Postado em 01/02/2016
Para o bem ou para o mal, um dos principais aspectos do teatro contemporâneo é seu caráter fronteiriço, híbrido, uma arte que se ergue na dissolução das fronteiras entre as diversas artes. Inúmeros criadores exploram essa transversalidade que, se por um lado pode alimentar certo fetichismo vazio – não são raros os casos –, por outro gera experiências artísticas únicas.
Em meus espetáculos e filmes, o entrecruzar entre teatro, audiovisual e artes plásticas é uma constante. Atraio-me por estes encontros, pois geram uma incompletude, um estranhamento, um espaço poético que convida o público a ativamente preenchê-lo com sua imaginação. O espectador, na verdade, é o grande cúmplice nestas criações.
Essa tendência pelo intercâmbio no teatro não é nova. Trata-se de uma arte de natureza porosa, sempre absorveu os princípios e as tecnologias disponíveis de seu tempo. Mas o desenvolvimento do hibridismo como linguagem, estética e postura política é obra do século 20. Devemos em grande parte a liberdade formal contemporânea às experimentações e ousadias dos grandes reformadores das artes cênicas do século 20 (Meyerhold, Craig, Decroux, Artaud, Appia, Copeau, entre outros) que, ao rebelarem-se contra um teatro demasiadamente literário e de reprodução realista da vida, abriram a caixa de Pandora do chamado Teatro Total, o teatro do encontro entre todas as artes. A arte do movimento, as artes plásticas, o cinema, a arquitetura, a poesia, a música, a dramaturgia e tantas outras formas artísticas passaram a se relacionar de forma horizontal nesse novo teatro, buscando uma arte única, insubstituível, inclassificável, transgressora. Tal visão, radicalizada nos anos 1970 por criadores como Bob Wilson, encontra sua voz nos palcos ainda hoje.
Para nós, criadores, os desafios não são poucos nesta empreitada. Trabalhar com multilinguagens é entender o paradoxo: quanto mais híbrida e contemporânea é a proposta, mais necessário é voltar-se para as tradições, para o conhecimento profundo da natureza e fundamentos essenciais de cada uma dessas artes. A criação contemporânea está estreitamente ligada, a meu ver, a uma formação “clássica”. Para uma arte se embrenhar em outra e deixar-se contaminar, ela antes de tudo deve afirmar, com toda força, o que a define.
No caso do cinema, por exemplo, a questão da verossimilhança é central. Os universos retratados, sejam realistas ou fantásticos, precisam ter aparência de realidade, precisam ser intuídos como verdadeiros. As coisas precisam ser mostradas, não apenas imaginadas (não por acaso, o cinema já foi definido como a “arte da mostração”). Já o teatro é a arte da sugestão por excelência.
Para além de mostrado, algo deve ser sugerido. O público, em um pacto lúdico, imagina a realidade. A rigor, com um palco vazio e bons atores pode-se recriar o mundo.
Portanto, em obras que exploram a intersecção entre cinema e teatro, a articulação destes dois conceitos - verossimilhança e sugestão - é incontornável. No filme Dogville, exemplo de experimento cine-teatral bem sucedido, o diretor Lars von Trier resolve esse problema estabelecendo um relação de compensação: quando um conceito avança o outro recua. A sugestão teatral é levada ao extremo, em vez de cenário, linhas no chão sugerem todo um vilarejo, não há paredes, horizonte, quase tudo é imaginado pelo espectador. Mas a verossimilhança se impõe por compensação, através da direção de atores. Com um naturalismo visceral, uma realidade emocional é tão fortemente criada que, após o estranhamento inicial da estilização espacial, a sugestão deixa de ser o foco, passamos a acompanhar a verdade da angustiante trajetória da protagonista. Se neste filme as atuações fossem também estilizadas teríamos uma “somatória de sugestões”, possivelmente entrando no inverossímil terreno do “teatro filmado”, um Frankstein que não existe nem como cinema nem como teatro.
Já nas artes cênicas, a pesquisa de intersecção de linguagens deve, necessariamente, estar presente no corpo de seu único elemento essencial: o ator. Por mais tecnológico e inventivo que o espetáculo seja, se o ator não acompanha essa dimensão com sua atuação, a tecnologia e o hibridismo estranhamente se apresentam decorativos, inapropriados, artificiais. Voltamos novamente à questão da formação. Os desafios técnicos para o ator do teatro contemporâneo são imensos, possivelmente ainda maiores que do teatro tradicional. Com o uso de vídeo projeções, câmeras ao vivo e microfones, seu corpo será expandido, mutilado, multiplicado, sua voz precisará simultaneamente de projeção e modulagem íntima, irá contracenar com atores ao vivo e espectros, projeções, ausências. Sem o suporte da dramaturgia linear, o ator precisará alternar-se rapidamente entre naturalismo e estilização, combinar estados emocionais extremos e formalismo. Portanto no Teatro Total o ator deve ser igualmente completo: ao mesmo tempo ator de cinema, dançarino, mímico, cantor.
Marcel Duchamp foi o grande guru da arte pós-moderna, com suas rupturas radicais com o passado e questionamentos sobre a natureza da arte que abriram espaços de liberdade importantíssimos, dando forma a uma arte puramente conceitual. Mas no palco uma ideia tem que encontrar sua materialidade, pois é necessário dar forma ao invisível. O paradigma para a criação no teatro de multilinguagens, para mim, não é duchampiano, mas renascentista. Um domínio múltiplo, que atravessa ciência, humanas, artes, geometria, ofício. Em outras palavras, a conjugação de precisão técnica, conhecimento das tradições e loucura.
André Guerreiro Lopes é ator e diretor de teatro e cinema. Estudou audiovisual e teatro no Brasil e na Inglaterra. Dirigiu curtas-metragens e foi assistente de direção de Robert Wilson na montagem de A Dama do Mar, em 2013, no Sesc Pinheiros.