Postado em 01/07/2001
Atraídas por negócios milionários, empresas portuguesas descobrem o Brasil
Sabe a última dos portugueses? Eles se tornaram o terceiro maior investidor direto no Brasil – atrás apenas dos americanos e espanhóis –, e estão entre os participantes mais ativos da impressionante reviravolta das relações econômicas externas brasileiras empreendida nos últimos cinco anos, exatamente o período de abertura para o capital internacional desencadeado pelo Plano Real. Numa ampla ofensiva liderada pela Portugal Telecom (PT), a maior empresa de telecomunicações portuguesa, que aproveitou todas as brechas abertas pelo programa nacional de privatização do Sistema Telebrás para se colocar entre os grandes players no boom de telefonia celular, e pelo grupo varejista Sonae, atualmente a terceira maior rede de supermercados no ranking brasileiro, o capital lusitano dispõe, atualmente, de um volume de recursos no Brasil da ordem de US$ 7,5 bilhões, aproximadamente 8,5% de todo o estoque dos investimentos estrangeiros aplicados no país. Se o cálculo considerar o número de habitantes do local de origem, Portugal salta para o primeiro lugar como a nação com maior investimento per capita no Brasil.
Num fenômeno que vem sendo interpretado por analistas como "a segunda descoberta do Brasil por Portugal", meio milênio depois da chegada de Pedro Álvares Cabral à Bahia, os empresários portugueses, numa seqüência de decisões estratégicas para o crescimento de seus negócios, decidiram encarar o mercado brasileiro como uma espécie de "extensão natural" para a evolução de seus empreendimentos. Confrontados com um cenário europeu saturado e supercompetitivo, os estrategistas lusitanos voltaram o olhar para o Brasil: a maior nação de língua portuguesa do mundo, principal economia da América Latina, líder do Mercosul, e um dos dez maiores PIBs globais. O Brasil, apesar de vítima das turbulências internacionais e da estagnação econômica, passou a ser encarado pela elite empresarial de Portugal como a opção mais eficiente de investimento externo, não apenas por ser uma porta de entrada latino-americana, mas também por dispor de um mercado nacional de alto potencial de consumo.
"Para as companhias portuguesas, o Brasil acabou servindo como uma luva", diz Antônio Corrêa de Lacerda, professor de economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica (Sobeet), entidade que monitora e analisa o fluxo do capital internacional no Brasil. "Mais do que as afinidades culturais, que certamente facilitaram a aproximação do capital luso ao país, as empresas portuguesas, que, como as rivais européias, têm pressa de se globalizar, perceberam que não dispunham de tecnologia nem de recursos suficientes para competir agressivamente em centros mais avançados como Estados Unidos, Europa e Japão. Logo, passaram a olhar outras regiões de grande potencial, mas ainda emergentes, como o Brasil, em que pudessem exercer supremacia em alguns setores", acrescenta Corrêa de Lacerda. "O foco dos investimentos diretos portugueses em setores como telecomunicações, energia e finanças mostra que a investida só poderia ser viável em regiões onde houvesse uma forte demanda ainda não atendida, ao contrário, por exemplo, do capital alemão, mais competitivo, que nos últimos tempos tem ousado enfrentar multinacionais americanas até dentro dos Estados Unidos."
A opção pelo Brasil, de toda forma, foi uma revolução para os padrões portugueses de investimento. Até 1996, Lisboa centrava sua atuação internacional em oportunidades criadas pelas nações africanas e do Leste europeu. Para se ter uma idéia da evolução portuguesa na economia brasileira, os investimentos lusos, até meados da década passada, estavam comprometidos em apenas US$ 106,6 milhões, ou seja, menos de 0,5% do total internacional aplicado no país.
"Os números falam por si; há vários anos o Brasil é o maior destino do capital português e, apesar de as empresas lusitanas investirem também em outras regiões do mundo, as dimensões do mercado brasileiro são fundamentais para os planos das grandes companhias portuguesas de se tornarem players na economia globalizada", afirma José Guilherme Queiroz de Ataíde, diretor do Instituto de Comércio Exterior de Portugal (Icep), entidade que monitora comércio e investimentos lusos em todo o mundo. "Ser grande apenas em Portugal – um país de aproximadamente 11 milhões de habitantes e PIB de US$ 110 bilhões – não dá estatura para empresas como Portugal Telecom ou Eletricidade de Portugal (EDP) enfrentarem a concorrência global", acrescenta o especialista.
Parceria
Queiroz de Ataíde lembra que, apesar dos fortes laços culturais, a imagem brasileira nos centros de decisão em Lisboa era a de um país fechado para o mundo. Só nos anos 90, com a chegada ao poder do governo do primeiro-ministro António Guterres, afinado com as idéias progressistas defendidas na emergente União Européia – a grande área de livre comércio do continente europeu –, essa percepção começou a mudar, também impulsionada pela nova ordem globalizante da economia mundial. A ascensão do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, segundo avalia o diretor do Icep, ajudou a fortalecer o diálogo binacional. "Abertura econômica nos dois países, o processo de privatização no Brasil e coincidências políticas com a consolidação democrática nos dois lados do Atlântico durante os anos 90 criaram as condições para o boom nos investimentos."
De lá para cá, o sucesso das relações entre Brasil e Portugal incentivou as autoridades dos dois países a criar uma agenda cujo objetivo é potencializar a parceria. Dos encontros entre os representantes do Itamaraty e do Ministério das Relações Exteriores lusitano surgiram idéias que vão desde a aceleração do processo de aproximação entre o Mercosul e a União Européia, capitaneado por Brasil e Portugal, até a criação de uma rede global de negócios entre empresas de países de língua portuguesa – a exemplo do que já fazem as comunidades britânica e francesa. Em recente encontro internacional de empresários realizado na capital mineira – Brasil–Portugal: Desafios do Milênio –, uma das principais constatações foi que a internacionalização da economia portuguesa continuará passando cada vez mais pelo Brasil. Após a fase da chegada dos grandes grupos lusos, o governo de Lisboa prevê, de acordo com declarações do ministro da Economia de Portugal, Mário Cristina de Souza, uma segunda fase da ofensiva, agora liderada por companhias de pequeno e médio porte. "Essa é uma tendência natural", afirma Souza. "Os pequenos aguardam os resultados do pioneirismo dos grandes para, só então, decidirem se arriscar em novos mercados."
Entre os grupos de grande porte que estão abrindo caminho para as empresas menores, a Eletricidade de Portugal é um dos mais ativos. Até 2005, a EDP planeja colocar US$ 1 bilhão no Brasil e assumir a liderança das empresas que investem no setor de energia elétrica no país, uma área sensível para os planos brasileiros de sustentar o crescimento econômico no próximo qüinqüênio. Em sociedade com o grupo nacional VBC (Votorantim, Bradesco e Camargo Corrêa), a EDP controla a distribuidora Bandeirante, que atende parte do estado de São Paulo. O grupo também participa do controle da Cerj, no Rio de Janeiro, Coelce, no Ceará, Escelsa, no Espírito Santo, e Enersul, no Mato Grosso do Sul.
Na área de produção de energia, a empresa pretende alcançar uma potência instalada de 4 mil MW, dos quais mais da metade virá de fontes hídricas e o restante de usinas de gás natural. Num momento em que o Brasil atravessa grande escassez de geração de energia elétrica, a EDP está encontrando vasto campo para se expandir.
Bem mais conhecida do grande público brasileiro por sua atuação no sistema de telefonia desde a privatização da Telebrás, a Portugal Telecom – que controla a Telesp Celular, a Global Telecom de Santa Catarina e ainda empresas de Internet e multimídia como o InvestNews, do jornal "Gazeta Mercantil", e o provedor UOL, do grupo Folha de S. Paulo – detém cerca de dois terços de todo o capital luso investido no país. Dados consolidados do último balanço da Portugal Telecom apontam um estoque de investimentos no Brasil de US$ 5,1 bilhões. Nada menos do que 52% dos ativos do principal grupo de telecomunicações português estão fora do país de origem, e quase todo esse percentual refere-se ao Brasil. Em 2000, o grupo investiu US$ 3,3 bilhões em várias operações globais, que incluíram também países africanos e europeus. Para o atual exercício, as previsões são de cifras semelhantes.
Apesar das críticas recebidas pela matriz, em Lisboa – que destacam o risco de concentrar no Brasil o processo de internacionalização da empresa –, a Portugal Telecom está apostando no futuro de suas alianças no país, que incluem até a rival espanhola Telefónica, para oferecer aos clientes pacotes integrados de acesso à telefonia e novas mídias. Os acordos com empresas de comunicação brasileiras estão possibilitando à Portugal Telecom atuar em várias frentes da chamada nova economia: por meio da filial PT Multimídia, ela já oferece serviços complementares que vão da Internet e TV a cabo a e-business e transmissão de dados e sites de conteúdo (informativos), especialmente no setor financeiro.
O resultado da ofensiva brasileira da Portugal Telecom ficou claro no último balanço anual, divulgado recentemente pela empresa num grande evento. Mesmo com os investimentos pesados em novas mídias, ela aumentou seus ativos em 37%, para US$ 11 bilhões, e faturou US$ 3,85 bilhões, um salto de 30% em relação ao ano anterior. O lucro líquido, de US$ 503 milhões, foi 9,2% maior e, segundo porta-vozes da empresa, poderia ter sido bem mais polpudo se não fosse a gigantesca parcela tomada pelos investimentos.
Espírito Santo
Grande acionista da Portugal Telecom, o Grupo Espírito Santo (GES), outro dos maiores conglomerados econômicos de Portugal, também está com todas as suas fichas apostadas deste lado do Atlântico. Como a Telecom, o GES quer dar prioridade ao Brasil em seu processo de globalização. No país desde os anos 70, com o agora extinto banco Interatlântico, o Grupo Espírito Santo recentemente fechou um negócio com o maior banco privado nacional, o Bradesco, por meio de seu braço brasileiro, o BES Investimento do Brasil. Nos termos da parceria, o GES assumiu uma fatia de 3,25% do capital do Bradesco e repassou à instituição o Banco Boavista do Rio de Janeiro, que havia incorporado cerca de dois anos antes.
Ricardo Espírito Santo, principal executivo do BES Investimento do Brasil, fala com entusiasmo da parceria com o Bradesco. "Achamos muito gratificante trabalhar com o Bradesco, e teríamos enorme satisfação em ajudá-lo a se globalizar", acrescenta o banqueiro português que comanda as operações da matriz lusitana no Brasil. Com a parceria, o Bradesco também passou a deter uma parcela de 3% do BES e, com isso, abriu portas para operar diretamente na Europa.
As turbulências no Mercosul – provocadas principalmente pela Argentina e suas dificuldades crônicas de pagar o endividamento externo, que contaminam a imagem brasileira no exterior – não assustam o BES. "Nossa estratégia é de longo prazo, bem como a de nossos clientes", esclarece o banqueiro português. "Contra as flutuações cambiais realizamos operações de hedge que protegem os investimentos das oscilações do dia-a-dia." Entre os clientes que atuam no Brasil, Espírito Santo cita a PT Multimídia, na operação que adquiriu 100% da Zip.net, a assessoria financeira prestada à Telesp Celular para a aquisição da Ceterp, o serviço de co-manager na colocação de eurobônus da República Federativa do Brasil, a oferta de ações da Petrobras e as notas do Bradesco, com vencimento em 2002, no valor de US$ 150 milhões.
Além dos negócios financeiros, o GES está planejando, este ano, iniciar uma ofensiva no setor turístico-hoteleiro. Começou a examinar oportunidades de investir no nordeste – principalmente na Bahia, Pernambuco e Ceará –, e tem planos de também se estender pelo Rio de Janeiro. Deverá comprar ainda uma rede de agências de viagem no Rio e em São Paulo para verticalizar sua atuação no segmento.
Fontes do grupo em Lisboa estimam em US$ 250 milhões os recursos que o GES destinará a sua expansão internacional, dos quais a maior parte deve vir para o Brasil. Há apenas três anos no ramo turístico, o GES, em Portugal, já se tornou a empresa dominante do setor.
"Ainda há grandes nichos de negócios a ser explorados pelo capital português", informa Ricardo Espírito Santo. "Só para citar um exemplo, eu lembraria o leilão da Cesp e atividades de infra-estrutura turística." O petróleo, com uma possível ofensiva da Petróleo de Portugal (Petrogal) em jazidas brasileiras, é outro front que o banqueiro vê como forte opção de investimento lusitano.
Nome que se confunde com a própria história do capitalismo português, o Grupo Espírito Santo começou suas atividades em 1880, em Lisboa, com a atuação do patriarca José Maria Espírito Santo Silva na área financeira. Ele foi o fundador do Banco Espírito Santo (BES), que, no decorrer do século 20, expandiu atividades e diversificou negócios. Dos anos 80 para cá, o BES conquistou espaço no mercado imobiliário, gestão de patrimônio, agroindústria, comunicação, serviços, além das atividades bancárias propriamente ditas. Hoje é o segundo maior banco português de capital privado.
No Brasil, a família Espírito Santo é ainda uma das maiores produtoras de café, com enormes extensões de terra nos estados da Bahia e Tocantins. Para os estrategistas do BES, investir aqui é "prioridade" porque o país é uma das regiões que, a médio prazo, "mais devem crescer no mundo".
Durante o seminário Brasil e Portugal: Uma Aliança de Negócios, realizado em Lisboa, Ricardo Espírito Santo Salgado, presidente do GES, listou os investimentos realizados aqui: participação de 80% no BES Investimento do Brasil (com os 20% restantes nas mãos do Bradesco), 80% do BES Securities do Brasil, 3,25% do Bradesco (percentual que, segundo antecipou, poderá ser ampliado, dependendo de uma decisão do Banco Central) e 10% do Bradespar, o braço de investimentos do Bradesco.
O GES detém ainda 10% do capital do Grupo Monteiro Aranha e 10% da Accor. Fora das áreas financeira e de serviços, é proprietário de 20.445 hectares em Tocantins, onde planta arroz e cria gado na Fazenda Cobrape. Na Bahia, são três fazendas de café. Além disso, detém 5% da Botucatu Citrus, em São Paulo, que produz laranja e limão.
Risco Brasil
Para mostrar a seriedade com que vê o ritmo acelerado da integração econômica entre Brasil e Portugal, o Gabinete de Estudos e Prospectiva Econômica (Gepe), do Ministério da Economia português, divulgou em Lisboa uma ampla pesquisa em que procurou mostrar o perfil da ofensiva dos empresários lusos em terras brasileiras. Uma das principais conclusões do estudo foi que a explosão dos investimentos portugueses não foi acompanhada por um comportamento recíproco das companhias brasileiras, as quais, quando partem para a conquista de mercados externos, dão preferência aos vizinhos latino-americanos, ou arriscam-se nos Estados Unidos. Outro ponto de destaque do documento é a percepção dos investidores lusitanos de que não estão sozinhos na disputa pelo mercado brasileiro: a competição aumentou, principalmente com os espanhóis, e ainda há empresas de diversas nacionalidades, como as francesas, que apesar das diferenças culturais assimilaram o "jeito brasileiro de fazer negócios", após décadas de permanência no país.
Do ponto de vista mercadológico, a pesquisa do ministério revelou um dado essencial na investida lusa no Brasil: as companhias aqui instaladas ou que se preparam para entrar planejam dirigir 100% de seus produtos e serviços exclusivamente para o mercado brasileiro. Só 10% das empresas consultadas admitem que, além do consumidor brasileiro, têm interesse em cultivar mercados vizinhos latino-americanos.
A decisão de investir no Brasil, para a quase totalidade dos empresários entrevistados, foi provocada pela grandiosidade do mercado – cerca de 15 vezes o tamanho do português. O idioma comum foi também determinante em 100% dos casos: falar a mesma língua dá às relações econômicas luso-brasileiras um padrão único de entendimento que nenhum dos dois países poderia encontrar nem mesmo com os respectivos vizinhos latino-americanos ou europeus. O governo de Lisboa reconhece que, embora existam ex-colônias de língua portuguesa espalhadas pelo mundo, especialmente na África, o Brasil é o único que oferece condições vantajosas para investimentos, que propiciem ganho de escala, graças à dimensão e maturidade do mercado nacional.
Contra o Brasil, na opinião dos portugueses, e também esta é uma noção expressa por 100% dos entrevistados, pesa a instabilidade econômica e política no país. Na conclusão do estudo, o ministério luso faz um alerta para um risco que atemoriza não apenas os empresários, mas também a opinião pública portuguesa. Em debate está o fato de que, dadas as dimensões do mercado brasileiro, uma filial aqui instalada poderá vir a ficar maior e mais importante do que a própria matriz. Nesse caso, algumas corporações lusas poderiam optar por limitar os investimentos, a fim de não ter de enfrentar esse efeito perverso da expansão. Os limites da capacidade de administrar essas variáveis, contudo, também são reconhecidamente difíceis, e vários analistas do governo sustentam ser esse um processo irreversível. Em outras palavras, dentro de pouco tempo é bem provável que as atividades da Portugal Telecom no Brasil suplantem, em recursos, o giro da matriz, o que, no mínimo, pode trazer uma situação inédita e, sob certos aspectos, até constrangedora para os administradores portugueses. Há quem diga, no entanto, que uma empresa capitalista orientada para o lucro não pode deixar que brios nacionalistas impeçam-na de ganhar mais dinheiro. "As principais empresas lusitanas instaladas no Brasil ou já faturam mais ou estão prestes a faturar mais que as matrizes em Portugal", admite Queiroz de Ataíde, do Icep. "Afinal", acrescenta ele, "só a Grande São Paulo já tem população maior que todas as regiões portuguesas juntas."
Outro detalhe que contribui para a interpretação do crescimento excessivo das filiais é o fato de quase 50% das companhias lusas que vêm ao Brasil optarem pelo estado mais rico e populoso: São Paulo. Dados do governo, em Lisboa, mostram que 48% das cerca de 70 companhias portuguesas instaladas no Brasil estão em território paulista, próximas à capital, 17% estão no estado do Rio de Janeiro e 5% em Minas Gerais. Os restantes 30% espalham-se em percentuais bem reduzidos pelo resto do país, principalmente nas regiões sul e nordeste.
Em relação às dúvidas associadas a investimentos no Brasil, o ministro da Fazenda, Pedro Malan, em seminário a empresários portugueses, procurou acalmar os receios da comunidade lusa sobre o risco Brasil. Para Malan, as incertezas no contexto internacional, os conflitos políticos internos, a insegurança provocada nos mercados financeiros com a incógnita sobre a sucessão presidencial em 2002, são todos problemas de vulto mas perfeitamente administráveis. "Os fundamentos da economia brasileira", disse Malan, "continuam estáveis e as metas inflacionárias permanecem dentro das estimativas, bem como o caixa fiscal."
O titular brasileiro da Fazenda estimou para os empresários portugueses que os investimentos diretos no país em 2001 chegarão a US$ 23,5 bilhões, o que ajudará o governo a manter as metas de crescimento deste ano, da ordem de 4%, dentro de um ambiente inflacionário também na casa dos 4% anuais, apesar da crise no setor energético.
Briga de titãs
Entre as empresas portuguesas que iniciaram suas atividades no estado de São Paulo está a Cervejaria Cintra. Desde 1997 no mercado nacional, depois da compra das instalações da Kaiser em Mogi-Mirim, a Cintra está se preparando para competir, num mercado que é disputado palmo a palmo por titãs nacionais e internacionais, com Brahma e Antarctica, ligadas pela holding Ambev, a própria Kaiser e cervejarias internacionais, como a Amheuser-Busch, que produz a Budweiser, não instaladas no país, mas com fortes canais de distribuição nos supermercados.
Para tornar-se mais presente em escala nacional, a Cintra quer quadruplicar em pouco tempo sua capacidade instalada atual, estimada em 120 milhões de litros anuais. Nos ousados planos da empresa no Brasil, segundo informa sua diretoria comercial, está prevista a construção de três novas plantas a ser instaladas no Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul e região nordeste. A fábrica do Rio de Janeiro, no município de Piraí, já recebeu investimentos de R$ 230 milhões, e deverá ser inaugurada até setembro. A nova unidade deverá produzir até 600 milhões de litros de cerveja, 300 milhões de litros de refrigerante e 300 milhões de litros de água por ano.
A estratégia é alcançar essa meta gradualmente e elevar a participação da Cintra no mercado nacional de 1% para 4%. Com esse aumento das vendas, o faturamento do grupo deverá crescer em 33%, atingindo a cifra de R$ 120 milhões.
Ao contrário de muitas companhias lusas instaladas no Brasil, a Cintra tem pretensões de, ao lado da disputa pelo mercado interno, destinar boa parte de sua produção à exportação para outros países latino-americanos, além de África e até China.
O Brasil se transformou também em cenário de outra briga de titãs: as duas maiores redes de varejo portuguesas – o Jerônimo Martins, cuja sede fica em Lisboa, e o Sonae, com matriz na cidade do Porto – trouxeram para o mercado nacional a disputa pela supremacia que tornou Portugal pequeno para os dois grupos. De olho no mercado nacional de varejo, estimado em R$ 60 bilhões ao ano, cada um optou por um tipo de ofensiva.
O Jerônimo Martins teve uma entrada mais tranqüila, embora eficiente, com a aquisição da rede de 23 lojas dos supermercados Sé, no estado de São Paulo, e conseguiu chegar à sétima posição no ranking nacional. Em 2001, com os planos de inaugurar mais dez lojas em São Paulo, deverá acumular uma rede de 70 supermercados, o que lhe permitirá galgar algumas posições.
Com operação também na Polônia e na Grã-Bretanha, o Jerônimo Martins encerrou 2000 com faturamento global de US$ 2,9 bilhões. Desde o ano passado, o grupo participa com 50% de uma joint venture com o grupo atacadista Martins, com projetos de desenvolver atividades em quatro frentes: atuação com as indústrias para fornecimento de mercadorias em grande volume, projetos de atacado de auto-serviço, uma divisão de varejo com a marca Sé e uma outra de franquias de supermercados, também com a bandeira Sé.
Enquanto isso, o Sonae, mais agressivo, arrematou em três anos cerca de seis redes de supermercados espalhadas pelo mundo – das quais a gaúcha Real foi a mais importante para seus planos de expansão. De maior porte, com faturamento mundial de US$ 5 bilhões, o grupo – com atuação ainda na Espanha, Grã-Bretanha, Canadá e países africanos – planeja desembolsar, segundo revelaram fontes da empresa, mais R$ 500 milhões em 2001 para fechar novas parcerias e inaugurar outras unidades. Além da posição no varejo, o Sonae está procurando diversificar seus negócios no país, a exemplo do que já faz em Portugal, onde possui atividades que vão das finanças às telecomunicações. O grupo ainda está investindo pesado no segmento de shopping centers e, para 2002, prevê inaugurar em Campinas (SP) as maiores instalações do gênero no país.
Para os analistas, a tendência do Sonae de diversificar atividades para se tornar um conglomerado é seu maior diferencial ante os concorrentes mais fortes, como Pão de Açúcar e Carrefour. Os dois gigantes, que também competem com o Sonae em Portugal, evitam incorporar negócios que não estejam de alguma forma ligados à atividade principal varejista.
A estratégia de dividir o Brasil em áreas de influência – o Sonae com base de operações no Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, e o Jerônimo Martins com uma atuação basicamente em São Paulo – caminha para um esgotamento. Com faturamento no Brasil de cerca de R$ 3 bilhões em 2000, o Sonae entrou na briga pelo mercado paulista com as lojas Big de hipermercados. Recentemente, o grupo desencadeou uma ofensiva publicitária nos meios de comunicação utilizando a imagem do apresentador de TV Jô Soares para tornar sua marca mais conhecida entre os consumidores paulistas. No ranking nacional, o Sonae perde apenas para o Pão de Açúcar, que voltou a liderar a lista dos maiores grupos de varejo do país, e o Carrefour.
De acordo com dados do Banco Central brasileiro, entre as atividades econômicas a que mais tem atraído o capital português é a de telecomunicações. Dos US$ 2,5 bilhões aplicados no país no ano 2000, cerca de US$ 1,7 bilhão destinou-se a essas áreas. O setor de informática surge em segundo lugar, com um volume de aplicações de US$ 269 milhões, seguido pelas atividades de comércio varejista, com US$ 179,7 milhões. Eletricidade, gás e água ficam em último entre os grandes filões de investimento preferidos pelos portugueses.
Em 2001, contudo, essa relação de forças tende a se modificar. As estimativas da Câmara Portuguesa de Comércio são de que os investimentos lusos no Brasil iniciarão uma fase de declínio. Na avaliação da câmara essa redução é natural, já que a fase das grandes privatizações acabou. Investimentos em setores de infra-estrutura, como eletricidade, tendem a assumir a dianteira.
Outra grande vertente da travessia de capital luso em direção ao Brasil ficará agora por conta das médias empresas portuguesas. Também de acordo com estudos da câmara, muitas companhias de médio porte começam a se instalar no país exatamente para prestar serviços aos grandes grupos que já consolidaram sua presença no mercado brasileiro. Entre os exemplos citados de média empresa portuguesa, um dos mais destacados é o da Finantel, que, na esteira da chegada da Portugal Telecom, passou a vender aparelhos celulares nos shopping centers das grandes capitais brasileiras.
O Brasil que vai a Portugal
Mesmo considerado a porta natural de entrada de produtos e do capital brasileiro na Europa, Portugal ainda atrai pouco os grandes grupos nacionais. Em 2000, enquanto os capitalistas portugueses trouxeram US$ 2,5 bilhões para o Brasil, os empresários nacionais levaram até Lisboa, na forma de investimento direto, apenas US$ 60 milhões. Serviços financeiros (quase 30% do volume), liderados pelo Banco do Brasil, Itaú e Bradesco, seguidos por máquinas e equipamentos e construção civil – capitaneada pelo Grupo Odebrecht –, compõem o quadro ainda limitado dos investimentos brasileiros em terras lusitanas.
Essa situação de desequilíbrio na conta dos investimentos luso-brasileiros não desaponta o diretor do Instituto de Comércio Exterior de Portugal (Icep), José Guilherme Queiroz de Ataíde. Ele considera que o cenário atual é produto de uma conjuntura que favoreceu a entrada de capital lusitano e, dadas as dimensões continentais do Brasil, os empresários nacionais ainda têm pouca necessidade de buscar outras praças para expandir seus negócios.
Paralelamente, contudo, ocorre uma outra investida brasileira em Portugal. Em contraste com a ofensiva lusa no Brasil, as empresas nacionais estão entrando em massa em Portugal não por meio de fusões ou aquisições, mas por intermédio de suas próprias marcas. Considerada a mais nova tendência nas relações econômicas luso-brasileiras, a recente febre de aquisições de franquias brasileiras para atuarem especialmente em Lisboa e Porto está dando um colorido tupiniquim à tradição lusitana.
Aproveitando o espaço criado pelas novelas da rede Globo de televisão, que divulgam o estilo de vida das metrópoles nacionais, como São Paulo e Rio de Janeiro, grandes franquias brasileiras, como a perfumaria Boticário, a doceria Amor aos Pedaços e as redes de fast food Vivenda do Camarão e Bob’s, começam a se tornar nomes conhecidos dos consumidores lusos. A Boticário é uma das mais requisitadas pelos portugueses interessados em abrir negócio próprio e já conta com mais de 60 lojas naquele país.
No setor de serviços, o reconhecido talento e know-how brasileiros das agências de publicidade também vem conquistando espaço em terras lusitanas. Em 2002, quem estará ampliando sua participação no mercado publicitário português é a W/Brasil – uma das maiores agências nacionais –, que tem planos de fortalecer a marca W/Portugal, num regime de sociedade com empresários lusitanos.
Reação espanhola
Investimentos da Espanha no Brasil superam os portugueses
Maiores prejudicados pela guinada dos investimentos lusos em direção ao Brasil – que acabou reduzindo drasticamente o fluxo de capitais entre Lisboa e Madri –, os espanhóis, desta vez, decidiram não deixar o mercado brasileiro só para os portugueses. Ao contrário. Em volume de investimentos no Brasil, o capital espanhol supera o de Portugal. Aliás, no ano 2000, os espanhóis ultrapassaram inclusive os Estados Unidos como o país que mais traz recursos ao Brasil. Dados do próprio Banco Central mostram que, com a compra do Banespa pelo Banco Santander, os espanhóis acabaram se tornando o líder nacional em investimentos diretos. A Espanha foi responsável por 21,3% de todo o capital externo aplicado em atividades produtivas (excluídas as aplicações financeiras) no Brasil, que chegou a US$ 30 bilhões. Os EUA, com 20,6%, vêm logo atrás. Portugal, também empurrado pelas aquisições, chegou em terceiro, com 10,6% do estoque anual. A França, em quarto lugar, subiu consideravelmente no ranking e já disputa com Portugal o terceiro posto no ano 2001.
Mais importante ainda para os espanhóis do que ter alcançado a posição de liderança do capital externo no país no ano passado foi ter superado a Alemanha no ranking histórico dos investimentos acumulados no Brasil nos últimos cem anos. Dados da Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica (Sobeet) mostram que a fatia espanhola já bateu nos 12% do estoque nacional de investimentos diretos, deixando os alemães – tradicionais vice-campeões – bem atrás, com cerca de 8%. Na ponta estão os EUA, com aproximadamente 30% de todo o capital externo aplicado em fábricas, equipamentos e instalações no país.
"O Brasil é fundamental para nossos negócios na América Latina, e o objetivo foi sempre aumentar nossa presença e alcançar uma posição de liderança nesse mercado", declarou Emilio Botín, co-presidente do Banco Santander Central Hispano (BSCH), na matriz espanhola, em comunicado distribuído à imprensa por ocasião da aquisição do Banespa. O BSCH, atualmente, além do Brasil está presente em outros 11 países da América Latina, entre os quais Argentina, México e Venezuela.
Arqui-rival do Santander na Espanha e agora também no Brasil, o Banco Bilbao Vizcaya (BBVA) também tem planos estratégicos semelhantes para o Brasil. O executivo que comanda a expansão do BBVA na América Latina, José Ignacio Goirigolzarri, chega a falar inclusive de um "relançamento" do banco no Brasil, com novos produtos e serviços que serviriam para fazê-lo saltar, a médio prazo, da fatia de 0,8% do varejo nacional para algo em torno de 7%.
O capital espanhol, além do setor financeiro, está entrando no Brasil pelas mais diversas portas. A Endesa, maior grupo de energia da Espanha, por exemplo, pretende investir até US$ 3,5 bilhões no Brasil até 2005. Por atuar numa área agora considerada prioritária pelo governo brasileiro, que quer adequar rapidamente a produção energética à crescente demanda e assim evitar os riscos de apagões no futuro, a Endesa está sendo solicitada a ampliar suas atividades no projeto de interconexão energética entre a Argentina e o Brasil. Com os cabos de transmissão interligando os dois países, o governo brasileiro poderá usufruir também da produção energética do seu maior sócio no Mercosul, que, ao contrário do Brasil, terá um excedente quando a usina de Yaciretá estiver produzindo com capacidade total.
A Endesa, segundo informações divulgadas por fontes do governo federal, já instalou uma linha de 1.000 MW entre Argentina e Brasil e está se preparando para construir uma segunda com capacidade semelhante. Os investimentos já consolidados da empresa no Brasil, que lhe garantiram o controle principalmente das distribuidoras de energia Cerj, no Rio de Janeiro, e Coelce, no Ceará, ultrapassam os US$ 4 bilhões. No Brasil, a Endesa disputa com a rival espanhola Iberdrola, que, além de investir no setor elétrico, também atua na área de telecomunicações.
Campeã de impopularidade quando chegou ao Brasil em 1998, a Telefónica de España, após três anos de atividades, mudou seu perfil e realizou uma pequena revolução na telefonia fixa no estado de São Paulo. Com investimentos que já superam os US$ 3 bilhões, a Telefônica exibe dados que dão bem a mostra da reviravolta. No início de abril, a empresa estava operando 11,2 milhões de linhas, o que fez saltar a densidade de linhas telefônicas fixas no mercado paulista para 31,7 linhas por grupo de cem habitantes. Mais importante, o índice de digitalização – que permite ao usuário doméstico ou empresarial utilizar serviços inteligentes de telefonia, além do acesso rápido à Internet – já atingia 94,7% de toda a rede.
"Os resultados mostram que a empresa está cumprindo os compromissos assumidos com os consumidores brasileiros, especialmente os assinantes do estado de São Paulo, que não tinham acesso a serviços essenciais de comunicação", afirma Fernando Xavier Ferreira, presidente do grupo no Brasil. Ele declara que o fato de a empresa ter investido maciçamente em alta tecnologia possibilitou o salto de qualidade nas telecomunicações paulistas, que passam a servir de modelo para o resto do país.
A expansão da rede também possibilitou a melhora no desempenho financeiro da Telefônica, o que acabou estimulando a presença cada vez maior do capital espanhol no Brasil. O balanço mostra que a receita operacional líquida subiu 25,3%, passando de R$ 1,61 bilhão para R$ 2,03 bilhões no primeiro trimestre deste ano. O resultado líquido foi de R$ 242 milhões.
Como prova dos benefícios da entrada do capital externo para a economia nacional, Ferreira cita dados da geração de empregos. A Telefônica de São Paulo é hoje uma das maiores empregadoras do Brasil, responsável por 59 mil postos de trabalho – 13.414 diretos e os demais nas prestadoras de serviço. O salto de produtividade também é importante. O número de linhas por empregado passou de 611 em março de 2000 para 841 em março deste ano, um aumento de 37,7%.
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