Postado em 02/02/2016
Novas Migrações
As migrações internacionais são parte de um processo de enriquecimento cultural, social e econômico. No entanto, enquanto milhares de estrangeiros forçados a migrar são acolhidos por outros povos, há também os que rejeitam a chegada do novo. O que a existência de uma política migratória significa no Brasil e no mundo? Discutem o tema a professora Deisy Ventura, do Instituto de Relações Internacionais e da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), e a pesquisadora de pós-doutorado do Centro de Estudos da Metrópole da USP Patrícia Tavares de Freitas.
por Deisy Ventura
Nada mais humano do que migrar. O Brasil foi construído por migrantes, tanto por famílias que se deslocaram dentro de nosso território, como por famílias que vieram de outros países. Nas últimas décadas, muitos brasileiros também partiram ao exterior. As razões para migrar são as mais variadas, mas em quase todas elas há a luta para sobreviver ou a vontade de viver melhor.
Quando pensamos sobre a globalização, esse momento histórico que estamos vivendo, temos a falsa ideia de que mover-se nunca foi tão fácil. De fato, segundo a Organização Mundial do Turismo, cerca de 1,1 bilhão de pessoas a cada ano viaja para o exterior como turista. Poucas vezes, porém, lembramos que nosso planeta hoje tem cerca de 7 bilhões de habitantes e mais de dois terços deles permanecem absolutamente sedentários. As pessoas menos favorecidas não dispõem de recursos materiais e de contatos que permitam seu movimento. Assim, os mais pobres não se movem e quando se movem, em geral, não conseguem ir muito longe.
Outra falsa ideia é a de que há hordas ou enxames de pessoas ameaçando entrar em outros países, inclusive o nosso. Em 2013, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o número de migrantes internacionais foi estimado em 232 milhões de pessoas. Isso representa 3,2% da população mundial. Desde 1995, o percentual de migrantes internacionais continua o mesmo. Cerca de metade dessas pessoas se dirige aos países desenvolvidos, como os da Europa ou os Estados Unidos. A outra metade busca os países em desenvolvimento, que é caso do Brasil.
Mas há um número que de fato aumentou. Nos últimos quatro anos, a persistência ou o agravamento de conflitos armados fez com que o número de refugiados ultrapassasse o triste recorde da Segunda Guerra Mundial. A diferença entre refugiado e migrante é que o segundo quer partir, enquanto o primeiro não pode ficar. Mas, por vezes, essa diferença não é tão clara. Por exemplo, quando há catástrofes naturais ou grande miséria e desemprego em um país, é difícil dizer se queremos partir ou se não podemos ficar.
O fato é que, ao final do ano de 2014, havia no mundo quase 60 milhões de deslocados forçados, em sua maioria em decorrência de conflitos armados. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), entre eles, 19,5 milhões são refugiados, pessoas que estão em um país diferente daquele onde residiam; 38,2 milhões são deslocados internos – ou seja, deslocam-se dentro do território de seu próprio país – e 1,8 milhão são solicitantes de refúgio, isto é, ainda esperam que o país de destino reconheça que eles tinham um fundado temor de permanecer em suas casas. O maior número, tanto de deslocados internos (7,6 milhões) quanto de refugiados (3,88 milhões), vem da Síria, seguida pelo Afeganistão (2,59 milhões de refugiados) e pela Somália (1,1 milhão de refugiados).
Quando vemos as imagens dos terríveis naufrágios no Mar Mediterrâneo, causados pelo desespero das pessoas ao fugir de seus países, ou as longas caminhadas de milhares de seres humanos que se deslocam em território europeu enfrentando as polícias e os controles de fronteira, ou ainda os vagões de trem lotados que lembram os documentários sobre a Segunda Guerra Mundial, passamos a acreditar que a Europa é a maior vítima desses deslocamentos forçados. Mas isso não é verdade.
Conforme o Acnur, os países em desenvolvimento acolhem mais de oito em cada dez refugiados. Turquia, Paquistão e Líbano abrigam, atualmente, 30% dos refugiados do mundo, seguidos por Irã, Etiópia, Jordânia e Quênia.
É verdade que o número de refugiados aumentou na Europa. Mas vale a pena comparar os números. Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que é uma espécie de clube dos países ricos, ao longo dos seis primeiros meses de 2015, 137 mil pessoas teriam desembarcado nas costas espanholas, gregas, italianas e maltesas. Isso corresponde a 83% a mais do que os 75 mil chegados no primeiro semestre de 2014. Ainda assim, a diferença em relação aos países menos desenvolvidos é gritante. E também é muito diferente a capacidade de acolhida de cada Estado. O resultado disso é que a maioria dos deslocados forçados encontra-se em campos de refugiados situados em algum país pobre do mundo.
Outro número assustador é o dos apátridas, aquelas pessoas que não possuem ou perderam a sua nacionalidade. Segundo o Acnur, elas seriam hoje pelo menos 10 milhões de pessoas. Em geral, isso ocorre porque determinados grupos são discriminados (por exemplo, os nazistas tiraram dos judeus a nacionalidade alemã) ou porque alguns Estados deixam de existir, por fusão com outros ou por fragmentação de seu território. Como diversos direitos são vinculados à nacionalidade, isso significa que as pessoas apátridas podem ter perdido total ou parcialmente os seus direitos.
Os países mais ricos são aqueles que mais restringem o ingresso e a permanência lícita dos migrantes em seu território. O controle estrito de fronteiras gerou um verdadeiro mercado. Por um lado, as pessoas entregam quase todo o dinheiro que possuem aos chamados coiotes, que prometem fazê-las cruzar as fronteiras. O sonho, por vezes, torna-se pesadelo, em condições de travessia desumanas. Estima-se que quase três mil pessoas tenham morrido em naufrágios tentando chegar à Europa, apenas em 2015. Se elas possuíssem um visto, o documento que permite a entrada lícita em um país, isso não teria ocorrido. Por outro lado, o controle de fronteiras move uma indústria bilionária: centros de detenção, armas, pessoal de segurança, construção de muros etc.
Nos países em desenvolvimento, a exemplo do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), em geral não há restrição de ingresso, mas a dificuldade de regularização migratória e a falta de políticas migratórias produzem efeitos equivalentes aos das políticas restritivas. É fácil cruzar fronteiras porosas. O difícil é conseguir ter seus direitos reconhecidos. A situação migratória irregular favorece a exploração do trabalho dos migrantes, inclusive em condições análogas à escravidão, dificulta a escolarização das crianças e o acesso aos sistemas de saúde.
Concluímos que há hoje um direito de saída praticamente generalizado enquanto o direito de entrada é raramente reconhecido. Logo, a livre circulação de pessoas, considerada uma das mais importantes características do nosso tempo, é uma das liberdades mais mal distribuídas no mundo.
Por essa razão, nós, brasileiros, que recebemos ainda um número tão pequeno de refugiados e migrantes (pois o Brasil está longe de ser um destino preferencial de migração ou refúgio), devemos ver em cada um deles um valente. Alguém que subverteu a regra prevalecente no mundo. E o melhor que podemos fazer é nos colocar no lugar dele, estendendo-lhe a mão para que se torne um vitorioso, do mesmo modo que nós gostaríamos que nossos parentes e amigos, ou nós mesmos, fôssemos acolhidos no dia em que quisermos partir ou não pudermos aqui ficar.
Deisy Ventura é professora do Instituto de Relações Internacionais e da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
por Patrícia Tavares de Freitas
Neste artigo, abordaremos os processos históricos de promoção da cidadania local dos novos migrantes, na cidade de São Paulo. Tradicionalmente, a cidadania, no debate sobre imigração, refere-se ao estatuto jurídico dos migrantes, às suas formas de pertencimento aos estados nacionais nos quais passam a residir em algum momento de suas vidas. Embora o estatuto jurídico, ou seja, a “cidadania formal”, continue sendo um aspecto central, atualmente, o conceito de cidadania começa a ser mobilizado também para se referir às formas de acesso dos imigrantes aos direitos civis, sociais e políticos, ou seja, à “cidadania substantiva”.
Nem sempre a cidadania formal garante o acesso à cidadania substantiva, que depende, para se efetivar, de outras políticas de integração e de acolhimento que possibilitem que os novos cidadãos tenham ciência de seus novos direitos e deveres e que as burocracias estatais e suas estruturas institucionais estejam preparadas para acolhê-los, respeitando as suas especificidades culturais. Da mesma forma, conforme vem sendo percebido em estudos realizados em grandes centros urbanos em outros países do mundo – por exemplo, na Espanha e no Japão –, nem sempre é necessária a atribuição da cidadania formal para que os imigrantes possam ter acesso, ao menos, parcial, aos direitos da cidadania substantiva.
Diante da inexistência de políticas de integração e das dificuldades para a obtenção da cidadania formal, em alguns contextos nacionais, os governos locais de centros urbanos receptores de migrantes internacionais passaram a desenvolver suas próprias políticas de integração e acolhimento, perfazendo a denominada “cidadania local”. Nos estudos contemporâneos, o alcance, formas e sentidos dessas novas políticas de promoção da cidadania local variam bastante, a depender das histórias de aproximação entre os governos locais e os novos imigrantes, dos contextos institucionais e da forma como se articulam às associações e organizações não governamentais de defesa dessas novas populações. Essas organizações possuem um papel-chave, nesses contextos, tanto como ativistas pela promoção da cidadania local dos novos imigrantes, quanto como prestadoras de serviços na implementação das políticas de cidadania local.
A cidade de São Paulo vem se inserindo, gradualmente, nesse grupo de centros urbanos receptores de migrantes internacionais que começa a implementar políticas de integração e acolhimento, diante de uma legislação nacional, cuja modificação está em pauta, mas que segue vigente até os dias atuais, o Estatuto do Estrangeiro, promulgada durante a ditadura, marcada por restringir, em vez de garantir direitos a essas novas populações. Ao aumento paulatino da quantidade e da diversidade de migrantes internacionais recebidos pela cidade, ao longo das últimas décadas, correspondem as aproximações sucessivas do poder público municipal e estadual, culminando no estabelecimento, na gestão atual, do prefeito Fernando Haddad, de uma Coordenação de Políticas para Migrantes (CPMig), no interior da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania e de um centro de acolhimento e encaminhamento professional, o Centro de Referência e Acolhida ao Imigrante (Crai).
Nos próximos parágrafos, indicaremos alguns momentos importantes do processo gradativo de aproximação entre o poder público e os novos migrantes internacionais na cidade de São Paulo, no período contemporâneo.
Nessa história, a transição democrática é um marco importante por estabelecer, com a nova Constituição de 1988, a gramática a partir da qual passam a ser tecidos os discursos de defesa dos novos imigrantes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade dos direitos fundamentais (direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade) para qualquer pessoa que esteja em território nacional conflitam diretamente com o Estatuto do Estrangeiro, dando margem a uma série de articulações entre os ativistas em defesa dos novos imigrantes e aqueles em prol dos direitos humanos.
Uma das primeiras importantes articulações nesse sentido ocorreu após a Resolução n. 9, de 8 de janeiro de 1990, da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, impedindo que crianças indocumentadas fossem matriculadas nas escolas da rede estadual devido à responsabilidade funcional diante do Estatuto do Estrangeiro e “a fim de evitar problemas à rede escolar estadual e aos próprios alunos”. Nos anos 1990, as principais estruturas de apoio e acolhimento aos imigrantes, na cidade, eram o Centro Pastoral do Migrante (CPM), o Serviço Pastoral do Migrante (SPM) e a Casa do Imigrante – que compõem, atualmente, a Missão Paz – cujos trabalhos com imigrantes no período contemporâneo haviam iniciado durante os anos 1970, com os refugiados políticos latino-americanos, seguindo, no período democrático, principalmente, com os migrantes econômicos latino-americanos.
Para resolver o problema das crianças que passaram a ter as suas matrículas negadas pela rede estadual de ensino, o Centro Pastoral, após tentativas sem sucesso de diálogo com representantes da própria Secretaria de Educação, fez uma grande mobilização, em parceria com a Comissão de Justiça e Paz (CJP) – estabelecida durante a ditadura por Dom Paulo Evaristo Arns, da Arquidiocese de São Paulo, para atendimento aos presos políticos e suas famílias –, com escolas, delegacias, Polícia Federal, centros de defesa de direitos humanos, consulados etc. Porém, apesar de todos os esforços, a Resolução somente foi revogada cinco anos depois, após uma mudança no governo do Estado de São Paulo – com a saída do então governador Fleury e a entrada de Mário Covas. O novo governador nomeou para a Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania um advogado da CJP, Belisário dos Santos, que estabeleceu uma nova resolução, baseada na Constituição de 1988, garantindo o direito à educação a todas as crianças residentes no Estado, independentemente de sua condição jurídica.
Nos anos 2000, outro momento importante de aproximação entre os novos imigrantes e o poder público ocorreu a partir dos técnicos de saúde, no bojo de um processo mais amplo de municipalização da saúde e descentralização da administração por meio do estabelecimento de subprefeituras, durante a gestão de Marta Suplicy, na cidade de São Paulo. A implantação do Programa de Saúde da Família (PSF) levou os técnicos da saúde diretamente às oficinas de costura domiciliares de migrantes latino-americanos. E o novo desenho administrativo, das subprefeituras, que colocava no mesmo território os gestores das áreas sociais (como saúde, assistência social, esporte etc.), possibilitou o estabelecimento da Rede Somos Hermanos, a partir de uma parceria entre a coordenação de saúde da subprefeitura da Mooca e os representantes do CPM, do SPM e da Casa do Imigrante. Essa rede foi concebida como um projeto de ação que propunha usar a saúde como porta de entrada para aproximar esses imigrantes e sensibilizar os funcionários públicos que trabalham diretamente com essa população, dando visibilidade às suas especificidades culturais e ao seu idioma.
Conforme pudemos vislumbrar nos exemplos citados, a despeito de uma legislação nacional restritiva de direitos a essas novas populações, foram encontradas maneiras provisórias e parciais de garantir o seu acesso à educação e à saúde. No caso da educação, em resposta à atuação das organizações civis que se opuseram a uma resolução estatal e, no caso da saúde, a partir de uma iniciativa dos técnicos da saúde municipais em parceria com as organizações civis. Embora tenham sido iniciativas pontuais, argumentamos que esses processos vão, gradualmente, por um lado, fortalecendo os atores sociais e possibilitando a emergência de novas organizações e atores e, por outro, abrindo espaços no interior das estruturas estatais por meio de uma sensibilização da burocracia em relação aos novos imigrantes. Processos cumulativos cujas especificidades devem ser analisadas para que possamos compreender os sentidos e alcances das políticas atuais de promoção da cidadania local.
Patrícia Tavares de Freitas é pesquisadora de pós-doutorado do Centro de Estudos da Metrópole da USP, onde desenvolve uma pesquisa na área de sociologia política sobre a garantia de direitos aos novos imigrantes na cidade de São Paulo.