, afirma Luís Fernando de Oliveira Saraiva, pesquisador do Laboratório de Estudos da Família, Relação de Gênero e Sexualidade da Universidade de São Paulo (Lefam-USP) e conselheiro do CRP-SP, entidade que organizou um “Manifesto em Defesa da Família Brasileira, pelo arquivamento imediato do PL 6.583/13”. Saraiva integra ainda o movimento nacional Por Todas as Famílias, que com esse título exibe uma página no Facebook, destinada a organizar a luta contra o projeto.
“Além dos homossexuais, os parlamentares acabaram por ameaçar direitos de milhões de outros brasileiros que não possuem famílias no formato tradicional, homem e mulher”, diz o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família. “Como ficam as famílias de arranjos anaparentais, quando não há relação direta de descendência, como tios que cuidam de sobrinhos ou irmãos que vivem juntos?”, indaga Pereira. “Podem ser excluídos 25% da população”, acrescenta.
A possibilidade de lesão aos direitos humanos também preocupa a Organização das Nações Unidas (ONU). “Negar a existência de composições familiares diversas, para além de violar os tratados internacionais, representa uma involução legislativa”, afirma em nota o Sistema ONU no Brasil, que destacou positivamente a decisão do STF de reconhecer a união contínua, pública e duradoura entre duas pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, estendendo a esta as mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva. “Decisões como esta se alinham à jurisprudência de órgãos e tratados das Nações Unidas, que têm reiterado serem a orientação sexual e a identidade de gênero motivos de discriminação proibidos pelo Direito Internacional”, completa o comunicado da ONU.
Na vertente oposta, o jurista Ives Gandra da Silva Martins diz que o projeto aprovado pela Comissão Especial, a ser apreciado pelo plenário da Câmara dos Deputados, “repõe o conceito constitucional de família como idealizaram os constituintes de 1988”. Para ele, os integrantes do STF transformaram-se em “constituinte positivo”, ao admitir “a família incapaz de gerar prole”. Uma tese encampada pelo relator Diego Garcia, que fala em “usurpação” do Poder Judiciário da competência do Congresso Nacional de analisar o tema.
Nessa perspectiva, o deputado Jean Wyllys (Psol-RJ), único homossexual assumido entre seus pares, acha que as conquistas LGBT obtidas no Judiciário precisam ser garantidas por meio de uma lei. “Temos apenas a união estável, equivalente a uma cidadania de segunda categoria. O importante é aprovar o casamento igualitário.”
O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), por sua vez, apresentou o PL 3.369/15, que intitulou de Estatuto das Famílias do Século XXI e que reconhece formalmente “qualquer forma digna e amorosa de reunião familiar, independentemente de critérios de gênero, orientação sexual, consanguinidade, religiosidade, raça ou qualquer outro que possa obstruir a legítima vontade de pessoas que queiram constituir-se enquanto família”. Uma definição que lembra a do poeta revolucionário russo Vladimir Mayakovsky, no poema Amor: “Atenta se volte a terra inteira/para viver livre dos nichos das casas/para que doravante a família seja o pai, pelo menos o Universo, a mãe, pelo menos a Terra”.