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A aula do silêncio

Postado em 01/05/2001

 

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Iconographia

Artista da palavra, Cecília Meireles mostrou o mundo em profundidade

CECÍLIA PRADA

"Sua alma é com certeza milenar, na consciência com que desce às raízes do sentimento poético, considerando a sua fatalidade, e ao mesmo tempo deixando-se levar na ciranda aparentemente inútil dos sonhos, idealizações e freqüentes nostalgias de um estado ideal e perfeito de pulsar."

Walmir Ayala

Circunstâncias trágicas marcaram o início da vida de Cecília Meireles, nascida no Rio de Janeiro a 7 de novembro de 1901 e na mesma cidade falecida em 9 de novembro de 1964. Seu pai, Carlos Alberto de Carvalho Meireles, funcionário do Banco do Brasil, morreu aos 26 anos de idade, três meses antes de a filha nascer. Sua mãe, a professora municipal Matilde Benevides, morreu quando ela tinha 3 anos. Sozinha no mundo com a única remanescente da família, sua avó materna Jacinta Garcia Benevides, Cecília foi obrigada a manter "uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno que, para outros, constituem aprendizagem dolorosa e, por vezes, cheia de violência" (entrevista a "Manchete", 1959).

No entanto, lembrava sua infância de menina sozinha, que aprendia a cultivar como dons o silêncio e a solidão, como uma época maravilhosa – um fecundo tempo de aprendizado da realidade, o armazenamento de memórias, impressões e sensações que perdurariam, dando-lhe o material de sua imensa obra ("Grande aula, a do silêncio").

A avó Jacinta, açoriana – "que me cantava rimances e me ensinava parlendas" –, foi ao mesmo tempo seu esteio afetivo e a transmissora de uma riquíssima tradição cultural que transportava para o Rio de Janeiro do início do século 20, revivescida e "impregnada do mar da ilha de São Miguel, nos Açores", a poesia lírica galaico-portuguesa. Conta a poeta, em Desenho:

"E minha avó cantava e cosia. Cantava
canções de mar e de arvoredo, em língua antiga.

E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos
e palavras de amor em minha roupa escritas".

Desejava Cecília que a percebessem – dizia em carta de 1946 ao amigo poeta e ator Ruy Affonso – "como uma criança antiga que a poesia de São Miguel nutriu, numa infância de sonho, no regaço de uma avó dolorida, heróica e nobremente sentimental". Em poesia, sintetizava:

"É mal de família
ser de areia, de água, de ilha".

Antes mesmo de saber ler sedimentava em seu espírito outra tradição oral, na convivência com a pajem, uma "escura e obscura Pedrina ... companheira mágica da minha infância", que conhecia muito do folclore do Brasil e era dona de um repertório de adivinhações, cantigas, fábulas e histórias que não só contava como dramatizava e cantava. Dizia Cecília: "Quando eu ainda não sabia ler, brincava com livros, e imaginava-os cheios de vozes, contando o mundo". Nascia assim nela, mais do que o interesse pela literatura, "uma visão da vida através da palavra", uma interior "área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar" .

Com a alfabetização abriu-se logo a menina de olhar distante à influência dos livros, deixando-se seduzir por eles – dos velhos livros ricamente ilustrados herdados do avô à descoberta do dicionário e das gramáticas – "sobretudo a latina e a italiana, me seduziam muito". Na adolescência, a sedução estendeu-se aos países distantes, ao Oriente, à filosofia. E as raízes espirituais de sua imensa obra ampliaram-se no estudo das línguas, nos clássicos de outros países, nos românticos ingleses, nos simbolistas franceses e alemães, e principalmente nos livros sagrados e na literatura popular do mundo inteiro.

Dotada de verdadeira vocação para o magistério, seguiu essa carreira – do ensino primário ao universitário –, ao mesmo tempo desenvolvendo intensa atividade literária e jornalística, à qual somava interesses no campo do folclore, de que era profunda conhecedora. Manteve-se, no entanto, sempre desligada da vida literária social, pois considerava a solidão "não como uma disponibilidade, mas sim como uma conseqüência natural do meu trabalho, e o seu clima indispensável".

Uma solidão que não prejudicou em nada, porém, os seus intensos e duradouros relacionamentos familiares e de amizade. Casou-se duas vezes, a primeira em 1921 com o pintor Fernando Correia Dias, com o qual teve três filhas, que lhe deram cinco netos. Viúva, casou-se em 1940 com o professor Heitor Grillo, com o qual partilhou até a morte um amor feito de grande ternura e companheirismo. Os que a conheceram dão testemunho da excepcionalidade do seu convívio. "Seu cotidiano" – dizia o poeta Walmir Ayala –, "o contato com os amigos e conhecidos, era apaixonadamente pousado em temas comuns, lidando com o trivial e o prosaico da vida doméstica, com alegria e surpresa."

Na maturidade, Cecília pôde realizar seus sonhos de viajar pelo mundo – desenvolvendo atividade oficial de intercâmbio cultural, chegou a passar grandes períodos de tempo em Portugal e outros países europeus, Estados Unidos, México, Uruguai e Argentina, Porto Rico, Israel, Índia e Goa.

"Serena desesperada"

Não é de estranhar que já o seu primeiro livro, Espectros (1919), recebesse a acolhida favorável dos críticos, entre eles o famoso gramático e filólogo João Ribeiro – ele previa para a jovem de 18 anos a carreira e a reputação de grande poeta. Fiel ao seu norte interior, individualizada, segura de si e fundamentada na erudição, Cecília Meireles pôde prosseguir ininterruptamente durante 45 anos na sua tarefa de "reinvenção da vida" por meio da palavra poética, pois

"A vida só é possível
reinventada".

Seu quarto livro, Viagem – que reunia poemas escritos de 1929 a 1937–, recebeu aclamação unânime ao ganhar, em 1938, o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. Diz o crítico Darcy Damasceno: "Com esse livro ingressava Cecília Meireles na primeira linha dos poetas brasileiros, ao mesmo tempo que se distinguia como a única figura universalizante do movimento modernista ... Viagem vale pela revelação definitiva de uma natureza artística em sua plenitude e de um estilo poético em seu ponto de perfeição".

São unânimes os críticos no reconhecimento dessa superioridade. Diz José Paulo Moreira da Fonseca: "Essencialmente lírica, em função de tal fato manteve-se, malgrado o afastamento dos ‘movimentos’, fiel à tradição luso-brasileira. Destarte, é uma apartada, porém sob hipótese alguma estrangeira". E José Guilherme Merquior: "Esse lirismo de Cecília Meireles ... recusou muito declaradamente o anedótico do cotidiano – a felicidade foi ter recusado, igualmente, as retóricas abstratizantes. Era – e é – uma poesia filosófica, mas nunca uma filosofia expressa em versos didáticos. Simplesmente uma poesia impregnada do sentido da vida".

Uma segurança interior, tão rara, caracterizada por Nuno de Sampaio como "acalmia total e uma essência única onde nada luta, onde nada sofre, onde nada se agita" constitui o fulcro da sua poética, tema maior, glosado e desdobrado ad infinitum. Diretamente, como em Motivo:

"Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou nem alegre nem triste:
sou poeta".

Ou, de maneira indireta, como em Epitáfio da Navegadora:

"Se te perguntarem quem era
essa que às areias e gelos
quis ensinar a primavera...

...dize: ‘Eu não pude conhecê-la,
sua história está mal contada,
mas seu nome, de barca e estrela,
foi: SERENA DESESPERADA’ ".

Mas a sua capacidade de transcendência de modo algum abstrai a ponto de deixar de ser um conhecimento do mundo, um estar-no-mundo em que a poeta verruma sua angústia, sua finitude, sua caminhada de apreensão do significado possível, do destino eterno – o tema recorrente do ubi sunt, a indagação do mistério dos espelhos, devoradores da imagem, como nos versos tão conhecidos de Retrato:

"Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro...

... eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil
– Em que espelho ficou perdida
a minha face?"

Ou em Tempo Viajado:

"Procuro pelo meu rosto
o tempo que se desprende.
Que agulhas de desencontro
separaram minha gente?

Dos meus retratos rasgados
me levanto.
E acho-me toda em pedaços
e assim mesmo vou cantando".

A sua procura existencial ancora-se na filosofia platônica, que reconhece o mundo como a aparência multiforme capaz de revelar estruturas eternas:

"O mundo, vaga e inábil aparência,
que se perde nas lápides escritas,
sem qualquer consistência ou conseqüência".

No detalhamento do concreto, no enlevo apaixonado pela natureza, na sequiosa curiosidade que levou pelo mundo inteiro em suas tantas viagens – "ando à procura de espaço / para o desenho da vida" –, a poeta transcende a angústia e a cada instante extrai da vida um detalhe insólito, uma relação não vista, um reflexo, uma sombra, um rosto, uma luz, madrugadas e visões noturnas, a tagarelice das crianças, o tropel da grande cidade, "o negrinho de boina encarnada", a "velhinha franzida e amarela" num banco em Paris... os olhos dos cavalos do Marajá que "são como rios passando".

Em tudo, a emoção, a sensibilidade, o pensamento profundo, a transcendência do meramente físico pela indagação metafísica, porque

"Toda uma vida se reduz, afinal, a umas poucas emoções,
por muitos anos que vivamos,
apesar de viagens, experiências, realizações, sonhos, saber...
Vivemos tudo – o humano e universal –
nuns pequenos instantes, obscuros e essenciais".

Em 1953 Cecília presenteou seus deslumbrados leitores com mais uma surpresa – o belíssimo Romanceiro da Inconfidência. Depois de aprofundado estudo das circunstâncias e dos grandes personagens da rebelião de Vila Rica, conseguiu transpor a realidade histórica para a poesia, num livro que, segundo a análise de outro poeta, Murilo Mendes, "tem cabeça, tronco e pés, e que, posto a andar, sustenta sua rigorosa unidade".

Obra de grande maturidade e empenho, na qual a poeta emprega o melhor da sua técnica e dissipa críticas apressadas que faziam alguns contemporâneos, pelo transcendentalismo impessoal de sua poesia. Como diz Darcy Damasceno: "... se testemunhos faltassem do seu arraigamento na tradição, bastaria a leitura daquelas peças repassadas de profundo amor à terra e comovida admiração pelos seus mártires".

Com a sucessão dos livros de poesia publicados, da estréia em 1919 à sua morte em 1964 (19 ao todo, sem contar os inúmeros poemas publicados em antologias, jornais e revistas, e as numerosas publicações no exterior), com o vasto material jornalístico, textos de conferências, ensaios, livros didáticos, traduções e peças de teatro, Cecília deixou também vasto material inédito, que vem sendo publicado postumamente – bibliografia de peso e qualidade ímpar, que a tornam figura maior no cenário da literatura em língua portuguesa.

Ela própria explicava sua intensa e múltipla atividade intelectual na literatura, no jornalismo, na educação e no folclore, como "um desejo de acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo... e mostrar-lhe a vida em profundidade".

Por certo cumpriu seu desejo.


A consagração

Cassiano Ricardo (1938, na Academia Brasileira de Letras): "‘Viagem’ é um dos mais belos livros de versos escritos em nossa língua".

Mário de Andrade (1939): "Ela é desses artistas que tiram o seu ouro onde o encontram, escolhendo por si, com rara independência. E seria este o maior traço da sua personalidade, o ecletismo, se ainda não fosse maior o misterioso acerto, dom raro com que ela se conserva sempre dentro da mais íntima e verdadeira poesia".

Menotti del Picchia (1942): "Cecília levita como um puro espírito, nos seus transes de inspiração, na linha demarcadora que limita o consciente objetivo e o sensitivo subconsciente, lírico, místico e material ... ‘Vaga Música’ talvez seja a mais alta voz poética deste instante brasileiro".

Nuno de Sampaio (Portugal, 1949): "Considero o lirismo de Cecília Meireles o mais elevado da moderna poesia de língua portuguesa. Nenhum outro poeta iguala o seu desprendimento, a sua fluidez, o seu poder transfigurador, a sua simplicidade e o seu preciosismo ... A (sua) poesia é uma das mais puras, belas e válidas manifestações da literatura contemporânea".

José Paulo Moreira da Fonseca (1957): "... mais uma das excepcionalidades de C. M. – a composição de uma poesia densamente feminina ... com um sem-número de perspectivas sobre as coisas, que os homens não teriam, poesia na qual uma das grandes forças é a delicadeza, e delicadeza de poeta, que transfigura a vida em canto".

Manuel Bandeira (1964): "Há nos seus poemas, a partir de ‘Viagem’, as claridades clássicas, as melhores sutilezas do gongorismo, a nitidez dos metros e consoantes parnasianos, os esfumados de sintaxe e as toantes dos simbolistas, as aproximações inesperadas dos surrealistas. Tudo bem assimilado e fundido numa técnica pessoal, segura de si e do que quer dizer".

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