Postado em 08/03/2016
Por: MILU LEITE
Dizem que contar carneirinhos ajuda, mas é bem mais complicado pegar no sono quando, por ventura, ele vem acompanhado de lembretes sobre contas atrasadas, tarefas não cumpridas, decisões que precisam ser urgentemente tomadas. Os insones costumam sofrer desse mal. Basta repousar a cabeça no travesseiro para logo surgir a necessidade intransponível de resolver os problemas de toda uma vida justamente no momento em que se deveria dormir.
Todo mundo já teve insônia pelo menos uma vez e sabe que na manhã seguinte, por conta de uma noite mal dormida, ela cobra seu preço. Mau humor, cansaço, dificuldade para raciocinar e tomar decisões serão os companheiros do insone até chegar novamente a hora de se recolher e ele conseguir finalmente dormir. A maioria das pessoas consegue fazer isso; 20% delas, todavia, não pregam os olhos. Sofrem de insônia crônica: por mais de três dias numa semana, num período superior a três meses, elas têm dificuldade de iniciar ou manter o sono, ou, então, despertam precocemente, comprometendo a atividade diurna.
De acordo com a neurologista Andrea Bacelar, da Associação Brasileira do Sono (ABS), essa dificuldade para dormir é classificada de duas formas: a insônia doença, chamada de Transtorno da Insônia, e a insônia comórbida. No primeiro caso, a doença se encerra em si, ou seja, não é explicada por nenhum outro fator. Já a comórbida, por sua vez, é associada a outras situações, que podem ser de caráter médico, psiquiátrico ou ambiental. “As principais condições médicas que podem ter a insônia como sintoma são as doenças mentais ou neurológicas (depressão, Parkinson e demências) e as que acarretam quadros dolorosos (reumáticas e oncológicas). Ainda há na lista substâncias e medicamentos estimulantes e o uso crônico de tranquilizantes”, esclarece a neurologista. Hábitos inadequados de sono também colaboram para o surgimento da insonolência.
São apontados como principais fatores o indivíduo ser do sexo feminino, sem falar do envelhecimento (especialmente no caso de aposentados ou inativos e viúvos, de idosos confinados em casa ou instituições), doenças clínicas, ansiedade, distúrbios respiratórios e alterações no ciclo de vigília-sono (trabalhado por turnos). Todas, de algum modo e por razões diversas, podem afetar diretamente o acúmulo de um hormônio fundamental para uma boa noite de sono: a adenosina.
Não é só uma boa reserva de adenosina, entretanto, que conta. Outros elementos são necessários, em maior ou menor quantidade, para o simples ato de dormir. Um colchão confortável e um quarto escuro com temperatura adequada ajudam, mas, certamente, serão insuficientes se a pessoa que procura dormir está ansiosa, temerosa, estressada ou preocupada em demasia. Também vai perder a batalha se tiver que se defrontar com uma barriga faminta, um pulmão intoxicado ou um fígado alcoolizado. São fatores que contribuem para que se estabeleça a insônia. E em algumas ocasiões, ela pode estar associada a outras patologias como hérnias de disco e outras doenças da coluna vertebral.
Sendo assim tão complexos, os detonadores da insônia devem ser combatidos com tratamento que considere essa diversidade de fatores. E tudo começa, portanto, com uma coleta de informações pelo médico, a respeito do doente e de sua doença. Primeiramente, é preciso detectar se a insônia é episódica ou crônica (Transtorno de Insônia). O III Consenso Brasileiro de Insônia, de 2013, traz as diretrizes para o diagnóstico e terapias para o enfrentamento da doença. É nele que o médico deve se apoiar para decidir se o melhor a fazer é lançar mão de medicamento alopático ou fitoterápico, ou, simplesmente, recomendar a terapia cognitivo-comportamental para insônia (TCC-I).
Estresse, o vilão
Perguntas que englobam as queixas presentes na definição da insônia segundo a Classificação Internacional dos Transtornos de Sono (International Classification of Sleep Disorders), se elas se relacionam com a dificuldade de iniciar e manter o sono e o despertar precoce, além de uma avaliação sobre a qualidade do sono (se é ou não reparador), são feitas com o objetivo de jogar mais luzes sobre o diagnóstico da doença a fim de que ela seja melhor explicada. Tem a intenção, ainda, de averiguar se, por acaso, seus sintomas não estariam ocorrendo, exclusivamente, durante o curso de outros problemas também ligados ao sono, tais como a narcolepsia (sonolência diurna), os transtornos respiratórios, o ritmo circadiano vigília-sono e a parassonia (distúrbio caracterizado por movimentos anormais durante o sono). O questionamento poderia esclarecer, também, se a falta de sono se deve a efeitos fisiológicos de uma substância (abuso de drogas e medicamentos), ou a algum transtorno mental coexistente.
Sabe-se que alguns tipos de comportamento estão associados à insônia. Não ter hora para dormir, usar o quarto como local de trabalho, dormir com outras pessoas no mesmo ambiente ou com a presença de um animal de estimação, comer muito ou fazer exercícios antes de deitar-se, ingerir café ou outra bebida que contenha cafeína menos de quatro horas antes de dormir, tirar cochilos durante o dia, não ter momentos de exposição ao sol, e por aí vai. Somem-se a estes, os fatores climáticos, as mudanças de fuso horário, os ciclos menstruais e as fases do climatério. Diante de tantas influências, parece até que dormir de simples não tem nada.
Andrea enfatiza que grande parte das pesquisas recentes aponta como melhor tratamento para insônia a TCC-I. É uma terapia que tem por objetivo incorporar hábitos adequados à promoção do sono, eliminando ou substituindo comportamentos que podem prejudicá-lo, encurtando o tempo na cama, desviando a atenção do paciente daquilo que o impede de dormir. Enfim, lidar com o problema de modo que ele não pareça uma catástrofe, substituindo conceitos e hábitos disfuncionais por outros mais apropriados. Fazer ioga, meditação e escrever todas as preocupações e compromissos que venham à mente próximos da hora de dormir, também são técnicas que ajudam a ter um sono reparador. “Há novos medicamentos recomendados para quem tem insônia, porém eles ainda não são disponibilizados no Brasil”, acrescenta a médica da ABS.
Já a neurologista do Instituto do Sono de São Paulo, Anna Karla Smith, explica que o tratamento da insônia pode incluir o uso de medicamentos indutores do sono. E cita os não-benzodiazepínicos Zolpidem e Zolpiclone, e os antidepressivos Amitriptilina, Nortriptilina, Trazondone e Mirtazapina. “As comorbidades devem ser tratadas com o emprego de outros antidepressivos ansiolíticos”, afirma. E concorda com Andrea ao concluir que é importante associar o tratamento farmacológico com a terapia cognitivo-comportamental e outras técnicas, como meditação, exercícios físicos, relaxamento, biofeedback (terapia de conscientização dos vários processos orgânicos a fim de obter um maior controle sobre eles) etc.
É verdade que a maior parte dessas complicações é criada pela mente humana, de modo direto ou indireto: ritmo de vida, uso desenfreado de aparatos tecnológicos, de drogas, relações sociais desequilibradas, violência. De acordo com Andrea, no mundo atual as pessoas reduziram o sono em média duas horas por dia por causa de estresse. Ela lembra que, hoje, ele é de longe o grande vilão e segue sendo incentivado dia após dia pelo frenesi da vida moderna. “Enquete feita na Semana Brasileira de Sono, evento organizado anualmente em março, apontou as três principais condições que tiram o sono do brasileiro: problemas de saúde na família, problemas conjugais e problemas financeiros. Estes são fatores desencadeantes de insônia para indivíduos predispostos a desenvolverem o problema”, sintetiza a neurologista.
Da noite e do dia
Qual é o panorama em outros países? De acordo com a neurologista, a prevalência de insônia no mundo é variável e suas causas também. “Em países desenvolvidos, ou naqueles onde há menos luminosidade, a doença tem uma predominância maior”, relata a médica da ABS. Os países nórdicos, com invernos prolongados e, portanto com menos luz solar, servem como exemplo. Ali, a incidência de quadros depressivos e distúrbios de ritmo do sono tende a ser elevada, informa a médica Anna Karla, do Instituto do Sono. O fato é que cada população tem suas particularidades e elas variam em função da etnia e de características geográficas do próprio lugar, além das questões relacionadas à luminosidade que regula os ritmos biológicos. Os hábitos alimentares também têm que ser levados em conta na análise das estatísticas. Sabe-se que a ingestão abusiva de produtos ricos em cafeína dificulta a indução do sono nos indivíduos sensíveis. Um quarto das crianças, de 3 a 10 anos, ingerem diariamente bebidas cafeinadas e com isto dormem três horas e meia a menos por semana. O uso de bebida alcoólica principalmente a partir de quatro horas antes de deitar-se afeta a qualidade do reparador, diminuindo a quantidade de sono profundo.
O sono profundo é, portanto, essencial. Sem ele, nos tornamos desanimados, desatentos e, muitas vezes, sem ação, porque a nossa capacidade de concentração, de planejamento e de raciocínio fica comprometida. Mas nem todas as pessoas atingem o estágio de sono profundo ao mesmo tempo. Os ciclos circadianos, que abrangem o período de aproximadamente 24 horas sobre o qual se baseia o ciclo biológico de quase todos os seres vivos, é influenciado pela variação de luz, de temperatura, marés e ventos entre o dia e a noite, além das especificidades de cada organismo. A maioria das pessoas necessita dormir de sete a oito horas para acordar bem disposta. Recentemente, algumas pesquisas demonstraram que indivíduos que acham suficiente dormir quatro ou cinco horas por noite, na verdade, precisam dormir mais. Outro ponto que tem sido questionado diz respeito ao tempo de sono dos idosos. Eles, ao que parece, dormem o mesmo tanto de quando dormiam na mocidade. O que varia é a qualidade deste sono, distribuídos por diversos períodos do dia e, por essa razão, mais superficial.
Sabe-se, então, que biologicamente tem gente que é da noite, tem gente que é do dia. Se o mundo respeitasse essas diferenças, existiria menos insones sendo obrigados a deitar-se às 10 horas da noite porque bate o cartão no trabalho às 8h30 da manhã. “Cada pessoa tem um padrão biológico de sono. Por isso, é natural que alguns gostem de dormir e acordar cedo, enquanto outros tenham melhor rendimento acordando mais tarde. A flexibilização do horário, neste sentido, é fundamental para trabalhar mais e melhor”, ressalta Anna Karla.
Isto não está na ordem do dia. Ao contrário, o que se vê cada vez mais é o indivíduo sendo levado a trabalhar em turnos muitas vezes inadequados ao seu ciclo biológico. A consequência mais imediata é a noite mal dormida, com derivada sonolência durante o dia. Isto no plano aparente e mais imediato. Em longo prazo, problemas de saúde começam a surgir em surdina, entre eles a hipertensão arterial, o risco de acidentes cardiovasculares, distúrbios metabólicos como dislipidemia (alteração nos níveis de colesterol no sangue) e diabetes tipo 2, sem falar de doenças psíquicas e cognitivas.
Para escapar destes males, uma xícara de chá de camomila ou de erva-doce tem efeito relaxante e podem ajudar a induzir o sono. Até mesmo o tradicional copo de leite morno antes de dormir pode fazer bem, já que o leite contém o aminoácido triptofano, um poderoso agente para relaxar os músculos. Outro conhecido artifício é o banho morno. Depois de fazer isto, o insone pode ainda recorrer a tampões de ouvido, se tem dificuldade para se desligar dos ruídos. É importante ressaltar, no entanto, que insônia crônica precisa ser devidamente diagnosticada e suas causas analisadas por um médico. Depois da detalhada entrevista com o paciente ele poderá indicar o exame de polissonografia, que monitora o paciente durante o tempo em que estiver dormindo, ajudando a revelar se existe algum outro problema interferindo no sono.
Prejuízos à saúde
Além da insônia crônica, as doenças do sono mais conhecidas são a apneia, a narcolepsia, o bruxismo, a síndrome das pernas inquietas (SPI) e o movimento periódico das pernas (MPP). A apneia obstrutiva do sono (AOS) é geralmente caracterizada por pausas respiratórias que duram mais que dez segundos e que são consideradas anormais quando ultrapassam a frequência de cinco por hora de sono. Ela pode ser provocada por alterações anatômicas e pela diminuição de atividade dos músculos dilatadores da faringe. Os sintomas mais frequentes são histórico de ronco alto, interrompido por paradas respiratórias durante o sono, e hipersonolência diurna. Agitação noturna e vontade de urinar várias vezes à noite, alterações de memória e raciocínio e impotência sexual também podem ocorrer.
A narcolepsia é um distúrbio caracterizado por sonolência diurna, por vezes com ataques de sono, cataplexia e anormalidades do sono REM (movimento rápido dos olhos, na sigla em inglês). Ela acomete uma pessoa a cada duas mil. A cataplexia (atonia muscular súbita) é o único sintoma específico da narcolepsia, mas pode não aparecer em todos os casos, dificultando a avaliação do médico. Fatores genéticos também devem ser levados em conta no momento do diagnóstico.
O bruxismo é o ranger ou apertar dos dentes durante o período de sono. Sua causa ainda não foi definida completamente, a não ser o fato de que a força realizada sobre a musculatura mastigatória e os dentes é extremamente intensa, acarretando dor facial, desconforto muscular (principalmente ao morder), dores de cabeça, desgaste dos dentes e danos à gengiva. Um sinal típico é o desgaste do esmalte dos dentes. O sonambulismo, à semelhança do terror noturno, normalmente ocorre na infância. Caracteriza-se por falar, sentar ou também andar pelo quarto e até mesmo pelos ambientes da casa.
A SPI se caracteriza por uma incontrolável necessidade de movimentar as pernas a fim de aliviar uma sensação desagradável nos membros inferiores. Esses sintomas acontecem à noite, antes de dormir, podendo, muitas vezes, impedir o início do sono. O MPP, por sua vez, são movimentos de pequena amplitude, como uma flexão nos pés e nas pernas que ocorrem durante a noite e duram no máximo cinco segundos com uma frequência de um entre 20 a 40 segundos. O inconveniente desses movimentos é que eles podem acordar a pessoa.
A insônia crônica exibe uma enorme lista de prejuízos à saúde, como lembra a neurologista Andrea Bacelar, que cita como exemplos a falta de vigor físico, o envelhecimento precoce, a diminuição do tônus muscular, o comprometimento do crescimento e do sistema imunológico, a tendência para desenvolver obesidade, o diabetes, as doenças cardiovasculares e gastrointestinais e a perda crônica da memória.
O sono profundo é de suma importância para restaurar as energias, produzir hormônios, equalizar nosso metabolismo e interferir em todos os sistemas (cardiovascular, digestivo e urinário) a fim de que no dia seguinte estejamos em plena forma. O GH (hormônio do crescimento) somente é produzido durante algumas fases do sono. Quando se dorme pouco e mal também há comprometimento aqui. O rendimento escolar de crianças do ensino fundamental e do ensino médio que dormem um tempo total de sono inferior a seis horas cai e gera pontuações menores que cinco nas avaliações. A consolidação da memória se faz durante o sono de ondas lentas e é a partir disso que o indivíduo armazena e memoriza as situações vividas durante o dia. Portanto, dormir bem não é luxo, é fundamental.